Ellen Alves, especial para o Nonada Jornalismo
Rio de Janeiro (RJ) — A história do bairro de Santa Cruz, na zona oeste do Rio de Janeiro, é marcada por desafios, luta e resistência. Seu passado escravista é prova disso. A região começou a ser povoada em meados do século 16 e, por muito tempo, foi território da Real Fazenda de Santa Cruz, a mais desenvolvida do Rio de Janeiro. O local era conhecido pelo notável número de escravizados, atividades agropecuárias e diversos tipos de cultivos com técnicas avançadas para a época.
Nos séculos 18 e 19, havia em Santa Cruz uma espécie de “criadouro de escravos”. A prática está diretamente ligada ao crescimento endógeno da população, isto é, a população de escravizados era feita por crescimento vegetativo, sem o ingresso por meio do tráfico de pessoas. Segundo o historiador Carlos Engemann, o processo resultou numa teia familiar entre os escravizados da região. Atualmente, em meio ao descaso e esquecimento do poder público, reside na região uma comunidade negra pujante e preocupada com a manutenção de sua história e ancestralidade.
Um exemplo do trabalho de valorização do saber local fica na Comunidade do Mineiro Pau, que recebe esse nome devido a uma dança afro-brasileira que marcou a localidade a partir do século 20 e que resiste à tentativa de apagamento e a atos de racismo religioso na região. Em maio de 2023, a expressão cultural foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial da Cidade do Rio de Janeiro pela Câmara Municipal.
O Mineiro Pau tem origem nas lavouras de café cultivadas por escravizados africanos em cidades na divisa entre Minas Gerais e Rio de Janeiro. A dança se manifesta pelo manejo de bastões de madeira, formados por duplas, onde um bate e o outro defende em sincronia. Os pares se movimentam ora em fileiras opostas, ora em círculo, seguindo a marcação dos bastões. O acompanhamento musical conta com sanfona, zabumba, pandeiro, triângulo e chocalho. A dança conta também com um grupo de cantores (pastorinhas) responsáveis pelos cânticos.
Há diversas maneiras de brincar o Mineiro Pau. Originalmente a dança era praticada apenas por homens adultos, e às mulheres e crianças era permitido desempenhar o papel de pastorinhas. Na releitura da dança realizada na comunidade homônima, todos e todas dançam e cantam, independente da idade e identidade de gênero, e alguns elementos dramáticos e alegorias também são incorporadas na dança.
Assim como outras manifestações da cultura popular, o Mineiro Pau tem a inserção dos três elementos da cultura brasileira: o negro, o indígena e o europeu. Isso se reflete desde a vestimenta dos brincantes às terminologias usadas nas canções que embalam as danças. Em Santa Cruz, ela chega nos anos de 1930 por intermédio de um morador da região, Seu Valdemar Madalena, nascido na cidade fluminense de Santo Antônio de Pádua, onde o Mineiro Pau também é preservado e repassado de geração a geração.
Não se trata de coincidência a comunidade do Mineiro Pau ser a “sede” da manifestação da dança na cidade do Rio de Janeiro. A dança encontrou na comunidade o ambiente propício para fincar suas raízes. Segundo relato de moradores antigos, o Mineiro Pau foi por muito tempo a principal atividade de lazer da região e é parte de uma memória empoderadora.
“Valdemar vem morar em Santa Cruz e traz essa cultura, começa a implementar o Mineiro Pau para a comunidade, para as pessoas e junto disso vão surgindo outras manifestações, como quadrilhas de festa junina, um bloco de carnaval e um time de futebol. Era tudo muito organizado, tudo focado nesse fomento da cultura local. E o Mineiro Pau foi por muito tempo a principal atividade que acontecia aqui”, diz Pedro Madeira, assistente social e presidente da Obra Social Filhos da Razão e Justiça (OSFRJ), local onde é ensaiada a prática do Mineiro Pau em Santa Cruz.
