Foto: divulgação

Premiado com o Jabuti, livro de escritora paraense navega nos rios de fora e de dentro

O rio, sinuoso como a cobra, de cor barrenta e de profundidade incerta, é de onde a escritora paraense Monique Malcher escreve. Suas palavras são molhadas, ora por água doce, ora por gozo, ora por choro. Sua existência é parida pelas águas, e são elas que aparecem como início, meio e fim, dos 37 contos presentes em Flor de Gume (editora Pólen, selo Ferina, 2020), livro premiado com o Jabuti em 2021. 

Os contos flertam com a poesia, e, como diz a escritora Paloma Amorim na abertura da obra, “este livro não se encaixa, necessariamente, em uma categorização de gênero”. São contos-poemas, flor e gume, lança e alvo. Monique tem uma escrita cortante, que ao fim de cada texto, parece pedir um tempo de respiro, ao mesmo tempo em que demanda uma voracidade para seguir. Devorar o livro não é hipérbole, porque a intensidade do que contém combina com uma certa autorização de pensar violento. Escrever violento. Como a imagem de escrever coisa ruim na areia para o rio levar – sabedoria aprendida com uma avó em um dos contos. Ser mulher e poder falar das tripas, sinuosas como são, foi uma das marcas que o livro deixou em mim. 

As personagens-narradoras deste livro parecem estar, em diferentes momentos na vida, escoradas na madeira de um barco. Há uma voz que diz: cuidado. Mas há aquela que diz: olhe fundo. E Monique olha, conto após conto, aquilo que se esconde debaixo da água e que faz mover. As presenças encantadas parecem sempre acompanhar esta autora-narradora. Ela não anda só, pois está com a Cigana, com os Erês, com os encantados da mata e do rio, para poder atravessar muitas feridas.

Surpreende quando, logo de início, percebe-se que há dor. Se somos apresentados ao livro na voz de uma menina, no primeiro conto, logo perceberemos que essa menina – sob diferentes roupagens, foi machucada. Os ferimentos são nomeados e um deles, o corte mais fundo, é o Pai. Ele vai e volta, como uma faca que, não satisfeita em perfurar, faz isso inúmeras vezes. Sinto uma espécie de alívio ao ler, finalmente, memórias de uma mulher sobre o seu pai. Eles, sumidos para tantas e tantos, parecem se livrar até mesmo das palavras doídas. Mas em Flor de Gume, estas são devidamente endereçadas.  

Há também no livro um constante exercício de despedidas. A morte paira sobre as personagens, caminha com elas, e vive tão viva em suas histórias que poderia até dizer que é, ela, uma das narradoras. Vejo também a coragem, de colocar a morte em palavra. Falar de morte para estar viva parece um movimento constante na escrita de Monique. 

Raiz de água 

Flor de Gume tem seus próprios cheiros e sabores do território de onde vem. É a farinha baguda, o cheiro doce da árvore de caju, o banzeiro do barco, o casco no rio, a boca de lobo que se faz antes de deitar na rede, o mergulho no igarapé, o cheiro de patchoulli. Flor de Gume é também a saudade de tudo isso que um dia já foi casa. 

Estar longe é matéria do livro. Assim como Monique, algumas das vozes que narram estão longe de casa – e questionam, onde seria esse lugar. A autora é doutoranda em Ciências Humanas pela UFSC, e vários de seus contos passam em Florianópolis. Ou, então, falam sobre o retornar para Belém, para o Guamá – um dos rios que contornam a cidade. 

Monique escreve pequenas lanças, que confesso aqui, gostaria de reler muitas vezes. Compartilho alguns desses grifos (lanças que me acertaram durante a leitura):  

“É bom ter uma vida separada do que esperam de você”
“Era o rio que dizia o rumo, que escolhia a hora”
“Testar o casco, imaginar outras viagens que ele iria aguentar”
“Sou muito boa em contar mentiras, mas não em matar fantasmas” 
“Vó, você foi o meu primeiro caso com o amor” 
“Respeito muito as minhas raivas” 

Outro tema que entrecorta o livro é o amor. E ele geralmente é um substantivo feminino. São personagens amadas por mulheres, que encontram afeto, afago e sabedoria em outras mulheres. E esta parece ser uma descoberta crescente, que se dá aos poucos, e que nós, enquanto leitoras, somos privilegiadas de adentrar. O corpo-voz que narra demora ao descobrir que suas referências de amor são mulheres, e esta descoberta penetra as palavras. É a vó, a mãe, a tia, a paixão. Depois de adulta é que se percebe o que, enquanto menina, era difícil de ver. Já mulher, declara-se. Flor de gume também é uma declaração de amor. 

No livro, é possível ouvir as árvores, conversar com as águas. Monique é uma mulher que banha a cabeça com folhas. Escreve como quem parece acreditar que a palavra cura. Que a água cura. Que ter voz cura. Talvez por isso, ao ler, a vontade é de declamar. Quando se fala, o monstro fica menor. E a monstra maior. 

E Monique diz: Monstras, animem-se! 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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