Arte de Gustavo Caboco (Foto: reprodução)

Iniciativas indígenas propõem repensar o acervo dos entes culturais sagrados nos museus

Robson Delgado, especial para o Nonada Jornalismo

Nos livros didáticos das escolas, a história indígena ainda se resume ao encontro com os portugueses na época da colonização, e assim também foi, por muito tempo, nas instituições de arte e patrimônio. Durante muitos anos, a história dos povos indígenas no Brasil foi contada pelo ponto de vista de outras pessoas, mas a retomada dessas vozes está acontecendo com a ampliação do acesso à informação.   

Um dos lugares que estão acompanhando a discussão que os povos indígenas estão propondo sobre ocupar espaços e mudar narrativas são os museus, espaço esse que para muitos é um lugar de contar histórias do passado. Essas instituições, nos últimos anos, vêm mudando de acordo com o debate de representações indígenas e nos mais diferentes tipos de museus, seja Histórico, de História Natural, de Ciência e Técnica, Etnográficos e os de Arte. 

Alguns exemplos são o Museu do Amanhã (RJ), que em 2023 tem como um dos curadores da exposição Nhande Marandu o indígena Anápuàka, da etnia Tupinambá; Moquém_Surarî (2021), mostra com curadoria de Jaider Esbell que ocorreu no Museu de Arte Moderna de SP e Véxoa: Nós sabemos (2020), primeira mostra de arte indígena da Pinacoteca do Estado de São Paulo, com curadoria da artista, pesquisadora Naine Terena, que atualmente é diretora de Educação e Formação Artística no Ministério da Cultura.

Outra instituição que segue um rumo diferente é o Museu Paranaense (MUPA), que desde 2019 propõe atividades que envolvam mais indivíduos indígenas. Em 2022, um dos projetos do MUPA foi justamente mudar as perspectivas dos não indígenas sobre os povos. 

Na ocasião, três indígenas [o autor desta reportagem, Robson Delgado (Baré), além de Ivanizia Ruiz (Tikuna) e Camila Santos (Kaingang)] foram responsáveis pela curadoria da exposição MEJTERE: Histórias Recontadas de longa duração, mentorados por Naine Terena. Muitos outros artistas estão envolvidos nessa retomada em museus e na arte indígena, como Denilson Baniwa, Ailton Krenak, Zahy Guajajara, Sallisa Rosal, Gustavo Caboco e Brisa Flow, entre tantos outros. 

Exposição “Mejtere” é um dos exemplos da nova concepção de mostras do MUPA. Foto: Kraw Penas

Uma temática que tem sido trazida por indígenas é a relação dos acervos indígenas dos museus do Brasil e do mundo no resguardo e arquivamento dos itens originários. Peças essas que para os povos indígenas são mais que objetos e sim entes, pois fazem parte de um ciclo cultural. Muitas das “peças” têm significados nas danças, em rituais e na própria vivência indígena. 

Alguns desses entes expostos nos museus ou mesmo guardados nas reservas técnicas não possuem registro de sua real história, e em sua maioria vieram oriundas de doações de antropólogos, colecionadores ou viajantes. O que também é levado em consideração sobre esses entes é de como elas foram “adquiridas” de forma violenta durante a colonização. 

Naine Terena explica como esses objetos são observados por pessoas indígenas: “Visto que a maioria das peças foram roubadas de seus povos, tenho percebido muitas impressões entre os indígenas que têm tido contato com esses acervos: confusão, um pouco de tristeza de ver as peças armazenadas em reservas técnicas ou expostas, também a sensação de vazio e o questionamento de porque essas peças estão ali. Essas peças não são só peças, são continuidades, são parte de um parentesco e de uma memória. Tem um lugar afetivo e simbólico muito forte”.

Preservação dos entes 

Gustavo Caboco, Juliana Kerexu, Lucilene Wapichana, Ricardo Werá, Camila Kamé Kanhgág e Dival Xetá “Onde está a arte indígena no Paraná?” (Foto: Pinacoteca de São Paulo/Isabella Matheus)

Sendo um espaço de cuidado com bens históricos e culturais, o museu tem por obrigação elaborar mecanismos que possam preservá-los de eventuais acidentes, para que eles cheguem às próximas gerações e deem continuidade à sua história. Nas culturas indígenas, essa continuidade é repassada geralmente pela oralidade, entretanto na colonização, com o genocidio indígena, algumas tradições se perderam. 

Hoje, os museus tendem a entender melhor essas histórias para que a narrativa possa fazer mais jus às culturas indígenas. Proporcionar a preservação dos bens vai além de deixá-los intactas no sentido físico, mas também na cultura, visto que alguns objetos são únicos. 

Recentemente, foram criadas no Brasil iniciativas para resguardar o patrimônio cultural indígena, como o Projeto Aldear, da Pinacoteca de São Paulo, que tem como objetivo criar um debate sobre como conceber e preservar acervos indígenas. A ideia é fomentar essa discussão não só na parte estética dos acervos em museus, que na sua maioria são instituições não indígenas, como também levar esse tema para as casas de saberes e os espaços geridos por indígenas.

