Foto: Murilo Alvesso/Observatório Itaú Cultural

O espiralar na arte: como a obra da intelectual Leda Maria Martins inspira a 35ª Bienal de São Paulo

Os paredões curvos do Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, vão, de fato, curvar-se na  35ª Bienal de São Paulo. As estruturas sinuosas e espiraladas do prédio que a cada dois anos abriga a maior exposição de arte do Brasil receberão uma proposta que convida a pensar em perspectivas não-lineares de arte e de tempo. 

Como ensinam as filosofias africanas, para começar a entender um assunto, precisamos nos mover em direção ao seu fundamento – aquilo que lhe dá origem, que está em seu umbigo, em sua criação. Se desejamos nos aproximar das Coreografias do Impossível, título da mostra que abre em 6 de setembro, precisamos perguntar: Qual é o fundamento do projeto curatorial desta Bienal? Uma das respostas possíveis é: Leda Maria Martins. 

A poeta, ensaísta, dramaturga e professora da UFMG é referência para concepção do projeto curatorial de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel. Pioneira no estudo do campo da performance no Brasil, Leda inspira a ideia de Coreografia trazida este ano. Seu conceito Dançar é Inscrever no Tempo nomeia o primeiro material educativo da edição, lançado em maio como publicação física e digital.

Entre os livros de sua autoria estão O moderno teatro de Qorpo-Santo (Ed. UFMG, 1991), A cena em sombras (Perspectiva, 1995) e Afrografias da memória (Perspectiva, 1995), e o mais recente Performances do Tempo Espiralar: poéticas do corpo-tela (Cobogó, 2021) onde Leda revisita – ou coreografa – uma longa pesquisa sobre pensadores africanos e afro-diaspóricos que apresentam novas possibilidades de ver o tempo, de perceber a ancestralidade e a própria ideia expandida de performance. No livro, em uma escrita simultaneamente poética e acadêmica, a autora nos presenteia com um mergulho nas noções de afrografia, oralitura, corpo-tela e tempo espiralar – cernes de seu trabalho e também da próxima Bienal. 

Ao ouvir o título Coreografias do Impossível, já se sabe que o corpo ocupará lugar privilegiado durante a mostra, que até agora conta com 43 nomes, entre 37 artistas, quatro duplas e dois coletivos. A lista final será divulgada em 22 de junho, e a Bienal abre em setembro. “As corporeidades estão em tudo. Expor o lugar privilegiado do corpo como inscrição e instalação dos saberes mais diversos, inclusive estéticos, habita as artes”, explica Leda em entrevista ao Nonada Jornalismo

Os curadores da 35ª Bienal de São Paulo (Foto: Levi Fanan/divulgação)

A curadoria diz “sim” ao paradoxo de dançar o impossível, pois o incorpora. A própria ideia de ser um paradoxo, ou uma “contradição”,  informa que estamos julgando desde um corpo infiltrado de perspectivas ocidentais de conhecimento. Para as diversas matrizes africanas, e até mesmo no princípio cosmológico de Exu, o que achamos que não pode coexistir – em nossas limitações ocidentais -, na verdade, pode. 

“A curadoria foi muito feliz em pensar nessas Coreografias do impossível, que na verdade, são do possível. É do que a gente rotineiramente elabora e que as artes exploram de uma forma densa e intensa”, analisa Leda, congadeira e consagrada Rainha de Nossa Senhora das Mercês da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário no Jatobá, em Belo Horizonte. 

Para o professor da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) Thiago Pirajira, Leda Maria Martins integra uma “verve” do pensamento contra-colonial que reposiciona a ordem das matrizes criativas há muito tempo. “Ela está entre as nossas grandes intelectuais artísticas, que toma as subjetividades negras como produtoras de conhecimento em arte”, explica Pirajira. “A Professora Leda pensa o corpo negro sob um ótica desobjetificada. Uma ótica da liberdade. Ela se insere na complexidade de um corpo negro liberto, que é a grande chave para pensarmos as relações coloniais no mundo.” 

