Porto Alegre (RS) — MC e precursora do rap, Carla Zhammp entra em uma das salas do Museu da Cultura Hip Hop do Rio Grande do Sul. Ela se depara com um grafite com o rosto do DJ Only Jay. Seus olhos começam a marejar de emoção e ela diz “não esqueceram dele”. E foi assim a visita ao primeiro Museu de Hip Hop do Brasil, inaugurado no último domingo (10) na Vila Ipiranga, em Porto Alegre: um encontro com os rostos que fizeram a história de quatro décadas desse movimento cultural no Brasil.
O Museu é uma iniciativa coletiva da Associação da Cultura Hip Hop De Esteio, e é fruto de uma luta de pelo menos quatro anos encabeçada por agentes do movimento no estado. O rapper e militante do movimento negro, Rafa Rafuagi, responsável pelo projeto e um dos coordenadores do Museu, apresenta o espaço como “um sonho intergeracional”.
A instituição abre as portas ao público em um ano significativo para o Hip Hop, pois em 2023, a manifestação cultural de protagonismo negro completa 50 anos de história no mundo, nascida nos becos do Bronx, e 40 no Brasil. Neste ano, também foi sancionado o Decreto de Valorização e Fomento à Cultura Hip Hop e o Projeto de Lei (PL) que prevê a criação o Dia Nacional do Hip Hop, em 11 de agosto.
Na cerimônia de abertura, os integrantes do projeto reforçaram a vontade de que o Museu se torne inspiração para outros estados brasileiros criarem mais espaços como esse, e que em cinco anos, crie-se uma rede capaz de criar o Museu Brasileiro da Cultura Hip Hop. Sediado em uma antiga escola municipal cedida pelo município de Porto Alegre em 2021, o museu gaúcho conta com aproximadamente seis mil itens de acervos físico e digital sobre a história do movimento na região. No local, encontram-se salas expositivas, ateliê de oficinas, café, loja, estufa agroecológica, biblioteca, quadra poliesportiva, CT de breaking e um estúdio.
Para Carla Zhammp, o Hip Hop é estratégico para a educação, e o Museu demonstra isso ao contemplar os cinco elementos que compõem esta cultura. Longe de ser apenas um gênero musical, o movimento nasce a partir da expressão de seus diferentes elementos: DJs, MCs, Graffiti e Break dance. E o quinto elemento, que é rimado e reforçado pelos slammers nas últimas décadas: o conhecimento.
“O elemento MC tem um axé de fala. Somos responsáveis porque subimos no palco e falamos. Todos os outros elementos, a partir das suas especificidades, têm a sua luz e o seu momento de mostrar por que o Hip Hop está aqui. É muito importante a gente saber do que se trata cada elemento”, lembra Carla.
Os cinco elementos do Hip Hop estão interligados na expografia do espaço. “Não tem como pintar na parede se não souber dançar com a lata”, diz Alice Thume, educadora do museu. O foco do projeto não é apenas criar um programa expositivo, mas um espaço que seja integralmente ocupado como local de educação, formação e lazer através do Centro de Treinamento (CT) e de Capacitações.
Passos que vem de longe
No Museu da Cultura Hip Hop, a história é escrita com cor. As escadas que conectam os dois andares do prédio de quase 4 mil metros quadrados estampam letras de músicas de referências nacionais de diferentes gerações, de Racionais MC a Zudilla. O corredor do Hip Hop, um sala sinuosa, grafitada em tinta Neon, mostra rosto de figuras importantes do movimento no Rio Grande do Sul, como os músicos do conjunto Da Guedes.
Do chão ao teto, a cenografia apresenta componentes identitários da cultura – latas de tinta, tênis pendurados em volta de fios de luz, estações de trem que remetem ao surgimento do Hip Hop nos Estados Unidos. As paredes dos corredores que conectam as salas expositivas são também exposições em si, pois abrigam fotografias de grupos, recortes de jornais e registros de momentos políticos importantes para o Hip Hop.
O Museu é como um álbum de família para a comunidade que adentra o espaço, natural de diversas regiões do estado do Rio Grande do Sul. Cris Oliboni e Nego Dinoia, precursores do movimento em Caxias do Sul, olham uma parede com centenas de cartazes de batalhas de rimas e apontam para vários, reconhecendo memórias das quais fizeram parte. “Tudo isso aqui, em algum momento, era só um sonho. Não só para mim, mas para toda comunidade. Aqui no Rio Grande do Sul a gente entrou para a história e agora temos um espaço que conta e confirma tudo isso”, destaca Dinoia.
O atleta Michel Berti Goi, morador da cidade de Salto do Jacuí, também viajou para a inauguração. Enquanto filmava o momento em que a fita vermelha era cortada na porta do Museu, ele narrava o que via para uma live em suas redes sociais. O braço de Michel exibe uma tatuagem escrita ‘Hip Hop’ ao lado de um desenho de um corpo dançando break.
