Foto: @satodobrasil

A quebrada é matriarcal: grafiteiras e pichadoras lançam manifesto contra o machismo na arte urbana

Mulheres grafiteiras e pichadoras publicaram nesta segunda (11) um manifesto contra o apagamento de gênero nos espaços dedicados à arte urbana. O documento é uma resposta à mostra Além das ruas: histórias do graffiti, com curadoria de Binho Ribeiro, em cartaz no Itaú Cultural, em São Paulo. No último domingo, um coletivo de mulheres ocupou a instituição cultural em protesto contra a mostra e contra o curador. De acordo com as artistas, algumas das obras selecionadas foram expostas com cortes. Elas também criticam falas do curador em um documentário de 2018 sobre grafite, no qual ele diz que “menina que quer fazer grafite não vai ter tempo pra fazer a unha e arrumar cabelo”. No documento, as mulheres alertam para o apagamento “de forma mais grave em relação às mulheres periféricas, racializadas e dissidentes de gênero”. Também questionam o apagamento da pixação nos espaços hegemônicos da arte. “Promovem com isso um cenário anêmico de higienização estética da cultura de rua, privilegiando um evolucionismo do kit spray que eles mesmos criaram, onde figuram como centro e régua”, diz o manifesto, em referência à linha curatorial da mostra.

Em nota, o Itaú Cultural afirmou que está construindo uma série de ações em conjunto com as mulheres, incluindo oficinas e ações de intercâmbio. “Ao dialogarmos com o grupo que questionou a representação, compreendemos ainda mais que devemos seguir ampliando o entendimento sobre a cena das artes urbanas e seus diversos protagonistas. Nesse processo de escuta e diálogo, encontramos caminhos para trazer as temáticas com ações idealizadas entre a instituição e esse coletivo. Faremos atividades a curto, médio e longo prazo (…) Em um primeiro momento faremos uma série de quatro oficinas, a serem realizadas em julho com a mostra ainda em cartaz, no espaço expositivo. A programação Para além das ruas aborda as possibilidades de pertencimento, resistência e enfrentamento de mulheres no cenário do grafite.” (Leia a nota completa ao final do manifesto).

Confira na íntegra o manifesto do coletivo Graffiteiras BR: 

“Pique Pedro Álvares Cabral eles se dizem pioneiros…”

E talvez estejamos mesmo atrasadas pra sair no álbum de fotos, mas onde sua vista não alcança o corre invisível de muitas malokêras espalhadas por esse território foi o alicerce da pulsação da cultura de rua!

Aquelas que, olhando na bolinha do olho dos polícia, dos pé de pato, das ditaduras políticas, econômicas e militares que asfixiam a periferia, sempre estiveram na linha de frente pra criar formas de vida nutritivas pra geral. Quando o cenário é de guerra, quem lutou pelo asfalto, pela creche, pela casa de cultura? Se o fervo das ruas teve um berço, se hoje podemos ter o respiro de nos espalhar em cores pelos muros, um salve a elas! Guardiãs infinitas do espírito imortal da estratégia do cuidado e união.

Toda quebrada é matriarcal, máximo respeito à tática comunitária do acolhimento!!!

Saudamos sua atuação e memória política e recusamos a conciliação cara-pálida com as instituições e sujeitos financiados que se autodeclaram curadores, há décadas promovendo, sistematicamente, o projeto de APAGAMENTO das histórias do fundão, e de forma mais grave em relação às mulheres periféricas, racializadas e dissidentes de gênero.

Enunciamos que esse projeto vem desenhando curadorias coloniais centradas em INDIVIDUALISMO, COMPETIÇÃO, MERITOCRACIA, MISOGINIA, RACISMO, CLASSISMO, SÍNDROME DO PIONEIRISMO que se constroem partindo de recortes toscos que esses agentes retiram do Sistema da Arte.

Promovem com isso um cenário anêmico de higienização estética da cultura de rua, privilegiando um evolucionismo do kit spray que eles mesmos criaram, onde figuram como centro e régua: filhos do senso comum, decorativos nas ideias e na prática, gerando uma verdadeira CULTURA DO JOELHO DOBRADO.

