Foto: Fabiana Ribeiro/Nonada

Bene, o Poeta Negro: agentes culturais de Campinas fazem documentário sobre mestre popular

Ele move mundos. É um artista popular. Movimenta a cidade de Campinas. É resistência e potência. Ele é José Bene de Moraes, 74 anos, conhecido como Mestre Bene. Veste uma camiseta colorida e uma boina das cores vermelha, amarela e verde. Ao seu lado um tambor e um violão o acompanham, enquanto conta a sua história de vida para câmera. 

Por trás das lentes, está uma equipe formada por 31 alunos, de diferentes trajetórias e territórios periféricos de Campinas, que se encontraram pela primeira vez na sala de aula do projeto Comunica, realizado pelo Nonada Jornalismo em 2023 em parceria com a Amora Produções Culturais e financiamento via Lei Federal de Incentivo à Cultura.

Durante dois meses, o projeto promoveu uma série de oficinas de comunicação e cultura e a realização de um documentário com os participantes. A turma selecionada foi escolhida entre mais de 100 inscritos e reuniu agentes culturais, artistas, líderes comunitários, integrantes de coletivos, professores e demais interessados em aprender sobre comunicação cultural. O documentário estreou na Estação Cultura de Campinas em dezembro e já está disponível no Youtube

O produtor cultural Igor Amancio, 21 anos, mora em Campo Grande, periferia da Região Metropolitana de Campinas. Ele foi um dos participantes e conta que o processo de formação foi colaborativo e diverso do início ao fim, das oficinas até à produção do filme. “O que mais me marcou no Comunica foi a escolha das pessoas que participaram das oficinas”, conta Igor. Ele ressalta que, muitas vezes, a divulgação de eventos menciona a prioridade a pessoas pretas e LGBTQIA+, porém nem sempre isso é colocado em prática. Logo no primeiro dia, ao entrar pela porta, ele percebeu que a turma era formada era em sua maioria formada por pessoas da região periférica da cidade. 

No decorrer da trilha formativa, que envolveu aulas de produção cultural, geografias ativas, decolonialidade, diversidade cultural, distribuição criativa de projetos e  produção audiovisual, Igor foi se sentindo parte e percebendo que o conteúdo das oficinas era realmente voltados para as realidades presentes na sala. “Desde a formação tive contato com outras formas de se fazer cultura para além daquelas que eu já conhecia”, relata.

Essa impressão, ao chegar no primeiro dia e conhecer a turma, também chamou atenção da produtora Sandra Simião. “Uma das coisas que mais me surpreendeu no projeto foi a diversidade e a interação entre todes. Conheci tantas histórias incríveis.” 

A homenagem a Bene 

Gravação do documentário Bene, o Poeta Negro (Foto: Fabiana Ribeiro/Nonada)

Entre as histórias, o fim das oficinas de formação marcou também o início do segundo momento do projeto: a produção de um documentário. No momento de escolher a temática, a turma se reuniu e ouviu a sugestão de todos. As ideias eram diversas, a partir de temáticas conectadas à vivência no Comunica, como a descentralização da cultura. Ouvindo os colegas, Sandra levantou a ideia de abordar a história de Mestre Bene, que ela já conhecia porque morava no DIC, quebrada localizada em Campinas. Além da importância social e artística do Mestre de Cultura Popular, Sandra reconhecia um ponto de contato com sua própria história, já que o Mestre e sua própria mãe Regina são da mesma geração. 

“As histórias de vida dele e da minha mãe são parecidas no que diz respeito à militância, simplicidade,  resistência. Pessoas que contribuíram para a história de luta de Campinas e do Brasil. Abordar a história do Bene mexe diretamente comigo, pois a trajetória de minha mãe, que faleceu no ano passado, se entrelaça diretamente com  a construção de luta e resistência daquele território e de nossas vida”, diz. 

