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“A escola de samba é uma casa para a comunidade”: a história da Estado Maior da Restinga

*Luã Fontoura

Foi com uma homenagem a Anastácia, “mulher que não se deixou calar, mesmo amordaçada”, que Escola de Samba Estado Maior da Restinga venceu mais um Carnaval. Escola tradicional do bairro homônimo da zona sul de Porto Alegre, a Restinga nasceu, como muitos clubes sociais negros históricos do Rio Grande do Sul, da força e da garra da comunidade negra. A Estado Maior da Restinga já foi campeã em outras nove oportunidades.

A vice-presidente da Restinga, Viviane Rodrigues, defende que as escolas precisam ter uma forte ligação com o desenvolvimento das comunidades. “Nos enche de alegria saber que a Escola faz um bom papel, que está realmente cumprindo com seu dever dentro da comunidade. As pessoas fazem parte daqui, fazem churrasco, fazem samba. As famílias fazem parte da Escola de samba num todo, e é esse que é o nosso papel, diz.

Viviane conversou com o Nonada para contar um pouco sobre a história da escola, os projetos sociais e a sua própria trajetória na Estado Maior da Restinga, desde a sua infância. Além disso, ela comenta sobre como é importante ser uma mulher em um dos cargos mais altos e sobre a necessidade de um olhar mais atento do poder público para o Carnaval. 

Como nasceu a escola? De onde surgiu a ideia? 

Viviane A Estado Maior da Restinga tem uma história muito bonita. Na verdade, ela começou com um pequeno grupo de moradores que tinha a ideia de um dia fazer uma escola de samba. O nome desse grupo era Unidos da Restinga,  passando a ideia de que aquele grupo queria formalizar algo. E aconteceu, então. Nasceu a Estado Maior, através desse pequeno grupo de moradores, que são pessoas que tiveram uma ideia muito boa, né? Hoje, está há 46 anos sendo orgulho da comunidade.

A escola começou a participar dos desfiles do Carnaval de Porto Alegre em 1979, quando teve o nome registrado, de fato, como o Estado Maior da Restinga. A partir daí, vieram alguns campeonatos e a escola foi crescendo, e tendo essa força que hoje a gente reconhece. E a comunidade tem muito orgulho da Estado Maior, porque é uma escola que, como eu digo, é a identidade de todos nós, os moradores da comunidade. O morador do bairro tem muito orgulho da escola, é uma coisa incrível. Só quem é Restinga, Estado Maior, entende do que eu estou falando, desse amor.

Qual é o envolvimento do bairro com a escola?

Viviane –  A escola é um orgulho muito grande para o morador. Até porque é uma escola que agrega muito a eles, nas rodas de samba, nos ensaios. A gente costuma envolver a comunidade para dentro da escola. Como eu falei, a gente precisa disso. A comunidade é o nosso gás, vamos dizer assim. Eles entendem a importância que a Escola de samba tem para a comunidade. Então, cada ensaio que tem, e eu vejo assim, uma amiga, uma moradora, que fala “essa é a nossa Escola”, “é a minha Escola”. Eu tenho orgulho de ter a minha Escola. 

Nosso bairro tem uma Escola de samba, então, só estou sentindo felicidade vendo a felicidade no olhar daquele morador. Nos enche de alegria saber que a Escola faz um bom papel, que está realmente cumprindo com seu dever dentro da comunidade. As pessoas fazem parte daqui, fazem churrasco, fazem samba. As famílias fazem parte da Escola de samba num todo, e é esse que é o nosso papel. Escola de samba não é só Carnaval, é uma responsabilidade social e, principalmente, com a comunidade. Temos esse dever. 

Qual foi o enredo do Carnaval de 2023, que é o atual enredo campeão?

Viviane –  Nós falamos sobre a escrava Anastácia, uma mulher que não se deixou calar, mesmo amordaçada. E o enredo foi rico, falando sobre o empoderamento feminino. Muitas mulheres se identificaram, porque se tu parares para pensar, ainda hoje existe essa resistência, a de que a mulher tem que ter limitações, e não é bem assim. Digamos que essa história ainda é contada, ela é presenciada por nós. 

