No centro da imagem, André Porciuncula, secretário de Cultura, e Mario Frias, ex-secretário, seguram armas de fogo (Foto:eprodução/redes sociais)

Relatório dos servidores da cultura revela risco aos acervos e autoritarismo dos dirigentes

A secretaria especial da Cultura e as instituições vinculadas à pasta apresentam problemas estruturais e orçamentários, além de um quadro de assédio institucional contra os servidores. O Nonada Jornalismo teve acesso a um relatório composto em conjunto pelas associações dos servidores dos diversos órgãos ligados à área. O documento de 71 páginas será entregue aos integrantes do GT de Cultura no governo de transição.

De forma geral, os diagnósticos realizados pelos servidores convergem para problemas recorrentes: gestão autoritária dos diretores indicados pelo governo Bolsonaro (PL), falta de transparência nos processos internos, descontinuidade de programas de fomento ao setor cultural, evasão de servidores devido a questões de saúde e risco à segurança e à preservação dos acervos físicos e digitais. 

Muitos documentos e itens históricos estão desprotegidos pela falta de contratação de prestadores de serviço especializados na preservação, por exemplo. Outra questão é relativa aos diversos programas de fomento ao setor formulados ao longo das últimas duas décadas. A maioria dos projetos foi suspensa nos últimos anos.

“Sofremos problemas de toda ordem: na infraestrutura, com a precariedade das condições nos locais de trabalho e de manutenção de acervos; no organograma das instituições, com a eliminação de áreas e funções estratégicas para cumprimento da missão finalística; na capacidade de gestão pública, visto que os ocupantes de cargos da alta administração não atendiam aos requisitos mínimos para gerenciar as especificidades e as equipes do setor público da cultura”, aponta o documento. 

Órgãos como a Fundação Palmares, a Biblioteca Nacional e a própria administração direta da secretaria atuam hoje com metade do efetivo necessário para manter as atividades. Segundo os servidores, as dificuldades de atuação profissional somadas a quadros de assédio contra os trabalhadores geraram inúmeros pedidos de aposentadoria e afastamento por motivos de saúde. 

O Nonada conversou com uma das servidoras públicas que pediu afastamento de um dos órgãos da secretaria. Ela afirmou à reportagem que estava adoecendo devido às relações com os superiores, e contou que colegas estavam passando pelo mesmo processo. O relatório propõe a recomposição do funcionalismo com a realização de concursos públicos e medidas para valorizar os servidores.

Outro problema apontado pelo relatório é a extinção da participação da sociedade civil nos processos de consulta e formulação de políticas, que ocorriam com os diversos conselhos e colegiados setoriais, hoje extintos. O documento classifica a situação como “diretriz político-ideológica para erradicar a participação social”.

Os servidores apresentaram cinco propostas gerais para os primeiros 100 dias de governo Lula, incluindo a exoneração de pessoas indicadas por Bolsonaro que ocupam cargos na secretaria e seus órgãos, além da revogação de decretos e atos normativos editados pelo governo Bolsonaro. 

“A composição de equipes de gestão com quadros técnicos, a retomada da produção de dados, a realização de diagnósticos e estudos sobre o quadro atual das instituições e suas políticas e a recomposição e garantia de orçamento próprio” também são preocupações do funcionalismo, uma vez que há um apagão de dados na pasta da Cultura, além do estrangulamento do orçamento na área. Leia mais sobre a situação de cada órgão da pasta abaixo: 

Administração Direta da Cultura

Foto: Ministério da Cultura/divulgação

O relatório pede a recriação do Ministério da Cultura e das suas representações regionais, com funcionários presentes em todas as regiões do país. O respeito à diversidade cultural e a movimentos como antirracismo e LGBTQIA+ é destacado com a proposta de inclusão de critérios de diversidade em mecanismos de seleção pública. A diversidade cultural como cerne das políticas de fomento também é uma demanda.

Em relação aos programas do extinto ministério da Cultura que foram descontinuados na última década, os servidores sugerem a volta do programa Cultura Viva, com os Pontos de cultura, políticas para livro e leitura, o programa Mais Cultura nas Escolas e nas Universidades e o retorno do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec) associado à cultura.

Um ponto de atenção é o Sistema Nacional da Cultura (SNC), espécie de “SUS da Cultura” que ainda não foi completamente implementado no Estado. O SNC foi testado com a aplicação da Lei Aldir Blanc, mas os servidores pedem a implementação de estrutura necessária para o funcionamento pleno do sistema, que deve auxiliar na descentralização de recursos da área para estados e municípios. 

“Para nós, servidores públic@s federais da cultura, essa não é uma missão simples, mas sabemos que precisamos priorizar a resolução de problemas estruturantes do SNC, para que os esforços até aqui investidos não se percam efetivamente”, revela o relatório.

Agência Nacional do Cinema (Ancine)

A situação da Ancine esteve em evidência durante o governo Bolsonaro, com atos autoritários de censura a editais e de extinção de instrumentos centrais de fomento como a Condecine. Confira um panorama geral da situação da Agência nesta reportagem.

Os servidores da Ancine pedem a realização de um diagnóstico completo do órgão e a retomada das ferramentas democráticas de planejamento estratégico, que foram descontinuadas. A falta de transparência interna é apontada como foco de atenção pelos profissionais. “Nos últimos 4 anos, a diretoria da Ancine não tem qualquer diálogo com seu corpo de servidores, e nossas considerações técnicas não são escutadas na gestão interna nem na formulação de políticas públicas”, revelam.