A emoção do professor ao entrar no Museu era também para ver as peças que ele mesmo havia doado de seu acervo pessoal para serem musealizadas – roupas, uniformes, recortes de jornais e cartazes. “Eu trouxe praticamente todo meu acervo, mantido por mais de 20 anos, para cá” relata o fundador do projeto LJB Crew- Legião Jacuí Bee Boys. O Museu torna-se pioneiro e instaura um novo circuito de musealização da cultura Hip Hop.
CoutMR veio de Alvorada para colher inspirações para a iniciativa que conduz em sua cidade. Ele integra o projeto social Tropa do Cout que apresenta a cena do rap e do trap gaúcho para crianças e adolescentes em vulnerabilidade social. “A gente está vindo no museu para pegar referência, entender mais sobre a organização e também fazer isso na nossa quebrada”, diz. Já Doug Bad, também de Alvorada, comenta que o Hip hop é um espaço de visionar futuros. Os jovens que adentram uma batalha de rima ou de break sabem que ali podem vir a ser.
Sonho de gerações
Era exatamente isso que acontecia no multipalco do Museu. Enquanto os primeiros visitantes conheciam a instituição, o lado de fora ficava cada vez mais movimentado. A batalha de rima, dividida em vários rounds, reuniu dezenas de pessoas que acompanharam a competição mesmo sob pancadas de chuva. Em volta, muitas crianças “davam a letra” e sugeriam os temas para os rappers. Assuntos como ‘poder’, ‘referência’, ‘desigualdade’, ‘criança’ foram escolhidos por meninos e meninas que rapidamente levantaram a mão e se pronunciaram sobre o tema que gostariam de ouvir. O vencedor da primeira batalha foi o MC e poeta slammer DKG, em uma batalha com Djandja, poeta de 21 anos. Entre os versos, a jovem rimou:
Eu vou mandar aqui
O papo é igualdade
Mas isso falta
Em grande porcentagem
da cidade
Mas eu tenho esperança
Igualdade vai ser quando meus pretos tiver na faculdade
Eu não falo só dos meus
Porque essa esperança
Para alguns são ateus
Mas ainda assim eu mantenho a esperança
Eu mostro a igualdade
No olho dessas crianças
A palavra ‘sonho’ foi repetida em vários dos discursos da abertura do museu. Representante do elemento grafite, Tio Trampo fala que esse é o início de uma grande jornada. “Aqui vamos fortalecer vínculos e descobrir novos talentos”, celebra.
O sonho interageracional comentado pelos organizadores se deve ao fato de que a maioria deles começou a viver as culturas de rua muito jovem, na adolescência ainda. “Agora que o Hip Hop faz quarenta anos no Brasil é também dizer que a juventude tem a suas expressões e tem o que dizer”, comenta Carla. O objetivo a partir de agora, para ela, é “empovoar o museu”. Localizado na zona Leste da cidade, a instituição insere-se em um projeto de descentralização da cultura, favorecendo a proximidade de vilas como a Bom Jesus e Vila Jardim e a própria Vila Ipiranga a um Museu gratuito, qualificado e que dialoga com suas realidades.
Elas dão a letra
Outra frente estabelecida na nova instituição é o protagonismo das mulheres que compõem a história do Hip hop no estado. Uma delas é B.Girl Ceia Santos, uma das pioneiras do estado. Há 18 anos, ela iniciou no break e entrou para “família hip hop”, como denomina. Ela conta que o movimento salvou sua vida, aos 26 anos, após sair de um contexto de violência doméstica. Segurando o neto no colo, ela lembra que “sempre foi uma resistência muito grande dançar break, principalmente carregando um filho no braço”. Ressalta também que “o Hip Hop tem mulheres, mães, trabalhadoras, comprometidas a fazer a luta real do Hip Hop que nasceu no Bronx, mas também em todos os cantos desse país.”
Além de dançar, Ceia tornou-se militante do movimento, incentivando mais mulheres a entrarem para a cena. “Ninguém acreditou que eu poderia mudar a minha vida e me sustentar dançando breaking”, lembra a atual presidente da federação gaúcha de Hip Hop, criada neste ano.
Ela é uma das pesquisadoras que participou da elaboração do Museu e que a partir de agora atuará na horticultura Flor do Gueto, construída logo na entrada do Museu. O Hip Hop, lembra Célia, atua em diferentes campos: educação, segurança pública, e também meio ambiente. O nome da horta, abrigada em uma estufa na parte externa do prédio, é uma homenagem a Malu Viana, rapper e ativista que faleceu em 2021. Como em várias obras do Museu, o salvaguardar dos rostos, dos nomes e das histórias que fundam o Hip Hop no Rio Grande do Sul é uma preocupação dos organizadores.