Após a escolha de Bene como protagonista, a turma dividiu-se em equipes, assim como na produção de qualquer filme, e  escolheram suas atuações de acordo com os próprios interesses. Entre pesquisa, roteiro, direção, roteiro, os participantes relatam um encantamento com a história do mestre de cultura, militante do movimento negro e educador. Sandra atuou como diretora, produtora e montadora do documentário, e também foi sua primeira experiência de trabalho no audiovisual.

 “Nunca tinha vivido a oportunidade de contar, documentar  a história de um grande mestre, mesmo tendo em minha família e círculo de pessoas próximas figuras relevantes”, conta. Durante as gravações, ela conta que a marca de Bene era a simplicidade e a doçura ao receber a equipe. “Considero ele um patrimônio da cidade. Um mestre griô que traz o legado de luta, resistência e construção da identidade negra e periférica”, descreve Sandra. 

Valorização da cultura preta

Mary Nunes, Nicolle Costa e Igor Amancio, três dos 31 participantes do projeto que realizaram o documentário (Foto: Fabiana Ribeiro/Nonada)

Nem todos os participantes conheciam o protagonista do documentário. Igor considera que isso não seja um acaso, mas um projeto, que invisibiliza fazedores de cultura e artistas negros do imaginário da cidade. A vontade de contar essa história também nasce desta compreensão: mais pessoas, de diferentes lugares, precisavam conhecer quem é Bene de Moraes. “A gente precisa conhecer quem lutou por nós nesse passado não tão distante”, afirma.  “Ele é uma figura emblemática, plural e presente na cultura campineira. Ele merecia ser o protagonista, porque ele já foi o protagonista da sua história e da história cultural da cidade”, destaca o diretor. 

Bene, o poeta negro, nome escolhido para o filme, também foi a primeira oportunidade de mais de 90% da turma de realizar seus primeiros filmes. “Tudo foi novo, mas também fomos muito bem preparados”, relembra Igor. Após a trilha formativa inicial, os participantes do Comunica experienciaram oficinas de cinema com a Laboratório Cisco, produtora audiovisual local responsável também pelo registro audiovisual do projeto. Na etapa do documentário, os participantes exercitam habilidades abordadas nas Oficinas, como a escrita criativa e os métodos de entrevista. 

Esse criar coletivo foi desafiador e enriquecedor, conta Caia Gusmão Ferrer, uma das produtoras do filme. Ela atua há alguns anos no movimento LGBTQIA+ do interior de São Paulo, e descobriu o projeto através do Ateliê TRANSmoras, onde divulga-se oportunidades de interesse da comunidade. 

Para ela, o Comunica possibilitou o pensamento integrado com corpo, através dos exercícios propostos durante as aulas. “Gostei muito dos encontros que pensavam coisas que me afetam como mapeamento afetivo, diversidade cultural e o corpo. Nestas atividades, pensar e mover-se, mudou muito a dinâmica entre as pessoas envolvidas na imersão do Comunica. Criando dispositivos para a conversa, intimidade e interações outras que cursos sobre produção cultural geralmente não criam.” 

Estratégias criativas e coletivas

Ozzi, Ticha, Neno e Sol Martinez formaram a equipe de câmera e som do documentário (Foto: Fabiana Ribeiro/Nonada)

O Comunica e o documentário, aos olhos de Caia, criaram uma comunidade para criação em parceria. “O Comunica abordou desde o texto, o corpo e o audiovisual até a ampliação de nossas maneiras de interação com o território e suas formas de cultura diversa”, observa. Ela exemplifica o encontro com os colegas a partir da imagem de uma constelação. “São encontros, afetos, vida e arte, que fortalecem iniciativas de pessoas LGBTQIA+, pretes, pessoas com deficiência, indígenas, pessoas com hiv que se conhecem no cotidiano corrido ou não, mas que podem potencializar cultura locais.”  

Debóra Cristina é educadora, filha de Mãe Preta e também cria da quebrada. Ela chegou no Comunica através de uma confluência de sua rede de amigos e hoje percebe que o que mais gostou do processo foi a coletividade. “O que mais me marcou foi a experiência de aprender junto com a sensação de segurança para ecoar e confluir os saberes. Me marcou habitar um tempo-espaço  de afeto que foi brotando ao longo da jornada e que no meio, como diz sabiamente Nego Bispo, culmina em um outro começo.” 

