Mariah Brandt, especial para o Nonada Jornalismo
Cantor e compositor nascido e criado na zona norte de Manaus, Ian Lecter já diz a que veio em uma de suas rimas: “Não faço por esporte, o mais escuro do Norte”, canta em uma música gravada em parceria com a também cantora amazonense Karen Francis. O trecho, que ilustra seu compromisso com o trabalho, também reflete os dias em que o artista foi contemplado com a Lei Aldir Blanc, um dos primeiros editais que venceu na área da cultura, para criar um videoclipe e um documentário. “Eu fiquei muito feliz. Uma das primeiras reações que eu tive foi gritar e comemorar, meu trabalho e todo esforço depois de anos ter um resultado”, diz. Em seguida, veio a realidade do trabalho que viria pela frente.
Naquele momento, a capital do Amazonas, região que outrora foi conhecida como pulmão do mundo, vivia o abandono do poder público a ponto de sufocar sem oxigênio nos hospitais. A mobilização da sociedade civil aconteceu principalmente via redes sociais e ganhou força e apoio de vários artistas.
Lecter passava uma temporada na capital paulista. E, através da internet, com acesso a um celular e a oportunidade de vez ou outra ter disponível um computador, reuniu as informações sobre o edital e se debruçou na escrita de seu projeto. “A todo momento, eu ficava pensando que precisava de mais estrutura e depois fazia o que eu tinha que fazer. Quando chegou o auxílio emergencial que, frente ao que a gente vivia na pandemia, foi o mínimo, eu consegui me manter até voltar para Manaus”, diz.
Quando estava no processo de enviar os documentos e planilhas, Lecter também se preocupava com as questões burocráticas que poderiam afastá-lo do objetivo. “Tu tem que baixar o arquivo, saber os sites, fazer a seleção…Um monte de amigo meu já desistiu de fazer edital pela falta de RG ou por tentar se comunicar com os órgãos e não ter uma resposta. A falta de acesso à informação básica, como por exemplo, a de que poderia utilizar foto da carteira de trabalho ao invés de RG, acaba fazendo a gente entrar numa de achar que é impossível”, comenta Ian.
Romário Werá Xunun, líder do Coral Araí Ovy e morador de uma aldeia Mbyá-Guarani em Maquiné, litoral do Rio Grande do Sul, viveu uma situação semelhante aos amigos de Ian quando tentou se inscrever nos editais da Lei Aldir Blanc. “Não sei o que faltou, mas não foi aprovado quando tentei na pandemia, temos algumas dificuldades. Algumas pessoas me ajudaram a escrever o projeto, mas a gente precisa também de acessórios que nos ajudem a escrever, como computador, notebook, essas coisas, mas a gente não tem. Não fiquei desanimado porque o meu trabalho é isso: não foi feito só para ganhar dinheiro, mas sim para fortalecer a nossa cultura”, afirma o artista.
O Coral Araí Ovy foi fundado há pouco mais de quatro anos e possui 15 integrantes entre meninos e meninas de dez a 20 anos de idade que tocam instrumentos como violão, violino, tambor e chocalho. “A ideia do coral é continuar fortalecendo a nossa própria cultura. A inspiração para a escrita são temas envolvendo a área onde vivemos, a mata é sagrada para nós, as crianças gostam e estão aprendendo também cada vez mais a lidar com os instrumentos”, diz Werá.
Confiante em novas perspectivas artísticas, o maestro acredita no acesso aos recursos para o Coral. “Muitas pessoas dizem que não existe mais indígena aqui no Brasil, mas eu penso o contrário, temos a nossa cultura, praticamos a cada dia, mas mesmo assim, a sociedade branca não acredita muito. Eu tenho um pouco mais de esperança do que antes com esse novo governo que facilite para as futuras sociedades”, declarou Werá.
O otimismo do artista se reflete em parte na Lei Paulo Gustavo, lei emergencial criada na sequência da Lei Aldir Blanc e começou a ser aplicada em julho de 2023. O texto da lei prevê que os municípios e estados lancem editais com cotas para artistas negros e indígenas, uma ação afirmativa que pode contribuir para a reparação histórica quando se fala em privilégios no acesso ao financiamento na cultura.
O papel do Estado
Ainda assim, apenas as cotas não resolvem a linguagem difícil e o alto volume de documentação que a maioria dos editais da área pedem. “Uma pessoa que nunca escreveu um projeto ou coisa do tipo olha e não sabe nem por onde começar, porque as exigências para entrar nisso te assusta. A gente se dispõe a se adequar e a falar da mesma forma e linguagem que eles utilizam para acessar algo que estamos necessitando. A ideia é muito colonial, é como se fosse a mesma ideia dos donos de banco que cobram impostos e tributos”, comenta Ian Lecter.