A rapper e cantora Negra Jaque foi a mestre de cerimônias da abertura e apresentou toda programação. “O Museu, como a própria palavra diz, guarda os nossos tesouros, e nele deixamos material para as gerações futuras – que queiram ou não seguir a carreira na cultura Hip Hop”. Ela enxerga o movimento como produtor de conhecimento e espaço de educação. “Falando só de vocabulário, o Hip Hop tem uma lista extensa de palavras que foram criadas só dentro da cultura”
A emoção nos rostos dos visitantes ao entrar em cada sala do prédio era visível. Stefanie Geruntho ao fitar um corredor de latas de tinta exibido no primeiro andar visualiza toda sua trajetória no Hip Hop como fotógrafa oficial do Campeonato de Rimas do Rio Grande do Sul. “O Hip hop possibilita que pessoas periféricas se tornem reis e rainhas dentro daquilo que elas fazem”, observa. “É impossível não se emocionar com a possibilidade de visibilidade que o museu traz para essa cultura.” A importância da memória para ela é o reconhecimento. “Já cheguei em lugares em que MCs que estavam batalhando nunca tinham sido fotografados”, lembra. O registro é também um manifesto para valorização e permanência de toda a cultura de rua.
Mergulho nas histórias locais
Pioneiros do Hip Hop gaúcho, os músicos da banda J.Clip olhavam encantados para as paredes repletas de fotografias e memórias suas no museu. Ao lado de Da Guedes, na década de 90, foram os grupos responsáveis por quebrar barreiras em relação à cultura de rua no estado. Na visita pelas salas expositivas, há a possibilidade de imersão nas sonoridades desses músicos de cada década dos 40 anos de história a partir de fones de ouvidos dispostos nas paredes. No mesmo espaço, um quadro expõe uma espécie de geografia do Hip Hop no Rio Grande do Sul contando detalhes, diferenças e especificidades dessa expressão cultural em cada parte do estado.
As informações são fruto de uma pesquisa histórica e sociológica, em parceria com a UFRGS, que orientou os coordenadores na busca pelo acervo. Posteriormente, a equipe executou o projeto “Na estrada”, em que viajou pelas nove regiões do estado, mais de 50 cidades visitadas, e coletou quase 10.000 itens de acervo.
Na região sul do estado, Pelotas tem uma forte presença da cultura negra, que influencia diretamente a cena do Hip Hop local. De acordo com a pesquisa realizada pelo Museu, a Associação da cultural Hip Hop de Pelotas tem papel fundamental na organizacao e promocao de eventos culturais que desenvolveram a cultura na região Já na região central oriental, como na cidade de Santa Cruz do Sul, há uma conexão do Hip Hop com a cultura carnavalesca e com instrumentos percussivos. O tambor funde-se ao beat, e elementos da estética popular se misturam com a cena “underground”.
A Região Serrana é conhecida pela batalha Battle In The Cypher, sediada em Bento Gonçalves, e que reúne dançarinos de todo o estado. A relação com a dança tornou a serra mais conhecida pelo breaking, tornando-se referência para o surgimento de artistas no Brasil e no exterior. O Hip Hop em Santa Maria, região central ocidental, tem uma relação estreita com a universidade federal da cidade (UFSM). Segundo a pesquisa, os coletivos locais surgiram no ambiente universitário e militante.
O mergulho também se dá a partir da musealização de itens de vestuário que compuseram a estética de cada geração Hip Hoper. Em quadros coloridos e ilustrados, o público é introduzido às modas dos anos 70 e 80, os tênis all stars, cano alto, com estilo old school. Já nos anos 90, a chegada do gangstar rap, com preferência por roupas de grifes caras e uso de bandanas. O quadro mostra até os anos 2010 em diante, em que a moda trap é a mais influente, sendo considerada ousada e caracterizada pelas peças de roupas largas.
Batalhando futuros
Rafa lembra que o museu é a prova viva que no sul sempre teve Hip hop no sul. “Ele nasce com o compromisso de fazer com que cada criança que está aqui leve para sua casa o melhor que a cultura tem a oferecer: paz, vida, unidade, conexão com a realidade das ruas, e principalmente, a transformação e a conscientização de classe e raça que o Hip Hop tem feito nos últimos 40 anos no Brasil.”
O compromisso é político, social e artístico. “Aqui vão nascer muitos B. Boys, B Girls, grafiteiros e grafiteiras, muitos DJS. Aqui a gente vai seguir contando a nossa história”, afirma Ceia. No evento, Rafa anunciou a destinação de 10 computadores para 6 espaços para casas de Hip Hop no Rio Grande do Sul para incentivar a inclusão digital, inclusive para a inscrição em editais de fomento que podem ser importantes para artistas do Hip Hop.
Ao passar a porta de entrada do Museu, vemos à esquerda a horta em que alimentos orgânicos são cultivados. Do lado direito, antes de chegar no prédio da antiga escola, vemos uma quadra – lotada de crianças que jogam basquete e correm de um canto ao outro sob o chão e as paredes coloridas de grafite. O primeiro Museu de Hip Hop do Brasil dá o seu recado: ali plantam-se sementes para o futuro.