“O aprender pode ser afetuoso”, diz Débora. Ela conta que a criação do documentário – em que atuou na direção e no roteiro – refletiu a jornada e o desejo de todes envolvides no processo. “Existiu no cuidado da equipe, foram bonitezas de cuidado e afeto que escorreram da trilha formativa para uma ativação de pessoas que se envolvem, se emocionam e que juntas colocam no mundo memórias.”

A história de um baluarte

Para Igor, atuar como diretor pela primeira vez foi uma oportunidade de potencializar a habilidade de trabalhar em equipe e também o exercício de “entrar em lugares que não são os seus originalmente. Bene é morador de uma quebrada diferente da que Igor nasceu, então houve o processo de aprendizagem sobre como chegar nos espaços da vida do Mestre da forma mais respeitosa possível. “A tomada de decisões sobre o documentário foi muito coletiva, mas também muito pessoal – cada um trouxe suas percepções, e seus entendimentos. Por sermos pessoas de quebrada, esses entendimentos se conversavam em muitos momentos”, relata. 

“O Bene é realmente um Mestre. Ele parte de um espaço negado de acesso, quando entendemos que ele é uma pessoa preta  que saiu de uma fazenda, de uma situação de pobreza, e que galgou seu espaço dentro da cultura para pessoas pretas da comunidade.” Igor conta que todas as pessoas com que a equipe conversava repetiam a mesma palavra em relação ao Bene: paizão.  Durante as entrevistas, foram muitas as vezes que ouviram ‘Bene me cuidou, fez de tudo para mim’. E Igor reforça: “É sobre esse tipo de pessoa que precisamos falar: pessoas que potencializam as pessoas”.

“Bene para cidade de Campinas um dos baluartes da arte, da cultura e da música. Um baluarte vivo. Contar a história dele através da sua própria fala, da sua própria boca, é muito importante”, explica. “Contar a história dele e de outras personalidades se faz necessário para manutenção da memória e reconhecimento do verdadeiro papel do  povo preto na história”, complementa Sandra.

“O maior aprendizado do Comunica é que mesmo que tenhamos nenhuma ou alguma trajetória, vamos aprender e encontrar outras trajetórias de pessoas que podem nos influenciar. Comento isso desde sobre o Bene Moraes, como também a trajetória de muites que participaram do Comunica que estão em caminhos novos, mudanças e outras encruzilhadas de vida e trabalho”, comenta Caia. Os relatos dos participantes se encontram em uma mesma esquina: o Comunica significou expansão. Alargou as possibilidades profissionais, criou redes de trabalho entre as próprias pessoas, ofertou formação e encerrou contando a história de Bene – ou seja, potencializando culturais locais. 

Ficha técnica:

Produção: Sandra Regina Simião de Souza, Caia Gusmão Ferrer, Francine Romero Acorsi, Ana Sunshine, Crespa, Lucimara de jesus santos, Mariana Nunes

Roteiro e Direção: Felipe Ferreira, Igor Amancio, Lara Oliver, Débora Cristina da Paz, Prince M4lik, Fabíola Duarte Pinto, Sandra Regina Simião de Souza, Larissa Damiane, Danilo Santos Nascimento, Rejane Ferreira do Nascimento

Captação de imagens: Nicolle Costa, Ozzi (Ozieliton Santos), Marcelo S. Siqueira, Marta Henriksen, Sol Martinez

Som Direto: Ticha (Patrícia Jesus Marques), Felipe Augusto da Silva, Angelo Akida dos Santos Araújo

Pesquisa: Thaís Ferreira Alves, Ana Carolina Verdicchio Rodegher, Igor Amancio, Cleo Días (Cleudiran Sales Dias), Rose Loureiro, Danilo Henrique

Edição: Ticha (Patrícia Jesus Marques), Fabiola Duarte Pinto, Marta Henriksen, Sandra Regina Simião de Souza, Felipe Augusto da Silva, Suzy

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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