“O projeto Aldear está iniciando ainda e precisamos de mais instituições que possam trabalhar com essa questão. Sobre recursos públicos, eu acredito que os museus usam de suas verbas anuais, para busca de projetos para elaboração”, enfatiza Naine ao ser questionada sobre exemplos de instituições que trabalham com o tema.

Cristine Takuá, integrante do Instituto Maracá, ONG criada por indígenas para elaborar alternativas de resguardo desses entes, conta sobre suas atividades: “O projeto nasce da dependência que nós tínhamos em relação a entender e conhecer iniciativas que envolvem o resguardo e também a manutenção do acervo indígenas. O projeto também trata das formas de resistência que os povos indígenas criaram durante a colonização, inclusive a entrada em instituições museológicas, e como esses povos têm refletido sobre a maneira como querem ocupar essas instituições”, explica.

Naine Terena (Foto: arquivo pessoal)

Ainda sobre preservação de objetos originários, uma observação é que os indígenas no Brasil têm seus próprios conceitos sobre o que é importante transmitir entre as diferentes gerações. As diversas culturas das 305 etnias indígenas têm seus próprios modos de reunir e cuidar daquilo que consideram importante, em alguns casos, determinadas pessoas  podem saber sobre significados específicos e expor isso para outros seria uma quebra cultural. 

Por isso, é importante saber sobre as particularidades das tradições indígenas e o que pode ou não ser transmitido ou guardado em museus. Diante disso, os coletivos, lideranças e pesquisadores indígenas têm pensado em maneiras de se apropriar dos conceitos de patrimônio e de acervo, mas sempre de acordo com o modus operandi de cada povo.

Repatriação e mudança de narrativas

Pensando nos muitos objetos indígenas que foram roubados ou tomados, alguns museus em diferentes países estão criando maneiras para que esses entes retornem para seus devidos lugares. Recentemente, nos Estados Unidos, foi criada a Lei de Repatriamento e Proteção das Sepulturas dos Nativos Americanos, e entidades estão se empenhando para cumpri-la, como conta Naíne Terena. 

A curadora viajou para os Estados Unidos e esteve no Museu Hearst de Antropologia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. “Tivemos a notícia que estão trabalhando para repatriar cerca de 9 mil restos mortais de indígenas. É um número impactante, de como os Museus no mundo precisam rever o que estão resguardando e porquê estão resguardando. Nos foi explicado que existem lá algumas prioridades de repatriação: restos mortais, objetos de uso ritualístico e/ou de uso coletivo.”

Exposição “Mejtere” é um dos exemplos da nova concepção de mostras do MUPA. Foto: Kraw Penas

No Brasil, essa repatriação não acontece de forma oficial, já que não há ainda mecanismos legais ou institucionais como nos Estados Unidos. O caminho na verdade é o inverso: se durante a colonização, os não indígenas foram os principais  responsáveis pelas perdas, hoje cada vez mais os objetos e fósseis são levados para o para o exterior, legal ou ilegalmente. 

Caminhos para esse movimento estrutural de repatriação passam por pensar em métodos de retorno desses objetos e estudar a percepção dos povos que os recebem de volta. “Este é um tema delicado, mas que precisa da presença indígena para pensar os caminhos para os museus que estão com nossas histórias. E não acho que deva ser paliativo. Esses lugares precisam ter funcionários indígenas para fazerem essas caminhadas, senão não haverá mudança real”, avalia Naine Terena.

Ainda que a passos lentos, o diálogo entre instituições e povos indígenas é o início de uma caminhada, como diz Cristine. “Acredito que alguns têm buscado diálogo com pessoas e grupos indígenas para pensar as melhores maneiras de resolver a existência dessas peças, de maneira que não seja somente da forma como chegaram até o local. Mas é um caminho longo e difícil. Não temos um método nem uma política pública para esse tipo de ação”. 

Por essa razão, as autoridades e instituições devem procurar meios que possam fazer com que políticas públicas sejam criadas em favor dos povos indígenas, não só para repatriação desses entes, mas para que pessoas indígenas possam tomar as rédeas de suas histórias e criem suas próprias narrativas. 

Esses lugares ainda são, em muitos casos, geridos por pessoas não indígenas, e criar fórmulas para que indígenas também ocupem espaços de poder é uma estratégia para mudar o rumo para que a sociedade seja mais representativa. E para que devolva as vozes às pessoas que foram silenciadas por séculos dentro de seu próprio território. 

Robson Delgado

Indígena da etnia Baré, natural da cidade de São Gabriel da Cachoeira (AM), é jornalista pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Atua com comunicação voltada aos Povos Indígenas e curador da Exposição MEJTERE: Histórias Recontadas no Museu Paranaense. Ativista dos direitos indígenas, foi o primeiro indígena a se formar em jornalismo na UFPR.

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