Nos últimos cinco anos, diversas manifestações artísticas em homenagem a Marielle Franco se espalharam como sementes pelas ruas do país. Murais, grafites, lambes e outras obras de arte passaram a ocupar espaços públicos, escolas e entidades de classe em protesto contra o genocídio do povo negro e a demora na resolução do crime. A vereadora do Rio de Janeiro eleita pelo PSol e o motorista Anderson Gomes foram assassinados no dia 14 de março de 2018, e a investigação sobre o crime ainda não foi concluída.
O Observatório de Censura à Arte, iniciativa do Nonada, apurou que pelo menos 14 trabalhos que retratavam Marielle em diversas cidades do país foram vandalizados ou apagados nesse período. O levantamento mostra que os casos ocorreram nos estados de São Paulo (4), Paraná (3), Rio de Janeiro (3), Minas Gerais (2), Ceará (1), Rio Grande do Norte (1).
Na maioria dos casos, o rosto de Marielle foi rasurado ou pichado, e os agentes censórios foram anônimos. Frases reproduzindo discurso de ódio misógino, lesbofóbico e racista também acompanharam as rasuras, além de objetos fálicos. Um dos casos de mais repercussão foi o de um escadão no bairro Pinheiros, em São Paulo. O mural foi pichado com tinta vermelha em junho de 2021. O criminoso pintou o rosto de Marielle e escreveu a frase “Viva Borba Gato”. A obra, do artista Raulzito, foi restaurada com apoio da prefeitura.
Em 2018, um lambe do artista Bueno já havia sido atacado com tinta vermelha na Consolação, região central da cidade. Em 2020, uma arte criada em Ribeirão Preto (SP) pelo artista Lobão também foi vandalizada com as palavras “vaca” e “já foi tarde”, pintadas novamente sobre o rosto de Marielle.
Atos de vandalismo têm teor racista
No Rio de Janeiro, ainda em 2018, duas obras da artista Panmela Castro, presidente da ONG Rede Namí, foram depredadas e rapidamente restauradas, em novembro e dezembro. Uma delas contou com a participação da ativista paquistanesa Malala Yousafzai, que havia visitado a cidade recentemente e ajudou na aplicação do stencil criado pela artista Simone Siss. Na época, Panmela declarou que estava aprendendo a lidar com esses episódios. “São vários trabalhos que já fiz usando a imagem de Marielle que foram censurados”. A outra obra vandalizada havia sido um grafite pintado junto com a viúva de Marielle, Mônica Benício.
A mestra em Direito pela Universidade Federal do Pará Vitória Oliveira e o doutorando em Direitos Humanos Manoel Rufino analisaram o valor simbólico dos grafites com o rosto de Marielle como espaço político do povo negro. “A imagem de Marielle se tornou uma imagem-mundo de resistência e se espalhou por diversos países como forma de grafite de protesto. (…) Nesse caso, a imagem, o nome e as frases ligadas à Marielle se globalizaram como uma forma de denúncia, protesto e também de empoderamento, inspiração e esperança para os subalternatizados”, apontam no artigo “A Imagem de Marielle Franco na Arte Urbana”.
Para os pesquisadores, esses protestos, que denunciam o genocídio do povo negro tendo como símbolo o assassinato de Marielle, sofrem estratégias de apagamento e desumanização do negro, entre elas os atos contra as obras de arte. “As reações contra essas artes de rua assumem uma mensagem racista de um discurso político que se estabelece não no abstrato, mas sobre os corpos negros. Essas intervenções, portanto, se inserem em um contexto de inferiorização da representação física do negro”.
A depredação do mural “Nossos passos vêm de longe”, em Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, ilustra essa questão. O grafite, que homenageava diversas mulheres do movimento negro, como Mãe Beata de Yemanjá, Marielle e Maria Conga, amanheceu pichado em julho de 2021, com o rosto das mulheres coberto por tinta branca. Os autores do vandalismo não foram identificados.
Outra obra que faz referência ao movimento negro, em Natal, no Rio Grande do Norte, trazia Marielle em destaque, acompanhada de outros rostos emblemáticos da história. Seis artistas fizeram junto o mural, que foi pintado com tinta branca. A arte que estava ao lado do mural não foi tocada, o que indica o teor proposital de silenciar o movimento negro.
Em 2019, um tapete em homenagem à vereadora, criado durante a Semana Santa em Ouro Preto (MG), foi destruído por membros da Guarda Municipal. Em nota oficial, a instituição admitiu a censura, causada por motivos políticos: “Quanto ao episódio onde os agentes municipais desmancham desenhos de cunho político entre outros que nenhuma relação possuem com os “tapetes devocionais”, informamos que a liberdade de expressão não é absoluta ainda mais quando outros direitos estão sendo afetados”.
A censura em espaços de educação
Outros dois casos foram registrados em Curitiba e Maringá (PR), além de um em Uberlândia (MG), em Crato (CE) e Araçatuba (SP). Em Curitiba, nos dois casos, um deles em um sindicato e outro em uma escola privada, o rosto da artista foi pichado com símbolos fálicos e também com a palavra “lixo”. “Tem todo o símbolo dessa questão de apagar a história dela, o que ela representa, de calar ela e as pessoas que carregam o discurso dela. É triste e lamentável”, disse na época o artista Cleverson Café, que supervisionou o trabalho artístico dos estudantes.
Ainda no Paraná, uma foto exposta na mostra “As várias formas de genocídio da mulher negra – Com Homenagem a Marielle Franco” na Universidade Estadual do Maringá, foi rasurada com a frase “Lésbica foi um mal exemplo” (Sic). Em Crato, no Ceará, a criação de alunos de uma escola pública foi destruída em 2019. Já em Araçatuba, interior de São Paulo, o Conselho de uma escola votou pelo apagamento da homenagem a Marielle no muro de uma escola estadual, com apoio de pais e professores. A escola chamou de “ressignificação” o apagamento da arte.
Na Universidade Federal de Uberlândia, em Minas Gerais, o mural do artista visual Cleiton Custódio chegou a ser vandalizado cinco vezes. No artigo “(Des)fiação discursiva em disputa: censura e resistência entre grafites e pichações – ‘Marielle, presente!”, os pesquisadores Eduardo Rodrigues, Carmen Agustini e Érica Araújo analisaram todos os episódios de ataque à obra na Universidade, que variaram entre tinta preta jogada sobre o rosto da vereadora, riscos que taparam sua boca e olhos e palavras que reproduzem discurso de ódio.
Para os professores, é um ato de persistência esse refazer da arte, “um acontecimento histórico da significação da homenagem à Marielle Franco, que é repetidamente maculada por meio de gestos de violência simbólica que procuram silenciar, amordaçar, vendar, tapar, interditar, apagar, discursivamente, o que a homenagem produz como significação”.
Obras em homenagem a Marielle vandalizadas: