Belém (PA) — Nossa Senhora de Nazaré é considerada a Rainha da Amazônia. Em Outubro, o tempo é outro nas ruas de Belém, porque a sua imagem passa a estampar todas as esquinas, casas, prédios, estabelecimentos, ônibus. “Nazinha”, como é conhecida, é celebrada e agrega diferentes manifestações culturais, como o arrastão do Círio e o Auto do Círio que, em 2023, atraiu cerca de 2 milhões de pessoas. Para artistas, essa celebração e devoção a Santa é também tema de trabalhos artísticos, séries fotográficas, pinturas, espetáculos teatrais e outras expressões culturais.
Maria José Batista é uma das artistas que expressa a maior celebração religiosa do país em arte. Atualmente em exibição no Sesc Ver-O-Peso, a individual da artista Cores de Maria reúne pinturas inéditas da artista realizadas em pratos de papelão revestidos com tinta e mostra todos os momentos que compõem a celebração: a corda onde promesseiros seguram-se durante a procissão; o Círio fluvial e rodoviário que abarca outras regiões da cidade; as crianças vestidas de anjos; as beatas orando; jovens pedindo por respeito e um mundo sem preconceito; o boi dançando em festas ornado com suas fitas coloridas; as pessoas chegando do interior para celebrar o Círio em Belém.
“Eu vejo uma Círio como uma cultura paraense onde eu me inspiro”. Para além do caráter religioso, Maria entende como uma manifestação cultural das diferentes fés. “Agora tenho conseguido sair da nossa região e levar nossa cultura para fora também”. Em 2022, a artista recebeu o 8º Prêmio Tomie Ohtake de Artes Visuais, em São Paulo.
Entre as principais manifestações culturais que nascem com o Círio, e que também são tema das pinturas de Maria José, está o arrastão do Círio. O principal símbolo dessa manifestação são os chapéus de palha e as fitas coloridas que reúnem milhares de pessoas para um trajeto-procissão brincante e dançando pelas ruas da cidade. O protagonista é a barca de Miriti – uma referência ao Círio Fluvial e à Rainha das Águas. Também é possível ver elementos cênicos e personagens específicos da época. A edição deste ano será marcada pelo lançamento da música “Senhora da Amazônia”, uma homenagem do Arraial do Pavulagem para Nossa Senhora de Nazaré.
Outro elemento que surge no cortejo deste ano é a “Visualidade Cênica”, em que dançarinos do Batalhão da Estrela – como o grupo de brincantes se intitula – dançam soltos na área das performances do cortejo para fazer referências à biodiversidade amazônica, em uma reflexão sobre a importância da sustentabilidade. As histórias cantadas e contadas da manifestação homenageiam também aos povos originários da Amazônia e à ancestralidade indígena e africana.
Cotidiano Paraense
Desde 1997, Maria José Batista pinta o cotidiano paraense e as celebrações populares, utilizando diferentes materiais – do TNT ao papelão, da tinta acrílica aos materiais reciclados. Sob os olhos da artista plástica, hoje com 62 anos, Belém é sempre colorida. Ela conta que iniciou a trajetória ainda criança, pois o pai Espandeal Batista era também artista, tinha seu próprio ateliê em casa. A pintura era uma brincadeira, mas ao observar o trabalho com grandes painéis de publicidade de grandes dimensões, acabou aprendendo sem dar-se conta.
