Um evento de cultura pop e nerd das favelas que atrai milhares de pessoas na periferia de São Paulo. Um espetáculo musical que fala da vida dos ribeirinhos do Amazonas. Uma orquestra no interior do Mato Grosso que ensina música clássica para 400 jovens. Um grupo cultural que, há 30 anos, fomenta a economia local promovendo música e teatro no sertão do Ceará.
O que há em comum entre iniciativas tão diferentes? Todas foram aprovadas para captar recursos via Lei Rouanet, a Lei Nacional de Incentivo à Cultura. Alvo de fake news que se intensificaram na última década, a Lei Rouanet protagoniza debates dentro e fora do circuito cultural, especialmente a parte do dispositivo que regulamenta o mecenato de empresas via renúncia fiscal. Na opinião pública, o mecenato se tornou sinônimo de fomento à cultura, principalmente depois do esvaziamento de outras ferramentas de incentivo ao setor.
Para além dos ataques, um dos principais desafios impostos ao mecanismo é a descentralização dos recursos, objetivo que está nos discursos de campanha de políticos das mais variadas ideologias, mas nunca conseguiu ser cumprido de fato. Em 2021, 78% do valor repassado a projetos culturais via mecenato foi para projetos do sudeste, segundo o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Entre 2015 e 2020, a média desse percentual foi de 77%, contando os estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo.
Ainda assim, projetos periféricos e de regiões afastadas do eixo político-econômico do país vêm encontrando brechas para convencer o setor privado a apoiar seus projetos. São as próprias empresas que decidem quais iniciativas querem apoiar, destinando até 4% do valor do seu imposto de renda. Pessoas físicas também podem apoiar projetos de sua escolha com até 6% do IR.
O Nonada Jornalismo ouviu artistas e fazedores de cultura que têm projetos aprovados na Lei e passam por diferentes fases do incentivo, desde a busca por empresas até a estabilidade financeira da organização.
Caminhos periféricos
A PerifaCon surgiu em março de 2019 como a primeira convenção nerd das favelas com o objetivo de falar de quadrinhos, desenhos, filmes e cultura geek e pop nas quebradas de São Paulo. A primeira edição foi realizada com ajuda de financiamento coletivo e foi um sucesso, com mais de 7 mil pessoas circulando. “A edição deste ano será a primeira que contaremos com a lei Rouanet e para nós é muito importante, porque ela dá a oportunidade de captação e hoje em dia temos uma tradição dentro de algumas empresas, que já trabalham com ela, então isso facilita”, conta Andreza Delgado, uma das organizadoras.
Para Delgado, existe a ideia em boa parte da população brasileira de que quem mora na periferia não precisa de cultura. “Essa questão sempre fica em terceiro ou quarto plano. Para viver bem, você precisa também pensar que a galera precisa ter acesso a outras coisas, não dá só para trabalhar. Isso mobiliza a capacidade de dizer que a periferia pode mais, que a periferia tem direitos, que ela merece ter acesso à cultura, e também quebra estereótipos, porque quando se fala de periferia, já remetem à ideia de pessoas que só curtem samba, funk, e não é bem assim. A periferia também curte K-Pop, também curte concurso de cosplay, também estão no mundo dos games. Então a gente se movimenta nesse sentido”, diz.
Dentro da programação da terceira edição, que acontece em julho, estão previstos painéis com mesas, exposições e debates com um amplo espaço para o Beco dos Artistas, editoras, e por fim, atrações musicais, em palco que retorna ao evento deste ano. Com o lema “Construindo pontes, derrubando muros”, o evento espera atrair mais de 15 mil pessoas esse ano.
Na outra ponta do Brasil, no Amazonas, está o grupo de teatro Espatódea Trupe. Árlisson Cruz, co-fundador, conta que eles conquistaram seu espaço físico recentemente graças a outra Lei, a Aldir Blanc. “Naquele momento houve uma maior injeção de recursos para pontos de cultura e sentimos a necessidade de abrir a nossa sede e nossa escola, e estamos aqui resistindo até hoje”, aponta.
A região norte é a que menos têm projetos aprovados e que tem mais dificuldade em captar recursos. Em 2021, ainda segundo o Observatório, o total arrecadado pelos estados nortistas correspondeu a 0,79% do montante da verba de mecenato no país. Deste valor, 0,7% ficou para o Pará, 0,036% para o Amazonas, 0,031% para Rondônia e 0,024% para o Tocantins (Acre, Roraima e Macapá não arrecadaram). A região nordeste, mesmo contando com 9 estados, ficou com 4,25% em 2021.
