Andressa Algave, especial para o Nonada Jornalismo*
São Luís (MA) — Na noite da capital maranhense, pessoas pretas e LGBTQI+ se reúnem numa boate para uma festa. A discotecagem é cheia dos ritmos dançantes do vogue beat e do techno, que são acompanhados por danças elaboradas e roupas criativas na pista. Este é quase sempre o cenário das festas da subcultura ballroom, algo como baile de salão em português, que viraram ponto de encontro, troca e celebração de pessoas diversas pelo mundo todo.
A ballroom pode acontecer em qualquer lugar. A ideia principal é fortalecer uma comunidade através de um espaço de total liberdade artística, e para isso, alguns critérios são necessários. Na festa Afroball, que acontece em São Luís desde 2022, categorias são importantes: tem que ter Vogue, um estilo de dança nascido na década de 80 nos Estados Unidos e inspirado nas super modelos nas capas da icônica revista; looks de acordo com o tema das festas, que variam; e muita criatividade.
A designer e produtora da Afroball, Jozy Negroni, conta que para pessoas pretas, a ballroom é sobre espaços para se reunir com musicalidade. “A cultura preta sempre foi uma cultura que percebo ser formada de bailes. É sempre dançante”, ela explica. A ball também é sobre acolhimento – para isso existem as houses, casas guiadas por mothers e fathers, pais e mães, para serem a nova família dos que chegam. O novo lar dá suporte emocional, contatos importantes para poder ter uma fonte de renda e, muitas vezes, um teto.
O surgimento da primeira house é um dos eventos mais importantes para definir quando a primeira ball aconteceu. Na década de 1960, após se revoltar contra os critérios racistas nos concursos de beleza que participava nos Estados Unidos, a mulher trans e drag queen Crystal LaBeija inaugurou a primeira house: House of Labeija, que ficava no Harlem, periferia de Nova York. Pouca coisa além da música mudou na forma de se fazer as balls desde então – a cena continua composta por pessoas pretas e queers que procuram um ambiente de pertencimento.
No Maranhão, a cena é concentrada em São Luís e fomentada por designers, musicistas, DJs e performers. Houses como a House of Vyper, fundada pela performer Xen Vyper e pela designer Kash Vyper, e as balls Afroball e Marabaque, são exemplos de como a cultura tem sobrevivido e como vai além do entretenimento – ali, a ballroom abre portas e faz caminho para corpos dissidentes viverem da arte.
Um lar simbólico
“O surgimento da casa veio da necessidade de falar que somos uma família, nos escolhemos como família. Parte da vontade do ser humano de se mostrar leal a alguma coisa”, é o que diz a designer Kash Vyper, pessoa não-binária e uma das fundadoras da House of Hyper. A house surgiu em 2021 por iniciativa de Kash, Xen Vyper e Baby, para ser um lar simbólico de quem fomentava a cena ball. As “filhas” não moram juntas, mas se reúnem sempre que possível para produzir ou apenas para se divertir e conversar, característica da chamada cena Kiki.
As Kiki Houses, termo inspirado na gíria inglesa para fofocas, funcionam para criar lugares de acolhimento e balls menos competitivas do que as tradicionais. A cena foi criada como meio de confortar pessoas queers que vivem em vulnerabilidade – no país que mata uma pessoa LGBTQI+ a cada 32 horas, as houses são ambientes de suporte para receber conselhos, fazer contatos e amizades.
Um dos incentivos são os grand prizes, quantias em dinheiro para quem vence as categorias de dança e desfile nas balls. “É legal ter um grand prize interessante, principalmente para essas pessoas dissidentes, que muitas vezes não têm acesso a um trabalho direto. As balls podem ser esse meio financeiro”, explica a designer Kash Vyper. Os prizes variam de acordo com a verba para a festa acontecer: doações de lojas de maquiagem e costureiros também ajudam a manter o trabalho das performers.
“Acho que a cena ball, principalmente aqui no Brasil, está sempre ligada uma à outra. A maioria das pessoas se conhecem e isso tem se fortalecido com o passar do tempo”, diz Xen Vyper. A ajuda mútua entre quem fomenta a cena ballroom se torna mais fácil por ser uma cena underground, nome dado aos movimentos que valorizam os pequenos artistas. Essa força vem da regionalidade – além da de São Luís, a cena do município de Timon, a 426 km da capital, faz uma ponte entre o Maranhão e o Piauí, parte de uma teia entre as cenas no Nordeste.
No Instagram, pessoas que fazem o ballroom regional encontraram meios para manter uma rede de apoio: os perfis Ballroom Maranhão (@ballroom.ma) e None Ballroom (@noneballroom) servem como agendas culturais para manter o movimento ativo. As indicações de eventos são diversas: entre movimentos que ocupam praças, teatros e casas de eventos, ballroom é sobre a construção de espaços, conta Kash: “A gente sempre prioriza deixar as pessoas que vão performar seguras, tanto no ambiente quanto na hora da performance. Ter um [piso] linóleo para elas performarem e não se machucarem, por exemplo. Ballroom é sobre isso, sobre o meio urbano e street, sobre espaços que não nos pertenciam antes.”