Porém, com a chegada da vida adulta – teve e sete filhos e também se casou -, Maria deixou a pintura de lado e foi retomar apenas quando tinha já mais de 30 anos. “Quem vai ensinar alguém adulta assim?”, pensou. Foi em busca e encontrou a Fundação Curro Velho, uma instituição do Estado do Pará, localizada no Telégrafo, mesmo bairro em que Maria mora. Às margens da Baía de Guajará, o Curro abriga desde 1991 para sediar um núcleo de formação e qualificação em educação não formal, possibilitando qualificar jovens e adultos para oportunidades de emprego e renda através das artes em suas diferentes linguagens artes visuais, música, artes cênicas, e cursos de capacitação
Foi lá que conheceu pessoas importantes para sua vida, como Mestre Nato, um alfaiate e cenógrafo brasileiro, mais conhecido pelos estandartes que confeccionou para o Arraial do Pavulagem – o “boi-bumbá” paraense. No primeiro dia de aula, Maria recebeu uma chamada para conversar com o diretor da Fundação Curro Velho, o artista Acácio Sobral. “Eu pensei que ele ia dizer que eu não podia fazer a oficina porque eu já era muito adulta”, relembra Maria. “Fui super nervosa. Ele me perguntou se eu já tinha feito aulas de pintura e eu disse que não, que era primeira vez. Ele falou que não era possível, porque eu já tinha um trabalho.” Antes disso, Maria não pensava que suas pinturas poderiam ser consideradas artísticas, já que não eram realistas como as do pai. “Eu disse para o Acácio Sobral que eu tinha vindo para aprender e ele me respondeu que eu já tinha um estilo próprio”, conta.
O estilo que Sobral se referia era tanto à técnica utilizada pela artista quanto aos temas do trabalho. O Círio é uma inspiração porque se desdobra em diferentes manifestações culturais. O Auto do Círio antecede a procissão religiosa, e dá passagem ao lugar “profano” que também caracteriza esse momento da cidade.
Cores das Marias
Criado há 30 anos pelas professoras Zélia Amador de Deus e Margareth Refkalefsk, o Auto do Círio é um cortejo artístico com apresentações de teatro, cantos, danças e músicas, realizado em homenagem à Nossa Senhora de Nazaré, durante a quadra nazarena de Belém. Com o tema “Nossa Senhora de Todas as Vozes da Amazônia”, o espetáculo é considerado patrimônio histórico e imaterial da cultura do estado.
Por meio da arte, o cortejo fala sobre as populações amazônidas, chamando a atenção para as questões sociais, econômicas, políticas, ambientais e culturais da região e potencializando as expressões culturais do Pará. Envolve a participação de artistas, professores, mestres e da própria comunidade que prestigia o cortejo, permitindo um maior enraizamento cultural e participação de todos os envolvidos nesse processo de retomada de tradições. Como nas pinturas de Maria, os quadros estão cheios, as ruas estão lotadas. O Círio acontece na coletividade e na emoção que se dá por um reconhecimento coletivo.
Entendendo-se como artista, Maria José passou a se dedicar ao que realmente gostava de fazer: pintar o que estava próximo. Ela mostra a feira perto de casa, as vizinhas estendendo roupa, o peixe sendo assado na brasa, o churrasquinho do fim de tarde. Mas não se restringe à própria vida e sempre se interessou por aquilo que constitui a cultura popular paraense, os festejos, o Arraial, e principalmente, o Círio de Nazaré.
Nas cores de Maria aparecem também os brinquedos de Miriti, característicos da cultura paraense, e especialmente presentes durante as homenagens à Nossa Senhora. O artesanato feito da fibra do Miritizeiro ou Buritizeiro, palmeira nativa da Amazônia, encanta o mar de gente nas procissões, que levam sobre suas cabeças graças alcançadas – casas e carros, por exemplo, simbolizados através do brinquedo. Na semana do Círio em Belém, essa é outra manifestação cultural importante: a Feira de Artesanato de Miriti, que reúne 60 artesãos de Abaetetuba, capital do Miriti. Essa arte entrelaça arte, fé, tradição, cultura e devoção.
Seja nas fitas do chapéu de Palha, nos brinquedos de Miriti, nas fantasias do Auto, o colorido é sempre presente. Como no trabalho de Maria, as cores compõem os quadros. “Eu procuro trazer coisas boas. Coisas tristes deixa somente para gente. Gosto de transmitir a alegria através do meu trabalho para que o espírito das pessoas fique mais alegre.” Maria compartilha o nome com Nossa Senhora e divide com ela também a missão de trazer alegria a quem a vê.