É com o trabalho dedicado de fazedores de cultura que hoje o teatro chega no assentamento Vila Martins, em Rorainópolis, no sul de Roraima. Lá também tem oficina de grafite, de reisado e projetos pensados para valorizar as memórias da comunidade rural. Em atividade há 30 anos na cidade de Boa Vista, o grupo de Teatro A Bruxa Tá Solta expandiu suas atividades para incentivar o fazer cultural fora da capital do estado.
Experiências semelhantes são vivenciadas em áreas rurais de todas as regiões do país, do pampa no Rio Grande do Sul, passando por comunidades tradicionais do Rio de Janeiro, pelo sertão, pantanal e territórios de pequenos agricultores. Boa parte dessa conquista se deve ao trabalho de artistas integrantes dos pontos de cultura e memórias rurais, grupos culturais autônomos que recebiam incentivo no início dos anos 2000 para difundir a arte, mas que viram as políticas públicas minguarem nos últimos anos.
Com a articulação da Rede Nacional de Pontos de Cultura e Memória Rurais, os grupos realizaram esta semana um seminário online para debater o retorno da Cultura Viva como política de Estado e como os territórios rurais podem voltar a ser incluídos no processo de reflorestamento da cultura no Brasil.
Para a coordenadora do Pontão EcoMuseu Rural, Marjorie Botelho, é preciso reconhecer outras iniciativas que ainda não são oficializadas como pontos de cultura rurais. “É surpreendente a quantidade de coletivos com e sem CNPJ que estão espalhadas pelo nosso país profundo, fazendo atividades diversas e garantindo muitas vezes o direito à cultura de uma parcela significativa da nossa população”.
Marjorie destacou que os pontos de cultura mantiveram as atividades mesmo com a paralisação do programa nos últimos anos. “Mas a gente defende a existência do fomento, porque o reconhecimento como trabalhadores e trabalhadoras da cultura é fundamental para produção cultural do nosso país”.
Na pandemia, a Lei Aldir Blanc foi um recurso importante não apenas para a manutenção desses projetos como também para manter as culturas vivas nas comunidades rurais. Esse é o caso da experiência vivenciada por moradores do cerrado na Chapada Gaúcha, em Minas Gerais, com o trabalho do Instituto Rosa e Sertão.
Partindo das reservas naturais das Unidades de Conservação locais como uma riqueza da região, o Instituto criou oficinas e encontros para valorizar os quintais das casas da região como espaços de cuidado e afeto. “Pensamos na estrutura e nos espaços criativos com o intuito de distribuir esse dinheiro para que seja transparente e que as pessoas também compreendam que a gente tinha limites. Aquele momento era para atacar a fome, apoiar as pessoas que estavam na linha da tragédia e da loucura”, disse a coordenadora Damiana Campos. Agentes da cultura viva, oficineiras de bordados e outros saberes, além de mestres populares, foram agentes que receberam recursos do projeto para contribuir com esse momento.
A agroecologia, o respeito à biodiversidade e aos povos indígenas são pontos centrais para o trabalho dos pontos de cultura rurais. Esse cuidado esteve presente, por exemplo, na fala do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), que compartilhou sua visão de cultura no seminário. “A cultura do MST tem seu nascedouro na terra e falar de terra é falar de um lugar de produção da vida, de uma cultura que a gente faz e se refaz como seres humanos, mas também ressignificando os territórios. Defendemos uma cultura emancipadora”, explicou Gue Oliveira, da Coordenação Nacional de Cultura, lembrando que o MST também contava com pontos de cultura por todo o Brasil, com foco nas culturas da terra.
“Nosso conceito de cultura é amplo, no sentido de como a gente produz e reproduz nossa existência, trazendo várias dimensões da vida. Essas dimensões perpassam a produção dos alimentos, também dialogando com o bioma, cuidando do meio ambiente”, disse, lembrando que os projetos dos pontos de cultura do movimento foram atacados pelo agronegócio. “A cultura é fundamental para fazer o contraponto na batalha das ideias, de resistência dos povos e proteção dos seus territórios. E é central hoje também falar sobre a cultura do alimento”, destacou.
Para MinC, pontos de cultura rurais podem fortalecer a democracia
O secretário de Diversidade Cultural do Ministério da Cultura (MinC), Zulu Araújo, participou do seminário e anunciou o nome de João Pontes como novo diretor nacional da Política Cultura Viva. O secretário avaliou que o primeiro grande passo é a retomada de diálogo com os diversos setores culturais envolvidos, incluindo as esferas municipais e estaduais. “Uma das primeiras medidas que serão necessárias para que a gente possa obter algum sucesso nessa nossa caminhada é o diálogo. Os obstáculos que temos foram extremamente aumentados na última gestão e terminaram em grande medida criminalizando a atividade cultural no Brasil. E nós precisamos retomar a dimensão da cultura enquanto elemento transformador, da alegria e da cidadania”.
Ele também lembrou que a cultura é caracterizada por seu dinamismo e deve estar sempre se atualizando. “A tradição [sem atualização] pode caminhar para um conservadorismo nem sempre saudável. [Então] o que significa ser um ponto de cultura em 2023?”, questionou.
Para a secretária dos Comitês de Cultura do MinC, Roberta Martins, a primeira missão será a de fortalecer a democracia. Realizando uma análise de discurso da posse de Lula, ela avaliou que a subida da rampa do presidente ao lado de pessoas que representam a diversidade da sociedade brasileira também reflete a política cultural expressa no novo governo. Os comitês de cultura, promessa de campanha de Lula, devem “estabelecer relações de gestão dialogada com os estados, para que a política venha da base, do território, para cima”, explica a secretária.
Já o diretor Articulação e Governança do MinC, Pedro Vasconcelos, apontou que há recurso previsto dentro da pasta para os pontos de cultura e lembrou que as Leis Paulo Gustavo e Aldir Blanc também podem ser uma fonte de recursos importante para a área. Ele também destacou a contribuição da cultura para a democracia.
“Temos que ocupar simbolicamente a Praça dos Três Poderes com muita cultura, festival e subordinação ao povo que é soberano, e elege seus governantes. É muito grave o que está ocorrendo no Brasil e acho que não podemos pensar as políticas culturais sem pensar nisso”. Através dos pontos de cultura e de ações como pequenos cineclubes, oficinas, bibliotecas e museus comunitários, é possível chegar em pequenos municípios para conscientizar sobre valores democráticos, diz.