Eu digo como mulher, como guerreira, como mulher que sofre opressão. Uma mulher que vai lá e quer botar a voz no mundo, ver que as pessoas, às vezes, não te ouvem e simplesmente tentam te calar. Então, nós contamos a história do passado, mas também vamos dizer que hoje, no presente, ela se repete, mas de uma outra forma. Muitas vezes não nos deixam falar, não nos deixam plantar a nossa bandeira. Então, todas nós mulheres temos um pouco da Anastácia. 

Nós nunca tivemos uma mulher junto a um presidente, então me honra ser a vice. Eu vou ter a oportunidade de ser porta-voz de muitas mulheres. Nosso Carnaval de Porto Alegre tem muitas mulheres presidentas das suas escolas e que fazem um papel lindo, incrível. Eu admiro todas. Admiro e falo para elas: vocês são exemplos. 

Toques do Alabê – Tambores em Comunhão de fé foi o tema da Bateria da Escola no Carnaval de 2023. (Foto: Pedro Piegas/PMPA)

Como são organizados os ensaios? Desde qual momento começa a se produzir o Carnaval para o próximo ano, no caso 2024? 

Viviane –  Então, o Carnaval 2024 para a Estado Maior da Restinga já começou. Acabou o Carnaval 2023, deu, está zerado. Fomos campeões com um trabalho lindo. O presidente Aldo e a Taísa, sua esposa, foram incansáveis. Uma equipe de carnavalescos, a sua equipe, é dedicação 100%, de todos os integrantes da bateria e destaques. Enfim, um envolvimento completo de todo mundo nesse trabalho lindo que foi 2023, chegamos no campeonato perfeito.

Mas 2024 está na nossa porta e o trabalho já começou. Temos agora, em junho, o lançamento do nosso tema, então a escola já está se preparando para fazer um grande espetáculo de lançamento. A apresentação, com crianças da nossa comunidade,  tem tudo a ver. As crianças têm tudo a ver com nosso enredo. A gente está falando sobre as crianças, então o nosso enredo é onde a gente vai enaltecer o público infantil, a criança num todo, os direitos da criança. A educação, saúde, moradia, família. O que é ser criança e como é bom ser criança, né? Nós, adultos, temos uma criança sempre com a gente. Então, nós vamos falar sobre elas, e neste lançamento do samba-enredo nós teremos, em média, 60 delas. 

Nós já temos novos contratados. A equipe de trabalho, mestre de bateria – já afiadíssimo – para os ensaios. Para as oficinas também, nós vamos colocar muitas crianças na percussão. O barracão já está em transformação. Se tu chegar hoje lá no Barracão da Estado Maior, a estrutura do carnaval de 2023 não existe mais, já foi desmontada. A escola já está na parte da estrutura de ferro para iniciar a alegoria de 2024. 

Então, para o nosso Carnaval, no outro mês, o presidente Aldo bateu o martelo e disse: “ó, vamos arrumar o Barracão, porque em seguida tem o lançamento e vamos tocar, vamos trabalhar muito mais forte”. A gente quer, obviamente, o novo campeonato, mas todo esse trabalho vai ser feito com bastante pé no chão, muita humildade, responsabilidade, comprometimento de toda a equipe. Porque, uma coisa é certa, ninguém faz nada sozinho, e, com certeza, teremos a comunidade nos apoiando e ajudando em alas, participando dos nossos ensaios. É aí onde abre para o público, para a comunidade e para as pessoas interessadas em saírem nas alas, nos carros alegóricos e, enfim, participar do nosso desfile. A preparação pré carnaval já está a mil e está bem forte.

Além do desfile no Porto Seco, quais outros eventos que a Estado Maior da Restinga participa?

Viviane –  Nós temos também o Grupo Show. A Escola vende este show, que também é uma maneira de nos manter, além dos ensaios, é uma fonte de luz e de renda. O nosso Grupo Show é qualificadíssimo, tem profissionais incríveis. Vamos dizer que o Grupo Show da Restinga não perde em nada para a Mangueira, para a Salgueiro ou para alguma escola de São Paulo. Faz parte, ali, o intérprete, a bateria, Mestre-Sala, Porta-Bandeira, passistas, algumas baianas.  Então, é um grupo onde a gente monta uma “mini escola de samba”, só que sem as alas, e faz apresentação. Vende-se esse show para empresas, para eventos, às vezes, fora daqui do município, para outros lugares do estado.

E quais são as ações sociais que a Escola tem com o bairro hoje?

