Beatriz de Oliveira, especial para o Nonada Jornalismo*
Jundiaí (SP) — Em um sábado à noite, no município de Jundiaí (SP), adultos, crianças e idosos preenchem o salão do Clube 28 de Setembro. As famílias, em sua maioria negras, conversam, comem e bebem enquanto aguardam o início do concurso Miss Pérola Negra, retomado após uma pausa de 10 anos. No palco, o DJ toca black music. Nas paredes e estantes do clube, mulheres negras são representadas em pinturas, esculturas e fotos.
Criado em 1897, sete anos após a abolição da escravatura, o Clube 28 de Setembro leva esse nome em referência a Lei do Ventre Livre, promulgada em 28 de setembro de 1871, que determinava que os filhos de escravizados nascidos a partir dessa data seriam considerados livres. Passado mais de um século de sua formação, o clube se configura hoje como o mais antigo ainda em funcionamento no estado de São Paulo.
Para a pesquisadora Maria Angela Salvadori, o artigo “Clubes negros, associativismo e história da educação”, ”a história específica do ‘28 de Setembro’ e de seus projetoseducativos ainda é praticamente desconhecida, em especial numa cidade cuja identidade foi fortemente marcada pela reiteração das tradições italianas, laudatoriamente frequentes no calendário cívico e turístico do município”.
Esse apagamento ocorreu ao longo da construção da memória da cidade, explica Salvadori. “Apesar de numericamente bastante expressivos, pardos, pretos e caboclos pouco comparecem nos textos relativos à história do município de Jundiaí. Os historiadores locais, ao que propõem parte significativa dos documentos por eles produzidos, imaginaram construir uma história grandiosa da cidade destinada ao progresso e, para isso, apaziguada tanto em seu passado quanto em seu presente.”
Além do concurso de miss, que promove o empoderamento feminino e escolhe a mulher negra que representará a cidade, o clube conta com uma série de outras atividades. Bailes charme, capoeira, saraus, almoços e cursos fazem parte da programação.
O propósito do clube é ser um espaço de acolhimento, lazer e educação para a população negra da região, ao passo que, pessoas brancas também são bem vindas. Tem sido assim desde sua criação. O Clube 28 de Setembro se insere num movimento denominado associativismo negro, que tinham por objetivo oferecer às populações negras aquilo que lhes era negado em sociedade, como saúde, lazer e educação.
A força do associativismo negro
Com a abolição oficial da escravatura e instituição da república, o país passou a negar o seu passado e a invisibilizar as populações negras, ao passo que incentivava a entrada de imigrantes brancos para ocupar os postos de trabalho disponíveis.
Nesse cenário, cidadãos negros se viam abandonados, com poucas e precárias opções de emprego, sem moradia após a saída da casa dos senhores de engenho e sujeitos à violência policial. É como reação a toda essa realidade que surgem as organizações do associativismo negro.
“Essas organizações negras denunciavam situações de racismo, e inclusive, criaram lazer próprio. Porque o racismo era tão declarado que eles não podiam frequentar espaços da população branca, então vão criar espaços próprios para seu lazer”, explica Lucia Helena Silva, historiadora que realizou pesquisa sobre o associativismo negro no pós-doutorado. A historiadora acrescenta que em São Paulo houve grande atuação da imprensa negra, que teve importante papel na denuncia de segregação racial e violências policiais.
Tendo em vista as demandas variadas, os clubes atuavam em diferentes frentes, como conta o historiador Petrônio Domingues na definição de associativismo negro registrada no livro Dicionario da Escravidão de Liberdade. Havia aqueles que promoviam amparo social, com prestação de assistência médica e jurídica, além de serviços previdenciários, como pensão por invalidez e auxílio-funeral para os associados. Entre elas está a Sociedade Cooperativa dos Homens Pretos, criada em 1906 em São Paulo.
Outras associações tinham como foco atividades culturais e educacionais, como é o caso do Clube 13 de Maio dos Homens Pretos, criado em 1902 em São Paulo. Há ainda os clubes que tinham como principal objetivo o lazer, categoria em que se encaixa o Clube 28 de Setembro.
Clube 28 de Setembro tem trajetória centenária
A criação do Clube 28 de Setembro está ligada a trabalhadores negros da Companhia Paulista de Estradas de Ferro, que se uniram para fundar uma agremiação que oferecesse cultura e educação. Desde seu início eram comuns os concursos de beleza, bailes e festas. Assim como atividades educacionais, como palestras e cursos profissionalizantes. Na década de 1930, foi criada a Escola Cruz e Souza, que tinha aulas noturnas de alfabetização. Nesse mesmo período, o clube mudou de nome ao se fundir com outro espaço cultural da cidade, se tornando assim o Clube Beneficente Cultural e Recreativo Jundiaiense 28 de Setembro.
Salvadori conta que o clube realizava eventos literários desde 1913. “Documentos esparsos mostram ainda que o clube se colocava como “porta-voz da raça ”que “com o sangue em borbotões de ouro colonizou o Brasil”, tal como escrito na primeira página do Livro de Ouro de 1935, destinado a arrecadar fundos junto ao comércio local a fim de que os problemas financeiros da entidade pudessem ser minimizados”, completa.
Já na década de 1940, foi construída a sede em que o clube se encontra até hoje, no centro de Jundiaí. Para a construção, foi criado um Livro de Ouro com contribuição dos sócios. Em 2011, mais um marco: o espaço recebeu atividades do Ponto de Cultura, com aulas de capoeira, grafite, dança de salão e hip hop. Finalmente, em 2014, o clube foi reconhecido como patrimônio histórico imaterial da cidade de Jundiaí.
Toda essa trajetória merece ser comemorada e os membros da organização costumam fazer isso no dia 28 de setembro de cada ano, numa referência ao nome do clube. Neste ano, o evento contou com missa em ação de graças a iniciativa, sarau literário e baile de aniversário.
Edna Aparecida Oliveira Santos, ou apenas Dona Edna, é uma das figuras ativas que mantém de pé o legado da organização. Atualmente, é presidente do clube e faz parte de sua gestão desde 2016. As dificuldades são muitas: “assumi o clube num momento conturbado por conta de dívidas acumuladas na gestão anterior”, lembra.
Nessa situação, honrando o legado de coletividade do associativismo negro, a união dos membros se mostrou essencial. “Houve união dos sócios, composta por senhores da terceira idade que amavam frequentar o clube e assumiram o desafio”, relata Dona Edna.
Para a historiadora Lucia Helena o legado que esses clubes deixaram é de afirmação. “São exemplos de luta, superação, organização e afirmação. Porque como é que você vai se afirmar como pessoa negra quando tudo que é ruim está associado ao negro? Esses clubes eram a indicação, mostravam possibilidades para essas pessoas. Foram essenciais para a sobrevivência dessas pessoas”, pontua.
“Eram espaços para marcar um lugar de respeito junto à sociedade, de enfrentamento ao racismo e, finalmente, de direito à cidadania, que é um aspecto fundamental. Nos bailes [promovidos pelos clubes], os brancos podiam ir, eram aceitos. Isso é de uma nobreza que a gente não faz ideia dos sacrifícios que essas pessoas faziam”, acrescenta.
“Não foi fácil, às vezes houve lágrimas. Mas, tivemos as forças de nossos ancestrais para manter o clube de pé. Tem muito amor e respeito envolvido”, diz Dona Edna.
Beatriz de Oliveira
Jornalista formada pela PUC-SP. Atualmente é repórter do veículo Nós, mulheres da periferia. Tem como foco pautas de memória, sociedade e cultura.