Coreografar novas e antigas danças 
Leda Maria Martins (Foto: Paulo Bernardo)

Em Performances do tempo espiralar, Leda nos apresenta a ideia de que o tempo ocidental, sucessivo, cumulativo, “que apenas anda para frente”, não é compatível com as cosmos-percepções africanas e afro-diaspóricas. É nesta ideia de tempo espiralado, que faz movimentos de retrospecção e prospecção, contração e dilatação, que a curadoria da Bienal inspira-se para conceber a mostra. Assim, a divisão “passado-presente-futuro” não se fará presente nas falas dos curadores e dos artistas. 

Também não encontraremos a exposição dividida em núcleos temáticos e os grupo de artistas não será identificado por nacionalidade, já que para muitos delus, não faz sentido a divisão colonial de Estado. É como escreve Denilson Baniwa: “Não existe cartografia no mundo dos pajés”. 

Tudo aquilo que é fronteira, que se divide muito bem em “norte e sul” ou “histórico e contemporâneo” não parece interessar aos quatro curadores. Nessas escolhas, Leda Martins analisa: “A equipe desta Bienal tem um pensamento muito engenhoso e criativo. O próprio fazer e a produção da exposição é, em si mesma, uma atividade de criação.” 

Então, o que seria o impossível a que se referem? Impossível aos olhos de quem? Diane Lima explica que “esses contextos impossíveis dizem respeito às leis, às normas, às violências que regulam, restringem e impossibilitam a possibilidade do movimento.”  Há uma desobediência ao estabelecido, seja pelo Estado, pela política, pela história, ou qualquer representante do poder que impeça – materialmente, simbolicamente ou espiritualmente – o deslocamento do corpo, em especial, do corpo negro, indígena e não-branco. Na primeira lista de artistas divulgada, 92% dos artistas são não-brancos.  

O conceito de coreografia trazido pela Bienal não se restringe às artes da cena ou da performance, mas considera que os gestos e os movimentos inseridos nas práticas sociais – como a religiosidade afro-centrada – também são coreografados. “As Coreografias do Impossível apresentam estratégias e políticas do movimento que um conjunto de práticas artísticas e sociais vem criando, tanto para imaginar mundos, quanto para acelerar o fim do mundo onde as ideias de liberdade, justiça, e igualdade são realizações impossíveis”, reflete a pesquisadora Diane Lima na mesa de anúncio da lista parcial. 

Afrografias 

No livro mais recente de Leda, que integra a coleção Encruzilhada, da editora Cobogó, ao lado de outros títulos como Homos modernus – para uma ideia global de raça, de Denise Ferreira da Silva, a professora defende o corpo como um lugar onde o saber se inscreve. As provocações giram também na recusa da dualidade entre “escrita” e “oralidade”, tão reforçadas pela academia eurocentrada, pois para os diversos pensadores africanos estes são apenas modos distintos de fazer com que os saberes sigam ecoando no tempo. Logo, a coreografia é também uma forma de afrografar – de dar continuidade aos saberes.

“Nós somos a própria coreografia do impossível em si. Nos formamos com a consciência de que somos pessoas completamente diferentes, com biografias, competências e geo-políticas diferentes, e é exatamente essa diferença que nos uniu”, afirma a artista e curadora Grada Kilomba na mesa que anunciou a lista inicial de artistas. A própria formação do coletivo curatorial, sem a figura do ‘curador-chefe’, é uma desobediência, é uma maneira de questionar posicionamentos hegemônicos. 

As curadoras e curadores também se fundamentam no pensamento de outras teóricas contemporâneas como Saidiya Hartman e Denise Ferreira da Silva, para quem o impossível não é o contrário do possível, assim como o passado não é separado do presente e do futuro. As categorias ocidentais do pensamento são amplamente debatidas no que Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Borja trazem ao pavilhão. 