Um dado recente ilustra a dificuldade dos fazedores de cultura em se adequar a esses processos. Lançado em 2023, o Prêmio Carolina Maria de Jesus, lançado pelo Ministério da Cultura em apoio a escritoras, teve 807 inscrições desclassificadas por erros de inscrição e documentação. Do total de 2619 inscritas, 1.812 foram habilitadas, e 40 foram selecionadas para receber o prêmio em dinheiro. O edital contou com um recurso novo que o MinC lançou para facilitar o entendimento dos editais: uma versão mais acessível, de fácil leitura, que funciona como um guia para os fazedores de cultura.
Em entrevista anterior ao Nonada, a presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais, Cecilia Rabelo, aponta caminhos para facilitar o acesso aos editais. “Eu entendo que é papel sim dos órgãos públicos de cultura e também das entidades facilitar essa compreensão, tornar a linguagem mais simples, os procedimentos mais claros, mais lógicos e mais democráticos. Eu acho que o único caminho é o da formação, a realização de cursos, oficinas e esclarecer as pessoas como participar para dar essa democratização do acesso”, sugere a presidente.
A Fundação Nacional das Artes (Funarte), órgão do MinC, também vem lançando versões simplificadas dos processos seletivos, além de outras estratégias. “Para também pensar como esses mecanismos poderiam conversar mais diretamente com as pessoas que estão interessadas em participar, contribuir, construir seus projetos através desses mecanismos, eles também trazem a possibilidade de apresentação oral do projeto que é uma gravação em vídeo que o proponente faz sobre a sua proposta”, diz Aline Vila Real, diretora de Fomento e Difusão Regional da instituição.
Inclusão e reparação
Como aponta o 215 da Constituição, “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes de cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. A realidade, no entanto, mostra que o fazer artístico não chega a todas, todos e todes com a mesma facilidade.
“Quando eu comecei, havia um cenário que movia iniciativas musicais na periferia. Naquele momento a gente não via filantropia pro hip-hop. Imagina viver nessa cidade onde o setor cultural e artístico é integrado por um sistema intimamente ligado ao racismo, enxergar essa lógica, botar isso na cabeça. Na verdade eu sentia meu trabalho sucateado”, conta o artista Ian Lecter, que se apresentava com o grupo Arcaiaka, numa época em que Ian não tinha informação sobre editais de incentivo para sua arte. “Lembro que pessoas que também não sabiam reproduziram uma ideia de: ‘ah vai pegar dinheiro do governo para quê?’”, lembra.
Para a Funarte, a construção de uma Política Nacional das Artes passa por reconhecer essas lacunas sociais, raciais e de gênero. “Sabemos que a ação e a produção artística que acontece a partir das periferias do Brasil são totalmente estruturantes para o que a gente hoje chama de cultura brasileira, é o que a gente tem de mais interessante e potente na arte brasileira, que seja como atuação direta, inspiração, processo de ação coletiva, sabemos da importância das periferias do brasil tem para essa estruturação”, avalia Aline Vila Real.
A gestora conta que, além da reserva de vagas para projetos liderados por pessoas negras, indígenas e com deficiência, os editais do órgão também buscam promover a empregabilidade de profissionais trans e travestis na arte. “A gente entende que esse processo de retomada é coletivo e com certeza os novos artistas, o diálogo com as pessoas que ainda não estavam integradas nesse processo é fundamental”, destaca.
Para o coral de Maquiné, esse horizonte pode fazer a diferença na continuidade do grupo enquanto agente cultural. “Nós vivemos da nossa cultura, e estamos sempre ali cantando e dançando e ensinando para os pequenos não esquecerem. A ideia é que eles levem adiante. Um dia vou parar de participar e eles vão continuar e também ensinar os que vierem, e assim vai indo”, projeta Romário Werá Xunun.
7 dicas para escrever um bom projeto
Crie arquivos para fazer um checklist dos documentos que você já tem e dos que precisa providenciar
Leia o edital pelo menos 5 vezes
Escreva os objetivos e justificativas sempre linkando para as temáticas e palavras usadas no edital
Pesquise dados que possam embasar a importância do seu projeto
Não deixe para o último dia: vá fazendo um pouco a cada dia
Peça para um amigue ler. Elu pode ver erros e melhorias que você não vê
Não invente a roda. Crie um projeto coerente com o edital (isso não significa que você não pode ser ambiciose…)
Dica extra: Guia Prático do Sebrae para Elaboração e Execução de Projetos Culturais