Viviane –  Nosso trabalho social está ganhando muito mais força a cada ano, porque a gente entende que uma escola de samba tem uma responsabilidade social com a comunidade. A escola de samba é, vamos dizer, uma casa para a comunidade. Ela dá o carinho para o morador do bairro. É obrigação oferecer algo a mais além do samba, além do ensaio, além do Carnaval. A Estado Maior da Restinga faz isso muito bem. Nós temos nossos projetos de samba no pé, Mestre-Sala e Porta-Bandeira, nossa oficina também de Standart. Agora, no dia 8 de julho, e vai iniciar também a escolinha. A oficina de percussão, que é administrada e coordenada pelo Mestre de bateria, mestre Fabinho e os seus diretores.

E qual é a ideia desses projetos sociais? Trazer a comunidade para dentro da Escola, né? Porque é isso: é o nosso compromisso com a comunidade, é trazer o povo e dar continuidade na nossa história. Nós precisamos trazer crianças para que elas entendam a escola. Agrega muito na educação, no desenvolvimento pessoal, e também social. Então a gente precisa trazer a criançada. 

E os idosos também, os que gostam de dançar, os que gostam de tocar um instrumento, para fazer parte dessa família que é uma escola de samba. Sem falar que é através de cursos que a escola tem a ideia de profissionalizar pessoas, aquela pessoa que busca o primeiro emprego ou que quer se aperfeiçoar em algo. Isso acontece dentro de oficinas no nosso Barracão, para formar profissionais, porque, além do Carnaval, é o que eu digo: a folia em si, a festa, o Carnaval, gera renda para muitas pessoas. Muitas famílias se mantêm nesta época do ano da montagem do samba, do evento, e após também.

Então, é nisso que a escola de samba está se organizando, muito mais do que já se organizou, com oficinas e também cursos para a comunidade – também para as pessoas de fora da comunidade – porque a escola de samba é do povo. Qualquer pessoa tem o direito de participar, de frequentar e usar o nosso espaço. 

Símbolo da escola, o Cisne sempre se faz presente no carro abre alas, que neste ano teve o nome de Orayeyeo: História, africanidade e destino. (Foto: Pedro Piegas/PMPA)

Tu acha que faltam políticas públicas de incentivo para esse setor? Ainda falta um olhar direto para o Carnaval?

Viviane – Eu acredito que existe, tem essa falta de engajamento com a cultura do Carnaval. Realmente, tem que ter um olhar mais focado. Quando se trata do assunto Carnaval, dentro da política, levam sempre como “mas o que vai vender para o município?”. Gente, é só pegar os dados ali da economia, o que gera, o que que movimenta nesse período, e ali tu terás a resposta, não precisa ir muito longe.

Estou te falando do Carnaval daqui. Sem falar que nós temos Carnaval no estado todo. O Rio Grande do Sul é o lugar que mais tem carnaval, tem em todos os cantos do estado. Maravilha, né? E são grandes espetáculos. Isso tudo envolve dinheiro, então, por que não dar uma atenção maior para este movimento? Se está gerando, está mexendo na economia positivamente, por que não dar mais engajamento? Mais uma atenção? A minha opinião é de que existe, sim, um certo desinteresse em olhar com mais atenção para o nosso Carnaval. 

Como tu enxerga hoje o cenário atual do Carnaval daqui de Porto Alegre? Porque anos atrás, era considerado um dos melhores do país e ele ficou um tempo sem ter transmissão na TV aberta, por exemplo.

Viviane Pois é, então, como tu falou, nosso Carnaval era. Ele foi o terceiro Carnaval, não é? Então era Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre. As pessoas esperavam pelo nosso Carnaval. Tanto é que a data do Carnaval era diferente porque a gente não podia bater com a transmissão de Rio e São Paulo. O nosso era dias depois.

Eu vejo que o Carnaval teve seus altos e baixos, e, hoje eu vejo que as escolas de samba precisam olhar para si, olhar essa grandeza que é o nosso Carnaval, entendendo que a escola pode fazer muito mais. A gente quer muito mais. A gente busca muito mais. E aí, eu vejo que as escolas estão se movimentando para engrandecer cada vez mais nosso espetáculo, e fazer com que as pessoas entendam que é uma cultura forte também dentro do estado, dentro de Porto Alegre, principalmente aqui. Entendam que o nosso Carnaval ainda é muito forte. 

