Foto: Eduardo Beleske/PMPA

A história de Porto Alegre no coração da Cidade Baixa

Eduarda Ferreira*

Localizado na rua João Alfredo, conhecida por abrigar muitos bares e casas de festas, o Museu de Porto Alegre Joaquim Felizardo muitas vezes passa despercebido por quem circula por lá. No entanto, é ele que guarda a maior parte da memória da cidade, com a missão de promover a interação da sociedade com o patrimônio cultural. Assim, dá ênfase a sua história e memória, através da pesquisa e comunicação dos bens sob sua guarda. 

Construída em 1846, a edificação histórica de estilo colonial português – uma das poucas remanescentes em Porto Alegre – foi inicialmente a casa de campo do explorador português Lopo Gonçalves, radicado na capital gaúcha. No século 20, durante os anos 1970, intelectuais da cidade lutaram pela preservação da edificação histórica, que foi então transformada em museu.

Luciana Brito atua há três anos e meio no Museu de Porto Alegre. Formada pela primeira turma de museologia da UFRGS, ela é a principal responsável pela preservação dos acervos da instituição e explica que esse é o maior desafio da equipe, que vem enfrentando problemas de estrutura e pouco repasse de verbas do poder público. “A gente faz o que pode, dentro das nossas limitações. O problema é que para a preservação das peças, é essencial ter o controle da temperatura. Se a temperatura está alta e tem muita umidade, provavelmente vamos ter fungos, o que  vai deteriorar os materiais e documentos”, conta.

Nesta entrevista, Luciana conta, também, sobre as iniciativas para tornar o acervo do Museu mais conhecido, as parcerias com outras instituições, os recursos de acessibilidade e a importância dos objetos do acervo para preservar a memória de todos os atores que constituíram a cidade. “Quando o museu começa, ele tem uma característica específica, de reunir um acervo da elite, que tem aqueles objetos da classe dominante, e com o tempo ele vai incorporando novos acervos afro-brasileiros, indígenas e pré-coloniais. Afinal de contas, a história de Porto Alegre começa muito antes dos açorianos, né?”. 

Para começar, o que é possível encontrar aqui no Museu? O que compõe o acervo?

Luciana Brito – Nós temos três principais acervos. O fotográfico, que na verdade é um acervo de imagens, porque não são só fotografias; o acervo tridimensional e o acervo arqueológico, o mais numeroso de todos, uma vez que em Porto Alegre o Museu Joaquim Felizardo é uma das poucas instituições que foram consideradas aptas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional [Iphan] à acolher os objetos arqueológicos.  A gente tem que atender uma série de exigências para poder conceder endosso institucional para qualquer novo projeto. 

Funciona assim: toda vez que tem uma obra em um local de Porto Alegre, onde tem uma ocorrência arqueológica ou já é reconhecido como sítio arqueológico, é preciso parar a obra e contratar uma empresa ou um arqueólogo responsável que vai fazer o salvamento deste material. Então, eles precisam ter uma instituição que vai guardar esse material e, dentro das nossas possibilidades, que atualmente são bem limitadas – porque a [area de] arqueologia já está lotada – o museu concede esse endosso e o material vem pra cá. Claro que a gente tem toda uma exigência para o material ingressar aqui. Ele tem que vir limpo, acondicionado e classificado em caixas, e então a gente guarda aqui na nossa reserva técnica, que é no porão. 

Atualmente existem peças de 91 sítios arqueológicos de Porto Alegre aqui no Museu, são mais de 300 mil itens que compõem o acervo. Claro que a maioria são fragmentos, mas é muita coisa. A maioria são coleções, materiais que se complementam, inclusive, muita coisa pré-histórica. Temos bastante cerâmica indígena, principalmente Guarani. Temos muitos itens de acervo afro-brasileiro também. 

No nosso acervo tridimensional são 1.300 objetos dos séculos 19 e 20. Também com uma variedade enorme, temos coleção de Carnaval, uma outra da banda municipal de Porto Alegre. São louças, documentos, vestuários, é muito variado. Por fim, na fototeca, apesar de bastante coisa estar digitalizada, temos em torno de 10 mil imagens no acervo. 

Luciana Brito segura um dos 300 mil objetos arqueológicos que compõem o acervo do Museu Joaquim Felizardo / Crédito: Eduarda Ferreira

Com um acervo tão grande e extremamente importante, como é feita a preservação de todos esses objetos?