Essa espécie de virada, que escapa de respostas duais, pede ao espectador – ou espectator, como lembra Leda, que também se posicione de uma maneira diferente. Para as curadoras, o desejo é que o espaço expositivo gere novas questões, que quem sabe, em espaços de arte, ainda não tenham sido feitas. Ou que já tenham, porque a obra de Leda também nos ensina que “repetir é recriar”. 

Espiralar o tempo
Outros Fundamentos, obra de Aline Motta (Foto: divulgação)

“Eu faço do meu corpo um altar/ nele um morto pode dançar” é um poema de Aline Motta, que integra a lista inicial de artistas desta edição da Bienal. Ele parece condensar o que significa o tempo espiralar que Leda apresenta em sua obra. Não é um tempo onde não há passado e futuro. Existem, porém as fronteiras entre eles não são tão rígidas quanto as que conhecemos. 

Esta temporalidade “com dobras” é importante para irmos além da perspectiva de causa e consequência, ou seja, de que o presente é consequência direta de um passado – esse imutável e irreversível. Na obra de Leda, o tempo ganha uma característica: há reversibilidade. Ela acontece a partir da dança, das coreografias, das expressões artísticas e sociais. 

Aqui, o tempo não caminha só para frente, mas também a partir de “voltejos” – termo que costuma utilizar. São também coreografias de retorno. “O voltejo traz consigo o presente, passado e as possibilidades de futuro, tudo em uma coisa só. É um pensamento que nos permite respirar. Ele é extremamente insurgente e revolucionário, porque todas as relações humanas, interpessoais, sociais, trabalhistas, adquirem nova perspectivas.” 

T(H)READ, de Nontsikelelo Mutiti, artista integrante da 35ª Bienal de SP (Foto: divulgação)

A relação com o tempo aparece nas produções dos artistas selecionados. “Todos esses artistas engendram outras temporalidades, não necessariamente progressivas”, explica o antropólogo e crítico Hélio Menezes. “Mas, talvez, Leda Maria Martins nos ensine com as performances de um tempo espiralar, feito de descontinuidades sobre um tempo que não apenas volta, porque muitas coisas não deixaram de estar presentes. Um tempo de hoje que talvez seja similarmente coincidente com muitas realidades e impossibilidades que já vivemos no século 16.”

Se a ideia de coreografia nos remete a uma série de movimentos, podemos brincar em substituí-la por outras, como sacolejos do impossível, gingados do impossível. “São artistas cujas propostas estéticas têm uma provocação à imaginação, para além da resposta à violência. E se nos permitimos sonhar? Dançar? E se nos permitimos imaginar outros mundos que, por vezes, escapam das violências que atravessam todos os nossos corpos”, convida Hélio. 

Fugir do previsto 

Diane Lima acredita que é parte da função das práticas artísticas desafiar o seu próprio tempo. Provocar o que está estabelecido também vem na forma como os artistas desta bienal produzem, afastando-se de uma ideia de representação, muito firmado nos últimos tempos. A partir do trabalho de artistas como Torkwase Dyson e Tadaskia, entendemos que há uma virada para a abstração. E, de novo, não é um movimento de reafirmar dualidades (abstração x representação), mas de fugir do previsto, ir além. Como diz Grada Kilomba: “A maior urgência talvez seja não repetir o que já se sabe e já se conhece, mas entrar em uma plataforma do desconhecido.” 

Para o curador Manuel Borja-Villel, o projeto curatorial acredita na importância política do enigma, daquilo que não se pode entender plenamente através da explicação. Do que só pode ser sentido, dançado. “Essa Bienal não pretende ser enciclopédica”, afirma. Para Diane, em muitos momentos, os espaços de arte, vistos como elitistas, acabam por subestimar o público. “Eu acho que faz parte do nosso desafio criar um espaço onde as próprias obras possam produzir efeitos e criar comunicações que excedem o racional.”

