Joana Lira/Instituto Ella

“Nossas palavras emitem axé”: pesquisadores debatem o Iorubá como conjunto cultural que dá sentido à existência

Para falar sobre Iorubá, Ìdòwú Akínrúlí canta. O artista nigeriano segura na mão um Erukê, objeto de proteção africano, e cumprimenta a plateia. Ao lado dos pesquisadores Adinelson Farias de Souza Filho, Mestre Cica de Oyó e  Kayzee Fashola, o grupo debateu a contemporaneidade do Iorubá nas diásporas africanas durante a 11ª Semana da África da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). 

A conversa aprofundou o debate sobre o Iorubá, lembrando o público que a língua, além de estar presente nas religiões de matrizes africanas, é parte dos povos Yorùbá, que vivem em países como Nigéria, República do Benin, Gana e Togo. Pesquisador de Língua, Cultura e Literatura Iorubá, Adinelson chama o idioma de “um gigante conjunto cultural”. Ele pesquisa os aspectos de sua tradição e os seus desdobramentos no desenvolvimento sociocultural e na educação da cidade de Salvador.

 “Tem pessoas que nem mesmo reconhecem o estatuto de língua Iorubá, essa língua tonal, polissêmica, polifônica por tudo que ela consegue fazer acontecer”, explica o professor. “Para nós, essas línguas não são estrangeiras. Nós convivemos com elas desde que inventaram o Brasil e elas estão na base dos nossos falares” 

Adinelson começou seus estudos com o intelectual nigeriano Félix Ayoh’Omidire e, como um movimento de reverência aos mestres com quem se aprende, menciona o legado do professor diversas vezes. “Acreditamos que nossas palavras emitem axé. A língua não é só um instrumento, mas uma forma de conceber a vida e a nossa existência”. 

Para ele, é impossível estudar o idioma dissociado da cultura, porque o ensino não acontece a partir de um estudo apenas gramatical, como outras línguas ocidentais.  “Quando a gente conta a nossa história, conta antes da colonização. Sem datas e sem mapas, porque foi isso tudo que eles colocaram”, fala o percussionista Ìdòwú, lembrando que a origem do Iorubá é o Ifá, culto religioso originado no sudoeste da Nigéria, baseado nos Orixás. 

Também nascido na Nigéria, radicado em Porto Alegre há 17 anos, o chef e artista Kayzee Fashola, comenta a importância do Iorubá, além das rezas. “As pessoas, muitas vezes, nem sabem que existem comidas, festivais de cultura Yorùbá que não tem relação com a religião”, explica o artista, integrante do colegiado setorial de diversidade linguística do Rio Grande do Sul. 

Aprender o Iorubá

Foto: Ufrgs/divulgação

Os pesquisadores também abordaram as alterações que a fala do Iorubá sofreu ao longo do tempo, ao decorrer da diáspora. Adinelson e Ìdòwú Akínrúlí concordaram que o aprendizado da língua não está na exatidão da pronúncia ou das palavras, mas no entendimento e na conexão espiritual que o idioma promove. 

O pesquisador da UFBA relatou que alunos queixam-se do medo de errar e ele lembra da frase que ouvia quando era criança. “Meu pai dizia: Abra boca, cante. Ele percebia que todo mundo estava com a preocupação de cantar certo”, recorda. “Não tenha medo de errar. Se você canta com o coração e o Orixá vem, está certo”, aconselhou.

O idioma cantando nas casas de religião ou falado no Brasil pode não ser totalmente compreendido por Yorùbános no continente africano, mas Ìdòwú lembra que isso não significa que a língua deixou de existir. “O Iorubá não é um só. Temos diversos Iorubás dentro da língua”, explicou. 

“Não é uma coisa que a gente aprende em dois ou três meses. Nem em um curso de dez anos. É infinito. Você vai estar sempre voltando atrás para ver como funciona”, pontuou o músico, criador do Grupo Ibeji e que, recentemente, lançou o single Obàtálá em parceria com Dessa Ferreira. Para os que querem aprendem, Ìdòwú diz: “É bom conviver com o povo Yorùbá, além de aprender pela leitura, para conseguir entender melhor.” 

Nascido Gercy Ribeiro de Matos, o pesquisador e Babalorixá Mestre Cica de Oyó aborda a ancestralidade afro-gaúcha a partir da tradição de Oyó. Autor do livro “Batuque  da Nação Oyó no Rio Grande do Sul” (2021), ele destacou o papel da língua na religiosidade de matriz africana. “Se a língua estivesse perdida, eu não teria aprendido o Iorubá no terreiro”, diz. “Tentaram apagar de nossas mentes, mas na minha e em várias, como de Mestre Chico [presente na plateia], não conseguiram.”

Para o Adinelson, o Iorubá também é memória de infância. “Eu cresci ouvindo minha voz cantar para Orixá como se fosse cantiga para gente brincar. Eu não conhecia o terreiro, conhecia o que minha avó cantava dentro de casa. Para mim, era brincadeira.

Iorubá na educação básica

“O terreiro é nosso centro comunitário, a nossa embaixada, a colônia Iorubá quimbundo, quicongo, de cada povo”, lembra Adinelson.  O pesquisador destacou o papel das escolas no fortalecimento das língua e culturas afro-brasileiras. Além das universidades, que já possuem núcleos de estudos da cultura  Iorubá como a UFRGS e a UFBA, ele acredita que o conhecimento deve chegar na educação básica. 

Para ele, o processo de alfabetização seria diferente, caso os educadores reconhecessem a formação diversa do português e as origens africanas. “Se as nossas professoras e professores tivessem formação a respeito dessas línguas, muitas reprovações dos nossos meninos e meninas na alfabetização acabava. Por que será que nossas crianças falam ‘moio’, ‘trabaio’, ‘muié’, ‘culie’?”, perguntou o professor. 

“Akin, quando você chegou no Brasil você conseguia falar, de cara, essas palavras com nh e lh?”. O sacerdote nega com a cabeça. “Em nossa língua Iorubá, não tem. Foi imposta uma outra língua para nossos ancestrais aprenderem”, seguiu Adinelson. “Minha vó falava ‘moio’ e era filha de um homem egbá, que chegou aqui no século 19. Os professores precisam olhar para esse fenômeno que as crianças ainda hoje apresentam. É um traço dessa mistura de línguas. A gente precisa encampar a discussão e tirar a ‘pecha’ de erro e de fracasso, como se fosse dificuldade de aprendizagem.”

O professor encerra lançando uma semente, como faz todo mestre: “Precisamos de espaços como esse e das nossas universidades, como o terreiro, o jongo, a capoeira, o samba, espaços de excelência da cultura negra. Eles precisam ser vistos como instituições que nos formam. Nós precisamos de Semanas da África, o ano todo.” 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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