Luciana Brito – Essa é uma casa antiga, que também é um patrimônio antigo tombado, então a gente tem uma certa dificuldade no que diz respeito à conservação do local e dos acervos. Aqui em cima, por exemplo, não temos climatização, é necessário fazer todo um sistema de ar-condicionado central, o que é é caríssimo, porque não pode ter máquinas na fachada e nem fazer buracos na parede, para preservar o patrimônio. E tudo o que a gente for fazer tem que pedir autorização para a EPAHC [Equipe do Patrimônio Histórico e Cultural]. Então, tem uma certa dificuldade. 

O porão, onde fica o acervo arqueológico, é climatizado por exigência do Ministério Público, uma vez que todo esse acervo arqueológico que nós temos é da União, a gente só salva-guarda. E o MP exigiu que fosse colocado climatização lá. 

No resto, temos apenas desumidificadores. A gente faz o que pode, dentro das nossas limitações por falta de orçamento. O problema é que para a preservação das peças é essencial ter o controle da temperatura. Se a temperatura está alta e tem muita umidade, provavelmente vamos ter fungos, o que  vai deteriorar os materiais e documentos. Um exemplo é a fototeca, que é um lugar super úmido, onde a gente tem apenas um desumidificador e que acabou de estragar. E a fotografia é um dos objetos que mais danifica em função da umidade. Então, agora temos que entrar com um projeto para viabilizar a compra de desumidificadores. 

Você mencionou que essa casa é um patrimônio tombado. Qual a história do museu?

Luciana Brito – A ideia de criar o Museu de Porto Alegre é bem antiga. O Walter Spalding, lá nos anos 1940, já comprava coleções e guardava. Depois, esse acervo dele foi desmembrado porque tinha de tudo, e uma parte veio para o museu. Essa casa é do final do século 19, do ano de 1846, mais ou menos, quando ela começou a ser construída, e ela é um dos poucos remanescentes desse estilo arquitetônico que já é uma transição do estilo colonial para o neoclássico. Então, a gente diz que ele é um estilo de transição. O porão alto e a fachada principal virada para a rua, assim como o jardim na frente, são coisas do estilo clássico, por exemplo. 

Inicialmente, essa casa foi ocupada pela família do Lopo Gonçalves. Na época, esse local era considerado fora do limite urbano da cidade, então, era uma casa de campo da família. Depois, ampliam a casa e a família do Lopo Gonçalves vem morar aqui por um longo período. Nos anos 1940, a casa é vendida para Albano Volkmer, um empresário alemão, e aqui passa a funcionar por muito tempo uma fábrica de vela de cera. Foi nessa época que escavaram o porão, para expandi-lo. Existem algumas suposições de que o porão podia ter sido uma senzala, mas muita gente já descarta essa ideia, por ele ser muito baixo e ter uma ótima estrutura. As senzalas geralmente não tinham toda essa estrutura. Então, o que se acredita é que a senzala que existia aqui era uma construção mais precária e à parte da casa, que com o tempo foi demolida.  

Em função da fábrica, eles dividem a casa em pequenos quartos para os funcionários morarem. Com isso, por fim, a ideia era demolir a casa e construir um condomínio para abrigar melhor os funcionários. Mas ela já era um dos poucos remanescentes dessa arquitetura de transição, e nos anos 1970 começa um movimento de intelectuais gaúchos em favor da preservação da casa. 

Eles conseguem sucesso com o movimento e a prefeitura da época faz uma permuta e dá um outro terreno para ser construído esse condomínio para os funcionários da empresa e fica com a casa. Em 1979, sai o decreto para instituir o Museu nessa casa. Mas antes disso ela precisou passar por uma restauração e, se não me engano, foi o primeiro grande projeto de restauração aqui em Porto Alegre, seguindo todos os parâmetros da época. Então, nos primeiros anos, o Museu funcionou em um outro prédio, na atual rua Lopo da Costa, em uma casa que já foi demolida. Depois, ele vem prá cá. Mas desde o momento que se pensou em preservar essa casa foi com a intenção de fazer dela o Museu de Porto Alegre. 

 Como você vê a importância deste museu para a cidade e, principalmente, para as pessoas?