O grupo de Árlisson ainda está tentando captar o dinheiro junto a empresas. Ele explica que o projeto foi lançado na plataforma em abril de 2021, mas só foi aprovado em dezembro do ano passado. “Desde então estamos tentando captar. Nossa perspectiva, por mais que seja o primeiro projeto, é conseguir nos gerir de forma sustentável. Com esse investimento, a gente pode crescer e alcançar outros patamares, tanto de execução quanto de investimento, e começar a nos equiparar aos grandes polos de produções culturais, que estão concentrados no eixo Rio e São Paulo”, acredita.
Amazonas – O maior espetáculo do Brasil transita entre lendas e mitos populares, que são passados de geração em geração por meio de manifestações artísticas, folclóricas e literárias. As apresentações que compõem o musical utilizam elementos da cultura popular como boi-bumbá, ciranda e quadrilhas.
Para Árlisson, é necessário criar mecanismos para que artistas do norte possam ter acesso também ao fomento. “É muito difícil. Como é uma lei de incentivo fiscal com caráter também mercadológico, acaba atraindo a atenção mais projetos que possuem integrantes com prestígio, que sejam conhecidos. Acho que se precisa reforçar mecanismos que obriguem as empresas a investirem no Norte e no Nordeste, mais no Norte, já que é a região onde há menos investimento na cultura e menos projetos aprovados e captados pela Lei”, aponta.
O artista vê que seria necessário também simplificar a plataforma de prestação de contas e de fornecerem treinamentos sobre como funciona o sistema. “Senão, vamos continuar nas mãos de grandes captadores, de grandes empresas que administram projetos e são especialistas nisso”, finaliza.
Renda e formação
O grupo cenomusical Dona Zefinha, do Ceará, existe há quase 30 anos, unindo música, teatro e elementos do circo e de espetáculos de rua. Apenas há pouco tempo, eles começaram a usar a lei de incentivo à cultura, com o projeto chamado Território Inventivo. A iniciativa começou durante a pandemia, com lives e depois, com a redução das restrições, também se tornou presencial em diferentes lugares do município da cidade de Itapipoca.
“Foi muito bacana, porque nós administramos esse projeto do começo ao fim. A escrita, a execução, a prestação de contas, então, foi uma etapa nova para nós que estamos dialogando com esse tipo de fomento. Um grande aprendizado e gerou renda: conseguimos nos organizar e estamos ajudando a formar uma espécie de cadeia produtiva da cultura local”, explica Orlângelo Leal, um dos fundadores do grupo.
A organização costuma contratar profissionais locais sempre que realizam eventos e espetáculos, como iluminadores cênicos e técnicos de som. “Como a gente trabalha com teatro e música, focamos nessas duas linguagens. E também trazemos artistas de fora para intercâmbio. Tem sido interessante, porque queremos elevar o nível dos profissionais envolvidos e fazer com que possam melhorar suas criações”, completa.
Para o artista, o projeto foi impactante para a comunidade e distritos. “A programação interferiu na comunidade de alguma forma, porque era um trabalho de contemplação estética, de formação de plateia, de difusão dos artistas. Talvez para algumas pessoas daquelas comunidades esse foi o único contato com arte, pelo menos aquela que não é mediada pelo celular. Também houve formação dada por artistas que trouxemos, como, por exemplo, a companhia Carroça de Mamulengos, que deu aula sobre pernas de pau e jogos populares para alunos de escolas”, conta.
Formação, aliás, é o foco da Orquestra Nova Mutum, do Mato Grosso. Trata-se de um projeto que atende atualmente mais de 400 crianças, adolescentes e jovens, oferecendo gratuitamente o ensino de diversos instrumentos de orquestra sinfônica, como também viola caipira, flauta doce, musicalização e coral. Eles também realizam concertos e apresentações para a comunidade.
A escola é mantida pela Associação Cultural e Social de Nova Mutum, e emprega 17 funcionários (12 celetistas e mais 5 microempreendedores individuais que prestam serviços). “Hoje além dos nossos professores que foram todos formados aqui também temos 4 músicos frutos da nossa escola em diferentes lugares do país atuando em grandes orquestras”, diz a instituição. A associação faz uso da lei Rouanet desde 2012. Desde então, já foram seis projetos aprovados. Toda a manutenção da instituição ocorre por meio deste mecanismo, além de convênios públicos e captação de recursos de forma direta.
