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Foto: Pixabay/reprodução

Como governos e instituições podem combater a desigualdade de gênero na cultura

Ainda que 48% dos trabalhadores do setor da economia criativa no mundo seja do gênero feminino, segundo a Unesco, mulheres trans e cis ainda estão longe de ter direitos iguais na área. Assédio, salários desiguais, sub-representação em cargos de liderança e desvalorização em premiações são alguns dos problemas apontados no relatório do órgão (Re)pensando políticas culturais: abordando a cultura como um bem público (2022).

Em artigo que compõe esse relatório, a  professora na Universidade de Barcelona, Anna Villarroya Planas,  mostra que a pandemia de covid-19 agravou a desigualdade de gênero nos mais diversos setores. De acordo com outro documento, o Global Gender Gap, no ritmo atual vamos precisar de 135,6 anos para alcançar a igualdade de gênero em nível global, um índice 68% pior que em 2020.  Já o secretário-geral da ONU, António Guterres, disse nesta terça (7) que o prazo corresponde a 300 anos.

No Brasil, a disparidade salarial, uma realidade em todos os setores produtivos, também se repete na cultura e se intensifica em relação a cor e etnia das trabalhadoras. Na área criativa, as mulheres negras recebem em média um salário 70% menor que os homens brancos, como mostra o boletim mais recente do Observatório Itaú Cultural. O problema se repete em outros países. Na França, segundo o relatório da Unesco, ainda que as mulheres representem 60% dos profissionais graduados em cursos da área da cultura, elas ganham em média 18% menos que os homens em posições iguais na carreira.

“Embora nem todas as regiões ou setores criativos tenham sido afetados da mesma forma, a causa da igualdade de gênero continua mais urgente do que nunca. A falta de dados sobre as mulheres nos setores de cultura e mídia continua sendo um grande obstáculo no caminho do progresso na igualdade de gênero nas profissões criativas”, alerta Anna Villarroya, que leciona no curso de Doutorado em Estudos de gênero na Cultura. A pesquisadora informa que apenas 53% dos países coletam periodicamente dados sobre gênero nos setores culturais. Nos países da América Latina, esse índice se mantém em 53%; já no continente africano, cai para 17%.

Para além do salário, o machismo na área cultural se revela também nas trajetórias profissionais dessas mulheres. Uma pesquisa realizada pela empresa de consultoria Data Sim em 2019 mostra que 49% das mulheres que trabalham com música no Brasil apontam o assédio moral e sexual como a principal dificuldade na carreira. O mesmo estudo também mostra que 48,2% dessas mulheres sentem que deveriam estar em posições mais avançadas. O índice sobe para 55,2% se consideradas só mulheres negras e 54,8% se consideradas só mulheres com filhos.

“Em todo o mundo, continua sendo muito mais difícil para as mulheres obter reconhecimento  por seu trabalho nas profissões criativas. Principalmente com base no setor audiovisual, os estudos mostraram como as performances das mulheres são menos propensas a serem notadas do que as dos homens”, observa Anna Villarroya. “As pesquisas também revelam como vários modos de masculinidade estão associados à criatividade de uma forma que marginaliza as mulheres de papéis criativos de maior prestígio”.

A pesquisa traz ainda bons exemplos de práticas implementadas em diversos países. Montenegro, por exemplo, realiza um programa voltado à inclusão LGBTQIA+ na cultura, enquanto países como o Chile, a França e a Indonésia adotaram medidas para mapear dados sobre gênero no setor. Em Bangladesh, o governo implementou ações para prevenir o assédio na área do audiovisual, diz a pesquisadora.

14 passos para erradicar a desigualdade de gênero

Na prática, governos, empresas e instituições culturais podem contribuir para combater a desigualdade interseccional de gênero com medidas a longo e curto prazo, recomenda a especialista. 

“As medidas de curto prazo são de natureza mais quantitativa e visam corrigir a sub-representação das mulheres em posições de liderança em setores criativos onde elas estão menos presentes em geral (como a indústria de jogos).  As medidas de curto prazo também abordam seu acesso ao financiamento. As medidas transformadoras de gênero de longo prazo abordam as normas, atitudes e regras institucionalizadas que mantêm as relações de poder desiguais que afetam negativamente as carreiras das mulheres nos setores criativos. Eles abordam as causas profundas da desigualdade de gênero, e não apenas seus sintomas”, detalha Anna. 

Medidas para os governos:

1. Fornecer financiamento para pesquisas quantitativas e qualitativas sobre o nível de representação das mulheres nos setores de cultura e mídia, com o objetivo de compreender e enfrentar os desafios que as impedem de contribuir e participar plenamente da vida cultural;

2. Aproveitar os resultados das pesquisas e outros dados disponíveis nos níveis local, regional e nacional para desenvolver políticas e medidas baseadas em evidências para alcançar paridade em posições de liderança, acesso a financiamento e representação na programação cultural; garantir a mais ampla participação de mulheres na cultura vida, independentemente da idade, etnia, origens sociais e econômicas e deficiências físicas;

3. Dado que as políticas culturais participativas ainda são a exceção e não a norma, priorizar uma abordagem multissetorial para a formulação de políticas, para promover a igualdade de gênero nas indústrias culturais e criativas nos próximos anos;

4. Priorizar abordagens interseccionais, apoiando mulheres artistas e profissionais culturais com antecedentes étnicos minoritários, mulheres migrantes, mulheres negras, mulheres com deficiência, mulheres de comunidades carentes e indivíduos LGBTQIA+ em todas as fases de suas carreiras;

5. Definir metas para a proporção de mulheres em cargos de tomada de decisão e promover uma cultura organizacional onde as mulheres se sintam apoiadas para prosperar e se destacar; 

6. Revogar leis discriminatórias que dificultam a igualdade de gênero e têm um impacto direto nos direitos de mulheres e meninas de contribuir e participar da vida cultural, bem como de adultos e jovens com diversidade de gênero;

7. Promover a eliminação de práticas trabalhistas precárias no setor cultural, como contratos de curto prazo, longas jornadas de trabalho (geralmente não remuneradas) incompatíveis com as responsabilidades domésticas, falta de oportunidades e disparidades salariais;

Medidas para empresas e instituições culturais e de mídia: 

8. Usar pesquisas quantitativas e qualitativas para monitorar permanentemente o progresso da igualdade de gênero nas organizações e na programação cultural;

9. Aplicar medidas de ação afirmativa no recrutamento, promoção e premiação até que a igualdade de gênero seja alcançada nas organizações e em toda a programação cultural;

10. Estabelecer programas ou serviços especiais para mulheres, como programas de mentoria com linhas de financiamento, particularmente em setores criativos nos quais as mulheres estão gravemente sub-representadas (por exemplo, no ambiente digital);

11. Adaptar serviços e produtos culturais para que transmitam representações que não alimentem estereótipos de gênero que dificultem o papel e a posição da mulher na sociedade;

Medidas para organizações intergovernamentais

12. Fazer esforços contínuos para monitorar e contribuir para a produção e compartilhamento de conhecimento sobre o progresso em direção à igualdade de gênero nos setores culturais e criativos em todo o mundo, inclusive auxiliando os Estados em seus esforços de coleta e análise de dados e contribuindo para sua comparabilidade;

13. Engajar-se em esforços contínuos de defesa e conscientização em treinamento e capacitação, e fornecendo assessoria técnica e apoio aos Estados para implementar a integração de gênero em suas políticas culturais;

14. Promover a integração de gênero nos setores de cultura e mídia como um trampolim para alcançar a Agenda 2030, em particular o ODS 5.

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Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
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