Luciana Brito – A nossa missão como Museu de Porto Alegre é preservar e comunicar a história da cidade. Ele é extremamente importante porque disponibilizamos uma parte significativa do acervo para as pessoas conhecerem, e ele conta essa história de Porto Alegre e do seu povo. É interessante perceber que quando o Museu começa, ele tem uma característica específica, de reunir um acervo da elite, que tem aqueles objetos da classe dominante, e com o tempo ele vai incorporando novos acervos afro-brasileiros, indígenas e pré-coloniais. Afinal de contas, a história de Porto Alegre começa muito antes dos açorianos, né? E é importante dar visibilidade a esses povos originários que estavam aqui muito antes. 

A gente sabe que quando se comemora o aniversário de Porto Alegre, na verdade, estamos comemorando o aniversário da chegada dos europeus colonizadores. Mas esse lugar já era habitado, já tinha uma população que vivia aqui, produzia aqui, tinha sua cultura, enfim. Então, acho que é bacana essa possibilidade de dar visibilidade para os diversos atores que construíram esse território. 

Além disso, a própria casa é um monumento, um patrimônio da cidade, e mais do que isso é um monumento que é representativo de um período, coisa que a gente quase não vê mais aqui. E o museu fica na Cidade Baixa, que era um teritórrio negro por tradição. Claro que a gente tem essa herança do local, onde certamente pessoas foram escravizadas, mas é justamente importante também resgatar a história dessas pessoas. 

Falando em tornar o Museu e o acervo mais conhecido, vocês têm projetos educacionais? Como eles funcionam?

Luciana Brito – A gente tinha vários projetos. Tinha um setor educativo muito atuante, mas, infelizmente, as duas funcionárias que tocavam essa parte se aposentaram no começo desse ano. Então, agora a coisa está meio parada e estamos tentando trazer alguém da área da educação para retomar esses projetos. 

Mas a gente tinha muitas iniciativas, como o projeto Museu Para Todos, que era bem inclusivo e trabalhava com instituições como a Fundação de Assistência Social e Cidadania [FASC] e a Fundação de Atendimento Sócio Educativo [FASE], trazia jovens em situação de vulnerabilidade, também tinha encontros especiais com grupos de idosos, para que essas pessoas pudessem conhecer o Museu e ter um espaço de troca. Uma das coisas mais legais era quando vinham os idosos, porque aí a Rosane, que era a servidora responsável pelo setor educativo, separava vários objetos muito antigos do acervo, como ficha de bonde, urinol, essas coisas, e fazia jogos e atividades com eles. Era bem divertido para eles resgatar as memórias, contar histórias que tinham a ver com esses objetos e afins. 

Tem também as Caixas de Memória, que é o único projeto que conseguimos continuar, por enquanto. A gente tem várias caixas temáticas de povos originários, povos africanos, cultura de Porto Alegre, música, arquitetura e etc, montadas com objetos do nosso acervo. Aí as professoras podem retirar as caixas, aqui pensando no desenvolvimento de atividades para sala de aula, usar e trazer de volta. Mas tem vários outros projetos e iniciativas que, por enquanto, terão de ficar parados até termos novas pessoas responsáveis por essa parte educacional, que é super importante. 

Foto: Cristine Rochol/PMPA

Aqui também é um dos únicos, se não o único, museu de Porto Alegre que conta com recursos de acessibilidade, certo? Qual a importância desses recursos? 

Luciana Brito – Temos uma acessibilidade parcial, mas que já é bem legal, com plataforma elevatória, banheiro acessível, audiodescrição das exposições e a maquete tátil do museu. Então, por exemplo, temos atualmente a exposição de fotos do Gilberto Perin, que conta também com objetos expostos em vitrines por toda a exposição. Durante a Noite dos Museus, a gente fez uma visita acessível por essa exposição. Além de disponibilizarmos a audiodescrição de todos os quadros, também disponibilizamos as duplicatas dos objetos que estavam expostos para que as pessoas pudessem tocar e senti-los, e aí explicamos a função desses objetos na fotografia, basicamente câmeras fotográficas e acessórios de revelação. 

Também durante a visita acessível, nessa exposição, a maioria das fotos do Perin são de pessoas importantes para a cidade, alguns são escritores, então selecionamos alguns trechos dos livros para ler. Outros são músicos, compositores, e colocamos alguns trechos de suas músicas para tocar. Tudo para tornar a experiência ainda melhor para essas pessoas que estavam prestigiando o Museu. 

