Mais de 70 programas e ações estatais da área da cultura foram descontinuados ou desmantelados desde 2016. É o que revela o relatório final do GT da Cultura no governo de transição, que o Nonada Jornalismo obteve com exclusividade após entrar com um pedido via Lei de Acesso à Informação.
O documento de 64 páginas foi disponibilizado no dia 13 de maio, dois meses após o pedido inicial, e contém um diagnóstico detalhado de orçamento, organograma, paralisação de políticas e governança da então secretaria Especial da Cultura. Servidores passaram a responder a processo administrativos por perseguição política e havia falta de transparência na prestação de contas. Em março, a agência Fiquem Sabendo publicou os relatórios de outros GTs, mas o documento da área da cultura ainda não havia sido revelado. O relatório pode ser acessado neste link e replicado com créditos ao Nonada.
Segundo o estudo, todas as áreas da cultura tiveram projetos paralisados durante o governo Bolsonaro, desde mecanismos estruturais como a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura e o Plano Nacional de Cultura até programas setoriais específicos, como a Política Nacional de Educação Museal, os Programa Telas Acessíveis, Mais Cultura nas Escolas o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial.
O GT da Cultura, que teve entre os participantes a ministra Margareth Menezes e o secretário-executivo da pasta, Márcio Tavares, concluiu que o orçamento da Cultura encolheu 85% entre 2016 e 2022, e a estrutura da então Secult foi reduzida a ⅓ em relação ao antigo MinC. Os recursos das entidades vinculadas (Funarte, Ancine, Biblioteca Nacional, Iphan, entre outras) também sofreram queda. Em 2022, 73,8% do orçamento foi direcionado à manutenção dos órgãos, restando apenas 26,8% para programas e projetos culturais.
Pontos de alerta e ações emergenciais
O relatório destaca pontos de alerta relativos à transparência e à prestação de contas do governo Bolsonaro. “Ausência de informações atualizadas sobre contratos de obras públicas, sobre a situação da execução do empreendimento, intenção ou não de dar continuidade a cada contrato ou outras providências a serem adotadas.” Outros focos apontados foram a ausência de análise das contas de 250 projetos da Lei Rouanet e a falta de pagamentos dos profissionais de TI e mão de obra terceirizada.
Devem ser revistas ainda ações polêmicas do governo Bolsonaro como o Casinha Games, projeto que receberia quase a totalidade do Fundo Nacional de Cultura em 2022. O GT recomenda a descontinuidade do projeto, “que compromete boa parte de seu orçamento discricionário e com potencial condenação junto ao TCU”. Também aponta para a necessidade de revisão de Termos de Execução Descentralizada que foram acordados com diversas instituições no final da gestão de Mario Frias como secretário de Cultura, o que comprometeria parte do orçamento do MinC para 2023. Outro ponto recomendado para análise é a construção do Museu da Bíblia, proposta do governo do Distrito Federal paralisada pela Justiça por interferir em Brasília, patrimônio mundial da Unesco,
O relatório ainda revela quais eram as ações prioritárias sugeridas para os primeiros 100 dias de governo Lula. A Lei Paulo Gustavo, por exemplo, deveria ter sido implementada nos primeiros 30 dias de governo, medida que precisou de 5 meses para ser lançada. Já o relançamento da Política Nacional de Cultura Viva/Pontos de Cultura deveria ocorrer em até 100 dias. Ainda que o prazo não tenha sido confirmado, a ministra da Cultura anunciou na Câmara dos Deputados que o governo vai destinar R$ 600 milhões por ano aos pontos de cultura.
Outras medidas urgentes já foram cumpridas, como a liberação de projetos travados na Lei Rouanet e a convocação da IV Conferência Nacional de Cultura. O GT também recomendou que a Empresa Brasileira de Comunicação (EBC) estivesse entre as entidades vinculadas ao MinC. A EBC, no entanto, acabou na Secretaria de Comunicação Social.
Queda no orçamento paralisou ações culturais
De acordo com o estudo, a redução no orçamento teve impacto direto no funcionamento da secretaria. “Por exemplo, os computadores mais novos disponíveis para os servidores são de 2018, sem contrato de manutenção, e ainda assim em números menores que o de servidores, o que significa que há servidores trabalhando com computadores ainda mais antigos, também sem manutenção”, diz o documento.
O relatório detalha a situação do quadro de servidores, com práticas de assédio moral e o consequente adoecimento dos trabalhadores. “Todos aqueles que se recusavam a praticar atos que consideravam ilegais, imorais ou ilícitos, ou que questionavam tais atos, eram exonerados, rebaixados ou escanteados, e muitos deles passaram a responder a Procedimentos Administrativos Disciplinares (PADs) que, para servidores, podem significar o fim de uma carreira ou uma mácula indelével nela”.
Também integram o documento dados sobre os órgãos ligados ao MinC, como a redução do Fundo Setorial do Audiovisual, que foi reduzido em mais de 40% a partir de 2020. A situação da Fundação Cultural Palmares já havia sido revelada, quando integrantes do GT encontraram bens históricos como cartas de alforria e obras de arte em situação precária. A condição do Iphan também era preocupante, já que, segundo o relatório, “no que tange à área de conservação, por exemplo, a instituição só é capaz de cobrir (e parcialmente) os custos de ações emergenciais e judiciais.”