Dobram o joelho pro desenho hegemônico da cidade em troca de moedas, promovendo cada vez mais violência urbana ao se aliar ao senso comum vulgar e ignorante, que cria uma polarização entre FEIOS x BONITOS. Quem nunca presenciou zé povinho enchendo a boca: “bonitos são esses graffitis coloridos aí, pixação é feio, é vandalismo”. Quanta inocência criar curadorias alimentando uma visão colonizadora da cultura de rua… No entanto, da porta pra fora o bicho pega: Graffiti gourmetizado pra uns, criminalização, pobreza e encarceramento pra outras.

O graffiti, embora possa colar nos cubos brancos por aí, vivendo a contradição colocada pelo capitalismo, refaz todo dia o compromisso de quebrar o vidro entre o risco no muro e nossa vida cotidiana. A cultura de rua é afetada diretamente pelo projeto de genocídio em curso desde a chegada dos PIONEIROS das caravelas, sempre estivemos aqui contrariando o sistema. As lutas da sociedade são as lutas do graffiti, nossa força é proporcional às nossas escolhas, e se podemos disputar um imaginário, aqui estamos.

Onde sua vista não alcança, talvez acreditem que se trate de tinta no muro.

Onde sua vista não alcança,

É onde mora o fundamento.

(E o resto é segredo!)

Um salve a todas malokêras, pixadoras, trabalhadoras do graffiti, manas do vandal, mulheres negras, indígenas, sapatonas, monas, travestis, manos aliados, dissidentes de gênero, a todas as quebradas e matas desse imenso território e a força do que a sua vista não alcança!

A história é um caracol infinito de muitos começos, e cada pessoa tem uma estrela que não pára de brilhar. Saúde pra nóiz!!!

NÃO É SÓ TINTA!!!

Graffiteiras BR

Nota do Itaú Cultural:

O Itaú Cultural (IC) está atento e em conversas estreitas com participantes dos movimentos de artistas grafiteiras, que apresentaram questionamentos sobre representatividade na mostra Além das ruas: histórias do graffiti. 

O exercício da escuta é prática diária na construção das ações do Itaú Cultural, desde a sua criação em 1987. É com esse espírito que a instituição incentiva e promove atividades, apresentações e debates sobre as mais diversas questões contemporâneas, como as de raça, gênero, etnia ou de acessibilidade em conexão direta com todos os públicos.

A mostra Além das ruas: histórias do graffiti não é e não pode ser um apanhado definitivo da dimensão artística do campo no país, mas sim um recorte curatorial específico.

Ao dialogarmos com o grupo que questionou a representação, compreendemos ainda mais que devemos seguir ampliando o entendimento sobre a cena das artes urbanas e seus diversos protagonistas.

Nesse processo de escuta e diálogo, encontramos caminhos para trazer as temáticas com ações idealizadas entre a instituição e esse coletivo. Faremos atividades a curto, médio e longo prazo, como conteúdos no nosso site, atualizações de verbetes na Enciclopédia Itaú Cultural, intercâmbios entre artistas mulheres de diferentes regiões, atividades no próprio espaço expositivo e outras atuações. 

Em um primeiro momento faremos uma série de quatro oficinas, a serem realizadas em julho com a mostra ainda em cartaz, no espaço expositivo. A programação Para além das ruas aborda as possibilidades de pertencimento, resistência e enfrentamento de mulheres no cenário do grafite.

Estas ações e as próximas vem sendo pensadas, criadas e organizadas conjuntamente – entre as representantes de segmentos do movimento e as equipes do IC.  Ressaltamos que o Itaú Cultural está sempre aberto a aprimorar seus projetos se conectando cada vez mais com a diversidade e a pluralidade das cenas artísticas e culturais brasileiras. 

Compartilhe
Ler mais sobre
direitos humanos
Ler mais sobre
Direitos humanos Reportagem

Crianças trans como alvo: legislação existente não conseguiu barrar transfobia nas eleições