Quem faz a ball acontecer
A designer e produtora Jozy Negroni, criadora da festa Afroball, lembra com carinho da festa Blondeball, onde foi como convidada de sua casa, House of Blyndex. Ela narra momentos de ansiedade que foram desde a viagem para São Paulo, que durou 14 horas, e o tremor nas pernas pouco antes de se reunir com outras pessoas que iriam participar da ball. “Quando eu vi todo mundo da house se arrumando, pensei, ‘meu deus, tá acontecendo’. No fim todo mundo já sabia quem eu era, o que eu fazia. É uma sensação de pertencimento. É isso que eu quero fazer a vida toda. Eu quero prover para as outras pessoas, porque é isso que nos empodera.”
Jozy, que também é performer, se dedica à cena desde 2020, quando iniciou o projeto Maranhão Kunty. A iniciativa foi contemplada pela lei Aldir Blanc após o concurso de dança Marabaque, em 2019, e a partir daí começou um movimento estável e produtivo. Durante a pandemia da covid-19, as atividades foram adaptadas: em 2020, ela manteve contato com Murylo Hills, fundador da casa paulista House of Blyndex, e quis saber como construir e fortalecer uma cena vogue.
A dedicação rendeu três edições do baile Afroball, produzido por ela e pela DJ Gabi Leão, e com o apoio da instituição Centro Cultural Vale Maranhão (CCVM), que também produz editais de apoio financeiro para diversas linguagens culturais. Não existem dados sobre a cultura ballroom no Maranhão inteiro. Apesar disso, Negroni conta que, ainda que a cena tenha poucos fomentadores, toda ajuda conta: “Mesmo que esteja lá no interior, na parte rural, e tem uma pessoa, aquela pessoa já é a ballroom”.
O sucesso do Maranhão Kunty e da Afroball criou algumas pontes: colaborações entre casas, apresentações de performers de outros estados e patrocínio de grandes marcas que ajudaram a fazer a festa acontecer. Tudo gira em torno do senso de comunidade, fator que Negroni associa a outros elementos da cultura negra, como o funk e o reggae. “É tudo sobre aquilombamento e resistência, como a ballroom foi nos anos 60, através das mãos de travestis pretas.”
O historiador e membro das Comissões da Verdade, dos Direitos Humanos e da Diversidade da OAB Maranhão, Carlos Pimentel, conta que as culturas LGBTQI+ e negra ainda são invisibilizadas no estado por uma possível negação de identidade da população maranhense. O estado é um dos mais negros no Brasil: mais de 80% da população é autoidentificada negra, 1,4% gay ou bissexual e 4,5% que não souberam responder sua orientação sexual à pesquisa do IBGE.
O pesquisador, que também faz parte da comunidade LGBTQI+, conta que um dos problemas é a falta de fomento público da cultura baseada em povos minorizados: “Não há interesse do poder público de garantir a efetivação dessa política negra e LGBTQ+. Quando não tenho um edital próprio para a cultura LGBTQ, quando não tenho recurso para o Centro de Cultura Negra fazer o carnaval, para fazer o desfile, isso é negação de identidade também.”
Para Pimentel, a falta de debates e dados sobre as produções de origem preta e LGBTQ+ impacta na aceitação dos eventos: “São culturas marginalizadas, fragmentadas e estigmatizadas em relação à cultura europeizada, padrão”, explica. O setor privado, segundo ele, está mais interessado em abraçar esses temas – parte por preocupação com tais iniciativas e parte pela dedução fiscal, vantagem do apoio a eventos culturais.
“Hoje não temos nenhum edital focado exclusivamente para a população LGBTQ+. Os municípios da região litoral maranhense estão contemplando a cultura desse povo, mas devido a cobranças do próprio movimento, e não por vontade do poder público”, avalia. Carlos menciona também a afroafinidade, termo baseado na relação de identificação entre pessoas negras, como elemento para a aproximação entre culturas LGBTQI+ e povos pretos.
Quando o leque da afroafinidade se abre para pessoas queer, o quilombo e a boate se unem para criar um novo ambiente: “No shade, mas tudo é ballroom. Tudo que se vê na TV hoje é da época da ballroom há anos-luz. A Ballroom de hoje vem do hip hop, do rap, é tudo isso. É tudo regional, é chique”, diz Jozy Negroni.
Andressa Algave
Andressa Algave tem 24 anos, é estudante de Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal do Maranhão, participante da Jornada Galápagos de Jornalismo de 2023 e colunista do podcast Primeiro Café.