Há 20 anos, o então ministro da Cultura e agora imortal Gilberto Gil transformava a visão sobre a cultura aplicada às políticas públicas. “É preciso acabar com a ideia de que a cultura é extraordinária. Cultura é ordinária, é igual feijão com arroz. É necessidade básica”, afirmava. Sua gestão passava pela ideia de que a cultura é transversal e sua relevância contribui para diferentes esferas que compõem a sociedade.
Com sua equipe, o ministro elaborou o conceito das dimensões que perpassam a cultura (a dimensão cidadã, a simbólica e a econômica) aplicando um olhar integrado ao fazer cultural. “Toda a cadeia da economia da cultura e das indústrias criativas, inclusive seus financiadores, deveria ter esta perspectiva em suas análises e seus projetos”, avalia Luciana Modé, coordenadora da área de Pesquisa e Desenvolvimento do Itaú Cultural.
A pesquisadora coordenou o guia metodológico “O valor da cultura: rumo a uma nova narrativa”, publicação do Itaú Cultural desenvolvida com os pesquisadores Paul Heritage e Leandro Valiati da People’s Palace Projects do Brasil e lançada este mês. O objetivo do manual é apresentar métodos para que os fazedores de cultura e as organizações do setor possam medir o impacto de seus projetos culturais e criativos para além dos aspectos econômicos. “Quem atua no campo observa os seus impactos, porém estes eram formulados qualitativamente”, explica Luciana.
É o caso de Marcela Pultrini, integrante da Associação Companhia Os Kaco, um circo que atua há dez anos em um distrito de Palmas (TO). A associação foi uma das 24 organizações co-criadoras da pesquisa, que contribuíram com a metodologia e a aplicaram em seus projetos, todos contemplados pelo edital Rumos Itaú Cultural. “Através dessa pesquisa, a gente pôde saber um pouco sobre esse público que respondeu. O questionário vai servir como banco de dados e para a gente fazer outras aplicações, fazer parcerias, quem sabe, com universidades e pessoas que já estudam o circo”, diz.
Visibilizando a transformação
A metodologia propõe que os coordenadores de projetos realizem pesquisas simples junto aos públicos atendidos para medir o impacto a partir de seis indicadores: “acesso à cultura, com desenvolvimento de novas habilidades e exposição a temas e atividades culturais; identificação com um território e ocupação/circulação por novos lugares; estabelecimento de redes; identificação com uma comunidade e curiosidade por outras culturas; autoconfiança; e engajamento, com atenção e percepção sobre questões sociais, políticas e artísticas”.
A pesquisa pode ser aplicada como um formulário, por exemplo, que contenha perguntas como “depois do projeto, você passou a se identificar mais com o território?” e “seu envolvimento com o projeto levou você a desenvolver novas habilidades na área da cultura?”. Cabe a cada coordenador avaliar quais indicadores fazem sentido para seu projeto e quais as questões mais relevantes. As respostas podem ser sistematizadas na forma de tabelas ou gráficos e apresentadas à sociedade e aos financiadores.
Segundo Luciana Modé, no âmbito das políticas públicas, “a metodologia poderá contribuir para a criação de políticas que reconheçam a legitimidade da vida cultural tanto a partir da construção de institucionalidades que dão sustentação e previsibilidade ao fazer cultural, quanto ofereçam aos cidadãos oportunidades de participação artístico-cultural que o desenvolvam de maneira mais integral, conectada ao seu território, com perspectiva crítica e, fundamentalmente, com empatia e sensibilidade para dialogar para além das suas ‘bolhas’”.
O grupo Ninho de Teatro, com sede no cariri cearense, aplicou a pesquisa para avaliar o impacto de um projeto que eles fizeram com mestres da cultura popular. “80% das pessoas entrevistadas abriram mais espaço para a cultura na sua vida após a participação. Então a gente entende que [o projeto] impacta essas pessoas para além da economia criativa. O fato é que a arte e a cultura, a partir dos dados que foram levantados na pesquisa, vão afetando o tecido social, expandindo os entendimentos das pessoas e vão, portanto, também movendo ali a própria vida e o viver”.
Os artistas parafraseiam o mestre Raimundo Aniceto, que os inspira: “Essa sabedoria que é ancestral, preto-indígena, diz exatamente que a cultura é um alimento de alma. E aí quando a gente faz o cruzamento desses valores da cultura, a gente vê que a cultura faz com que a gente se mantenha em pé, seja como artista, fazedores e agentes de cultura, mas também o povo, a sociedade em geral”, acreditam.