Mudanças necessárias
Entre as várias críticas à Lei Rouanet, uma das principais é a concentração de recursos na região sudeste. Para Cecilia Rabêlo, presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult), a descentralização é uma premissa do próprio Sistema Nacional de Cultura. Já no primeiro artigo da lei, está a finalidade de “promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira”. A diretriz deveria ser observada tanto no fomento direto, aquele recurso injetado diretamente dos cofres públicos, quanto no fomento indireto.
“O que faz com que esse princípio não seja observado durante todo esse tempo é o foco quase único no fomento indireto. E nesse modelo a decisão de aporte dos recursos é do privado e não do poder público. Então, basicamente 100% do fomento à cultura do país no âmbito federal é no fomento indireto. E isso faz com que as decisões de mercado prevaleçam e acabam desenhando para onde vai esse recurso”, explica.
O incentivo fiscal é apenas um dos três eixos do Programa Nacional de Apoio à Cultura, o Pronac. Mas acabou ganhando um protagonismo excessivo muito grande ao longo dos anos, deixando de lado o Fundo Nacional de Cultura (FNC), de fomento direto, e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart).
“O FNC foi minguando por falta de interesse dos próprios governos e por vários outros motivos. O incentivo fiscal tem todo o seu valor e sua lógica, mas não deve ser o único braço do estado para garantir fomento à cultura”, diz Cecilia. Desse modo, segundo a especialista, acontece um desequilíbrio e uma prevalência de uma lógica de mercado que faz com que projetos que não têm apelo do mercado ou que não atrelam a cultura com um viés social fiquem sem apoio e não consigam ser realizados.
Uma ideia possível que já está sendo debatida como forma de descentralizar os recursos é o estabelecimento de cotas de recursos para cada região, além de parcerias com organizações privadas para a realização de editais mais específicos, por nicho ou região, via Lei Rouanet. Para Cecilia, contudo, o foco exclusivo em cotas não é suficiente para atingir a descentralização completamente. “Elas são bem vindas, mas não resolvem o problema de forma geral, porque ainda que você preveja as cotas, continua uma decisão do mercado, das empresas. E isso não é bom ou ruim, é o que é”, diz.
Um caminho mais eficiente seria, portanto, o foco no investimento direto, além da continuidade do mecenato. “Por meio da colocação de recursos no Fundo Nacional de Cultura e o lançamento de editais para projetos culturais que não têm condições de captar recursos no incentivo fiscal. Isso, na minha perspectiva, pode tentar equilibrar essa balança”, conclui.
Outro aspecto apontado como obstáculo pelos artistas é a burocracia dos editais de cultura, questionados por usarem muitas vezes uma linguagem técnica que não é acessível. “Eu entendo que é papel sim dos órgãos públicos de cultura e também das entidades facilitar essa compreensão, tornar a linguagem mais simples, os procedimentos mais claros, mais lógicos e mais democráticos. Eu acho que o único caminho é o da formação, a realização de cursos, oficinas e esclarecer as pessoas como participar para dar essa democratização do acesso”, sugere a presidente do IbdCult.
Como funciona a Lei Rouanet?
A Lei nº 8.313/1991 regulamenta o fomento à cultura e estabelece diretrizes para o mecenato, para os Fundos de Investimento, hoje obsoletos, e para o Fundo Nacional de Cultura. No mecenato, cada organização ou produtor cultural é responsável por inscrever seu projeto na plataforma Selic. É por lá que integrantes da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, formada por representantes da sociedade civil e do governo, aprovam ou reprovam o projeto, que pode ser o lançamento de um livro, um festival, o restauro de um patrimônio, uma oficina cultural, entre outras várias possibilidades.
Depois de aprovado, cabe ao proponente ir atrás de empresas que queiram destinar dinheiro ao projeto. Cada empresa pode enviar até 4% do imposto de renda à cultura. Depois de realizado, o projeto passa por um rigoroso processo de prestação de contas, que fiscaliza se o dinheiro foi aplicado conforme previa o orçamento enviado ainda no processo inicial de avaliação.
*Transparência: O Nonada Jornalismo teve um projeto aprovado pela Lei Rouanet em 2023, atualmente em fase de captação.