Fundação Nacional das Artes (Funarte)

A associação de servidores da Funarte apresenta um quadro preocupante na Fundação. “Ao longo dos anos, constatamos que a Fundação vem perdendo a capacidade de cumprir sua missão de forma satisfatória. Isso se dá porque não consegue atender às demandas e necessidades dos setores artísticos e da sociedade, de forma geral. Paulatinamente, a instituição vem sendo esvaziada, devido à escassez de recursos orçamentários, humanos e gerenciais”. 

Nos últimos anos, os projetos e programas da Funarte têm sido realizados com orçamento de emendas do Poder Legislativo, inclusive com a suplementação de orçamento da própria Funarte o que, segundo os servidores, acaba engessando a atuação da Fundação, uma vez que os programas são criados e sugeridos pelos próprios parlamentares. A construção de uma Política Nacional das Artes, a ampliação do orçamento e a composição de um quadro técnico de funcionários são propostas dos servidores para o novo MinC. Medidas para a preservação do acervo da Funarte, que conta com mais de um milhão de itens, também são sugeridas.

Biblioteca Nacional

Palácio Capanema (Foto: Tomaz Silva/Agência Brasil)

A segurança do quadro de funcionários e do acervo é uma das prioridades propostas pelos servidores da Fundação. “Atualmente, a estrutura carece de condições adequadas de segurança física dos funcionários e segurança patrimonial dos bens que lá se encontram”, afirma o presidente da associação. No início de 2021, o site da Biblioteca Nacional sofreu um ataque hacker, que colocou em risco o acervo digital da instituição. 

A segurança física do acervo também está comprometida devido à redução do orçamento disponível para a preservação do patrimônio. A associação recomenda “a aferição da qualidade do ar devido aos patógenos que se desenvolvem nos ambientes de armazenamento de papéis antigos que se encontram por todos os armazéns”.

Como ocorre em outros órgãos, o funcionamento da Biblioteca também tem sido afetado pela atuação de dirigentes alinhados às propostas ideológicas de Bolsonaro e sem intenção de considerar as análises técnicas, segundo o documento. “A FBN tem recebido presidentes nem sempre preparados para sua condução. Essa situação gera fragilidade, descontinuidade de projetos e, por vezes, faz da instituição um ‘trampolim’ para futuras ambições de seus gestores externos, algo que pode comprometer a integridade de sua missão”.

O relatório pede ainda o retorno urgente dos servidores ao Palácio Capanema e aponta que atualmente grande parte do orçamento da Biblioteca está direcionado ao aluguel de uma sede provisória. O retorno ao Palácio Capanema está previsto para abril de 2023.

Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB)

O presidente da associação de servidores da FCRB revela o alto número de pedidos de afastamento de servidores da instituição e a falta de transparência e de respeito aos conselhos internos. Segundo ele, “desde outubro de 2019, sobretudo, vem enfrentando uma gestão catastrófica que tornou o clima organizacional deteriorado e enfraqueceu, ou mesmo paralisou, várias iniciativas promovidas pela instituição”.

Com foco em ensino e pesquisa na área da cultura, a Fundação teve vários programas descontinuados ou bastante enfraquecidos nos últimos anos, como a Cátedra Unesco de Políticas Culturais, a Cátedra Sérgio Vieira de Mello e o Programa de concessão de bolsas. A Fundação também conta com um acervo que hoje necessita de orçamento para cuidados básicos, como a contratação de empresa de serviço de vigilância patrimonial e a viabilização do sistema de proteção contra descarga elétrica, propostas pela associação.

Fundação Cultural Palmares

Foto: Gabinete de Transição

Com orçamento reduzido, a Fundação Palmares tem atualmente metade do quadro de servidores com vagas efetivas, e sua sede apresenta problemas de infraestrutura que colocam em risco o acervo. O GT da Cultura no governo de Transição detalhou algumas das questões em visita técnica à instituição.

Os servidores propõem a ampliação da força de trabalho e o do orçamento, a reestruturação do setor de proteção do acervo, a criação de um sistema de dados e  a instituição de recursos próprios para a aplicação de editais voltados aos fazedores de cultura afrobrasileira.

Instituto Brasileiro de Museus (Ibram)

O Ibram é responsável pela gestão de 31 unidades museológicas no Brasil e pela formulação de políticas públicas na área. O relatório dos servidores aponta que a instituição esteve sob risco de extinção, principalmente devido a uma Medida Provisória de 2018, e realizou um diagnóstico de desmonte. 

“Os efeitos dos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro na autarquia combinaram instabilidade, falta de critérios técnicos para a ocupação dos cargos dirigentes, abertura de mecanismos para projetos de gestão autoritários, privatizantes e com foco em uma reestruturação que prejudicou e tentou desvirtuar o cumprimento da função social e técnica do Instituto”, destacam os servidores, recomendando a “nomeação imediata para o cargo de presidência do Ibram de agente público com

conhecimento técnico no setor museal”.

Com relação à função do Ibram, a associação recomenda uma série de medidas, que incluem maior participação social, criação de uma política para os museus, regulamentações nos processos de financiamento e o retorno de programas como os Pontos da Memória.

Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)

Nos últimos anos, o Iphan teve sua estrutura interna alterada por decisões monocráticas dos dirigentes. Problemas como a falta de transparência e de diálogo com os servidores também se repetem no órgão. 

Além de propostas para a reestruturação interna, a associação recomenda a criação de um Fundo Nacional do Patrimônio Cultural Brasileiro, de forma a descentralizar os recursos da área, e a criação de políticas para salvaguardar o chamado “patrimônio sensível, relacionado a processos de sofrimento e traumas, como foram os processos de escravidão, das ditaduras, do genocídio indígena, da fome e do racismo, entre outros.”

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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