Conexão, preconceito e resgate
Os anos seguintes à chegada da dança na comunidade de Santa Cruz foram marcados por uma forte conexão com a ancestralidade africana. No entanto, após a morte de Seu Valdemar nos anos de 1990, os laços de sociabilidade e construção de memória trazidos pela prática do Mineiro Pau foram alvos do apagamento sistêmico. Com o aumento da violência social e, sobretudo, a expansão das igrejas neopentecostais, as práticas culturais afro-brasileiras foram diminuindo na comunidade.
“Na minha perspectiva, enquanto historiadora, gosto de usar o termo ‘demonização’ porque eu acho que de fato aconteceu isso. As pessoas começaram a colocar o Mineiro Pau nessa categoria de que “não é correto aos olhos de Deus” por ser uma manifestação africana. Houve esse processo de apagamento e o que a gente faz hoje em dia na prática do Mineiro Pau é para que isso seja recuperado”, revela a pesquisadora histórica da OSFRJ, Julia Madeira.
O resgate e valorização da ancestralidade e cultura negra na comunidade passou a acontecer em 2019 com o Jongo. Expressão afro-brasileira que integra a percussão de tambores, dança coletiva e louvação aos antepassados, o Jongo foi determinante para a volta e popularização da prática do Mineiro Pau, que estava esquecido depois da morte de Valdemar.
“O Jongo foi muito importante nesse desenrolar da história no hiato em que a gente não conseguiu estabelecer a prática do Mineiro Pau. Conhecemos a Associação Sementes d’África que é um grupo de Jongo tradicional do interior do estado, trouxemos para cá e aplicamos a nossa vivência. Nesse mesmo ano, o Jongo virou uma febre”, diz. Apesar do sucesso entre os brincantes, há relatos de violência religiosa na comunidade durante esse período. Na primeira apresentação de Jongo no Morro do Mineiro Pau algumas crianças chegaram a ser agredidas verbal e fisicamente nas ruas da comunidade, contam os moradores.
Brincadeira popular como herança cultural
Doca do Acordeon, Alexsandro e Danilo são músicos e brincantes de Mineiro Pau. O trio reconhece a importância da retomada da prática como algo positivo para os moradores do Morro. “É um trabalho muito bonito, muito importante para nós.”
Tão importante quanto a atual manifestação popular são os depoimentos dos ancestrais. Seguindo esse hábito africano, o mestre André Luiz da Cruz, coordenador cultural da OSFRJ foi, em 2017, ouvir os mais velhos da comunidade a fim de resgatar a memória da prática do Mineiro Pau. Com base nos relatos e experiências contadas, foi montada a primeira dança do grupo Valdemar Madalena, nomeado em homenagem ao mestre, com crianças da região.
“Depois dessa reunião em 2017, surgiu a vontade de trazer soluções inclusivas para a comunidade majoritariamente preta. Essa noção de ‘afrobetização’ ajudou a colocar o Mineiro Pau como ferramenta de herança cultural”, relata Mestre André.
Hoje, o grupo conta com 35 pessoas, entre brincantes, músicos e cantores. A pretensão é que seja maior.
No documento de reconhecimento da expressão como patrimônio cultural do Rio de Jeneiro, consta que “patrimonializar a dança Mineiro Pau, importante para a história do povo negro do Brasil e especialmente do povo negro que se territorializou em Santa Cruz, com toda sua existência e manifestações culturais, é necessário para iniciar um movimento de reparação e valorização.”.
Mas muito antes do reconhecimento do poder público, foi preciso resgatar o reconhecimento dos locais. “Por muito tempo aqui foi um local onde as pessoas não se reconheciam enquanto pessoas negras e aqueles que se reconheciam, rejeitavam essa questão. A autoestima baixa contribuiu para que os moradores negassem sua história, suas origens e desvalorizassem (o Mineiro Pau)”, explica Mestre André.
Diante das alegrias e dificuldades ao longo de décadas, hoje, os moradores do Morro do Mineiro Pau podem afirmar com orgulho o florescer de sua ancestralidade e o desenvolvimento da identidade local a partir de uma expressão cultural.
Ellen Alves
Ellen Alves é jornalista, redatora, apaixonada por carnaval e fã da cultura popular. Carrega consigo o interesse em descobrir diferentes formatos e narrativas. Escreve sobre raça, gênero, cultura, meio ambiente e educação.