Ele ainda precisa ser mais fortalecido. A gente está buscando um grande apoio. Eu acho que o nosso Carnaval está neste processo de fortalecimento. Ele é grande, mas é importante que se tenha um fortalecimento com as pessoas, com empresas, com grandes negócios, para que ele se mantenha. Neste ano, tivemos o segundo ano de transmissão seguido. A TVE foi lá e transmitiu o nosso Carnaval. Ele ainda é um pouco delicado? É, mas ele está se fortalecendo e é promissor.

Como começou a tua história na Estado Maior da Restinga? Como tu te descobriu carnavalesca? De onde surgiu essa paixão e como tu chegou na vice-presidência da escola?

Viviane – Quando eu participava dos ensaios, eu era muito pequena, em torno dos meus 8, 9, 10 anos. O ensaio, para mim, quando criança, era o quê? Ir para comer churrasquinho e brincar com as outras crianças. Eu não entendia direito o que era. Entendia o barulho, mas eu não tinha noção nenhuma. O que é a escola de samba, a folia, aquela coisa. Depois, eu fiquei um tempo sem participar, perdi o contato. Alguns familiares não estavam mais morando lá no bairro e as amigas também se mudaram, então eu perdi meu vínculo com a escola. 

Eu retornei pra Escola de samba com 15 anos. Foi quando meu padrinho pegou e perguntou se eu queria ser Rainha do Carnaval, porque eu dizia que eu queria ser. Ele pegou e perguntou para mim: “olha, tem duas Escolas que tu podes participar: a Praiana ou a Restinga, qual que tu quer ser? De qual tu queres participar do concurso?” E eu disse: “Restinga né?”, porque eu já fazia parte, já ia quando criança. Ia para a Avenida Antônio de Carvalho ver a Restinga desfilar, ficava enlouquecida. Aí me inscrevi no concurso Rainha do Carnaval da Estado Maior da Restinga em 1992, e ganhei o concurso. 

Depois disso, já aconteceu a preparação para o concurso Rainha do Carnaval de Porto Alegre, onde eu representei a Estado Maior da Restinga, com outras escolas, com outras rainhas representando as suas agremiações E ganhei também como Rainha do Carnaval de Porto Alegre, já em 1993. A Restinga, já fazia muito tempo, não participava da corte, sabe? Não tinha uma participante entre as três meninas da corte. Então, a escola não tinha uma participante assim, que levasse o nome da Estado Maior para corte, e aconteceu. A escola reacendeu nessa coisa da Rainha. 

Depois disso, quando encerrei então meu reinado, eu já estava com 17 para 18 anos, e eu fui pra frente da bateria da escola. Dentro da escola, eu estou sempre na atividade, sempre muito ativa. Essa é uma coisa muito louca de te dizer, porque eu pensava que ia ser por pouco tempo, mas não. Ser Rainha de Bateria, madrinha de bateria, por digamos, 27, 28 anos? Isso é um marco, né? 

Então, quando chegou a hora que eu disse para mim mesma, “gente, eu não posso mais, eu tenho que abrir espaço para outra pessoa”. Então, eu sempre participei de muitas ações dentro da escola. Sempre fui muito envolvida. Falei para o presidente Aldo: “presidente, eu não tenho mais disponibilidade, não tenho mais fôlego. Vamos colocar alguém mais novo, alguém que possa dar continuidade”, e eles me questionaram se eu achava que era a hora de parar. Claro, gente! Eu estou com 46 anos.

Agora, me afastar da Escola, eu não vou. Não existe isso, entende? Aí o que aconteceu? Eu sempre falava em tom de brincadeira que eu queria ser um dia presidente da escola. Eu dizia: “bom, agora que eu já fui Rainha, madrinha da bateria, só me resta ser o quê? Presidente da escola, né?” É uma coisa que não amadureceu, mas talvez a visão do Presidente Aldo e a de outros integrantes, até do conselho da escola, me enxergaram como uma possível vice. Até porque, como eu digo para mim, ser vice é ótimo, porque eu estou aprendendo. Eu tenho muito o que aprender ainda dentro da parte de gestão numa escola. Então, recebi o convite de vice após o meu desfile, que eu fiz o último desfile agora esse ano. Eu nem pestanejei. Aceitei e disse: “Claro que eu quero, eu quero ajudar. Eu sou uma raiz da escola, eu sou uma semente da escola e eu quero continuar sendo essa semente que deu bons frutos”.

* Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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Editoria de cultura da Beta Redação - Agência de jornalismo experimental da Unisinos