É neste lugar que reside a importância dos outros sentidos, tão caros à produção de saberes afro-diaspóricos. “Ao longo dos séculos, a própria civilização ocidental foi dando menos importância à escuta e à sonoridade, como naquela ideia grega de que os olhos são a janela da alma. É uma imagem que privilegia a visualidade”, reflete Leda. 

Leda Maria Martins (Foto:divulgação)

“Porém, quando pensamos na história da humanidade, possivelmente nós dançamos o som primeiro, antes de escrevê-lo como imagem visual.” Este olhar maior para abstração, e também para outros sentidos, como acontece no trabalho da cantora lírica Inaycira Falcão dos Santos, que comissionará um disco para Bienal, é uma espécie de fuga. 

Pirajira lembra da ideia de fujitividade, do filósofo Dénètem Touam Bona, autor do livro Cosmopoéticas do Refúgio (2020, Ed.Cultura e Barbárie). “Precisamos desfragmentar o sentido colonial de que fugir seria algo pejorativo. Se temos a ideia de fuga desde a experiência negra, ela recusa o sentido linguístico e se refunda com uma dimensão de liberdade”, explica o artista e doutor em artes cênicas. “Mais do que refutar uma ideia colonial, é apresentar possibilidades, caminhos de pensar, estar e agir no tempo.”

É também o que diz Leda: “É um corpo que traduz essas desamarras. É um corpo que se quer e se propõe em um estado de disponibilidade para a liberdade”. Essa liberdade pode ser entendida também sob a perspectiva da criação, onde possa haver lugar para criar além da demanda da representação. 

Afastando-se de dicotomias, categorias e até mesmo “disciplinas”, a professora acredita que o corpo da exposição – constituído por artistas, curadores, educadores e toda equipe – pode tornar-se um lugar de produção de conhecimento, que cruza diferentes áreas, dentre elas os saberes estéticos e criativos, mas também os filosóficos, pedagógicos, e os que têm a ver com a espiritualidade e o sagrado.

O pensamento contra-colonial não está encaixado nas categorias que o modo eurocêntrico ensina. “Por que a professora Leda propõe algo que cabe em diversos campos? Por que a Conceição Evaristo é da literatura mas é lida em diversas áreas? Por que a Beatriz Nascimento fala de história, mas faz poesia?”, provoca Pirajira. Transitar entre as áreas é uma escolha epistemológica, conceitual e estética. 

A obra de Leda fala de uma encruzilhada como modo de produzir saberes e conhecimentos. Nosso movimento de aproximação com o tempo espiralar, e com as Coreografias do Impossível da Bienal, então, pode ser na companhia de Exu. Ele, incapturável; Ele, que ontem mata o pássaro com a pedra que atirou hoje; Ele, que está nos quatro cantos ao mesmo tempo. Exu escapa de qualquer movimento de aprisionamento – não é de sua natureza. A 35ª Bienal de São Paulo escapa de quaisquer categorias ocidentais de pensamento – não são mais de sua natureza. 

O que ler, ver e ouvir para coreografar junto à Bienal: 

1. Performances do tempo espiralar: Poéticas do corpo-tela (2021), de Leda Maria Martins / Editora: Cobogó .

2. Quando o sol aqui não mais brilhar: a falência da negritude (2021), de Castiel Vitorino Brasileiro / Editora: N1_Edições

3. Dançar é inscrever no tempo (2023), Material Educativo da 35ª Bienal de SP 

https://www.bienal.org.br/biblioteca/publicacao-educativa-35a-bienal-primeiro-movimento

4. A água é uma máquina do tempo (2022), de Aline Motta / Editora: Fósforo 

https://www.fosforoeditora.com.br/catalogo/a-agua-e-uma-maquina-do-tempo

5. Okan Awa – Cânticos Da Tradição Yorubá (2002), álbum de Inaicyra Falcão dos Santos 

6. Irokó (2023), álbum de Tiganá Santana e Omar Sosa 

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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