Essa é uma questão que levamos muito a sério por aqui. Desde a pandemia, quando começamos a utilizar mais as redes sociais para compartilhar as peças do nosso acervo, todas as nossas postagens de fotografias, imagens de objetos e etc., possuem audiodescrição também. 

E essa iniciativa das postagens nas redes sociais também é uma forma de tornar o acervo mais conhecido? 

Luciana Brito – Sim, é uma forma de divulgar o que nós temos aqui e instigar as pessoas a virem conhecer o Museu. Foi uma alternativa que encontramos na pandemia, período em que o museu ficou fechado, e que permaneceu depois. Por exemplo, no ano passado a gente fez uma série de posts contando a história de Porto Alegre cronologicamente. Então pegamos eventos históricos, como a inauguração do Mercado Público, e nos dias específicos que marcaram as datas fizemos os posts ilustrando com objetos e fotografias do nosso acervo. 

Pesquisando sobre o Museu, me deparei com materiais do Programa de Arqueologia Urbana de Porto Alegre. O que ele é e qual a importância desse programa?

Luciana Brito – A gente aqui tinha uma arqueóloga que se aposentou em 2019, a Fernanda Tocchetto, que é a responsável por esse programa. Foi através dele que começou esse movimento de ter a preocupação de sempre que tem uma nova escavação arqueológica em Porto Alegre, ter o cuidado de fazer o salvamento dos objetos encontrados e que contam muito sobre a história da cidade. Hoje existe muita pesquisa acadêmica, mestrados, doutorados, que versam sobre esses objetos arqueológicos que foram encontrados em Porto Alegre, e tornam possível a gente conhecer a nossa própria história, das pessoas que habitavam aqui antes de nós, de como elas viviam e tudo mais. 

Esse programa partiu dessa vontade de salvar esses objetos importantes, e em alguma medida, ele continua, principalmente no monitoramento arqueológico das obras que já foram resgatadas. 

O que a gente tem bastante também é parceria com outras instituições. Recentemente, a gente emprestou material para a reinauguração do Museu Paulista, eles fizeram aquela exposição sobre os 200 anos da Independência e foi acervo daqui para lá. O Instituto Moreira Salles também fez, no início do ano, a exposição “Moderna Pelo Avesso” e foram fotografias do nosso acervo. Agora, vai abrir uma exposição no Museu do Inter sobre o Vicente Rao, e também levaram imagens daqui para a exposição. Então, essa também é uma forma de divulgar o acervo da nossa instituição. 

Estivemos aqui na última edição da Noite dos Museus, e uma coisa que chamou atenção foi a quantidade de pessoas interessadas na exposição “Patrimônio Imaterial: As Lendas Urbanas de Porto Alegre”. Como essa exposição foi constituída? 

Luciana Brito –  O material que usamos como base nessa exposição é uma pesquisa da historiadora e servidora da prefeitura, Marli Rejane. Ela fez toda essa pesquisa sobre as lendas urbanas de Porto Alegre para servir de base para o projeto de tombamento das lendas como patrimônio imaterial. Então, essas lendas da exposição, atualmente são tombadas, e a gente pegou como base a pesquisa dela e algumas outras informações, como a da Rua do Arvoredo, que até há pouco tempo a gente tinha o processo original ali exposto, mas resolvemos devolver porque é um documento antigo e frágil. É interessante, porque todo aquele lado da lenda que está no imaginário da cidade, mas tem um processo que é real, de crimes que aconteceram.

Então, a gente discutiu muito essas informações com a Mari Froner, que é a Artista Visual que traduziu essas histórias e fez desenhos muito legais que ilustram as lendas, estão expostos. Pensando na acessibilidade, foi feita a audiodescrição e os desenhos em relevo, já que eles são desenhos de linhas e mais simples, deu muito certo. As pessoas podem sentir os traços para entender a ilustração. No geral, as crianças amam essa exposição e tem chamado muito a atenção de quem passa por aqui. 

* Estudante de Jornalismo da Unisinos. Essa entrevista é uma parceria do Nonada com a Beta Redação, portal experimental do curso de Jornalismo da Unisinos, e foi realizada sob supervisão dos professores Débora Lapa Gadret e Felipe Boff.

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