Após 11 anos da última edição, a Conferência Nacional de Cultura (CNC) voltará a acontecer entre os dias 4 e 8 de março de 2024 em Brasília. O encontro, organizado pelo Ministério da Cultura, e considerado um dos pilares do Sistema Nacional da Cultura (SNC), reunirá fazedores de cultura, trabalhadores, sociedade civil e gestores de todo país, e terá como tema “Democracia e Direito à Cultura”. O objetivo é avançar na discussão sobre normas que colaborem para o amadurecimento das políticas culturais brasileiras, a fim de enfrentar as descontinuidades e a pouca institucionalização das políticas culturais.
As diretrizes aprovadas no encontro irão resultar em um novo Plano Nacional de Cultura (PNC), elaborado pela primeira vez em 2010. Para ampliar o debate, a etapa nacional do evento está dividida em seis eixos temáticos. O primeiro deles é a Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura (SNC). Os demais eixos são: Democratização do Acesso à Cultura e Participação Social; Identidade, Patrimônio e Memória; Diversidade Cultural e Transversalidade de Gênero, Raça e Acessibilidade na Política Cultural; Economia Criativa, Trabalho, Renda e Sustentabilidade e Direito às Artes e Linguagens Digitais.
Etapas municipais e intermunicipais foram realizadas em dezembro de 2023 em todas as regiões do Brasil e as etapas estaduais acontecem até 31 de janeiro de 2024. Elas são uma preparação para a etapa nacional e acontecem através da participação de fazedores de cultura locais. Nelas são debatidas as temáticas do Documento Base, lançado em setembro, e elaboradas propostas a partir das perguntas geradoras de cada um dos eixos. Nesta matéria, o Nonada Jornalismo conta o que são as conferências de cultura e explica os temas que serão debatidos neste ano.
Encontros para elaboração de políticas públicas
As Conferências de Cultura são a base da consolidação de políticas públicas da cultura no Brasil. Em 2005, durante o primeiro governo Lula, sob comando de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, aconteceu a 1ª Conferência Nacional de Cultura. O MinC estima que o processo envolveu a participação direta de cerca de 60.000 pessoas, em mais de 700 municípios, em 25 estados da federação e no Distrito Federal. Somente no dia do evento, mais de mil representantes das diversas áreas culturais e de todas as regiões do país estiveram presentes. Ao fim da primeira edição, foram aprovadas 63 diretrizes de política pública para o país – momento considerado histórico pelo nível de participação social.
A conferência serviu como impulso para a elaboração do Plano Nacional de Cultura (PNC), órgão colegiado do MinC, que até hoje orienta as políticas culturais do país. Através de metas, diretrizes e princípios, o PNC foi criado em 2010 para orientar o desenvolvimento de programas culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil. No mesmo ano, aconteceu a 2ª Conferência foi realizada com o tema “Cultura, Diversidade, Cidadania e Desenvolvimento”.
No início de sua gestão à frente do Ministério da Cultura, quando perguntado sobre as diretrizes que iriam pautar a política cultural do governo, o ex-ministro Gilberto Gil respondeu: “A abrangência”. Esse critério fundamentou a concepção que hoje compreende a cultura em três dimensões: simbólica, cidadã e econômica. Até hoje esses são os princípios das Conferências de Cultura.
Em 2013, o Ministério da Cultura, sob direção de Juca Ferreira, realizou a 3ª edição da CNC, com a proposta central intitulada “Uma Política de Estado para a Cultura: Desafios do Sistema Nacional de Cultura”. Ao todo, 450 mil pessoas participaram do seu processo, em mais de 2800 municípios do país. No mesmo ano, foi realizado um ciclo de oficinas de implementação de sistemas de cultura em todas as regiões do país.
Interrompidos sob os governos Temer e Bolsonaro, os mecanismos de reflexão e construção de políticas culturais sofreram uma espécie de congelamento. Isso se refletiu na extinção do Ministério da Cultura e na interferência de diversos órgãos, como a Ancine e o Iphan. As Conferências e o PNC também foram prejudicados, pois segundo a Lei de criação do Plano ele deveria ser revisado em dez anos após a criação, ou seja, em 2020. A exigência foi prorrogada em 2021 e 2022, e a vigência do Plano Nacional de Cultural ficou válida até dezembro de 2024.
Isso significa que a 4ª Conferência guarda uma importância semelhante à primeira: ela servirá para a reformulação do principal regulamento da cultura em nosso país. A CNC é considerada a instância máxima de participação dos fazedores de cultura, onde desde gestores públicos a mestres das tradições culturais brasileiras têm voz ativa.
“Conferências são momentos únicos de afirmação democrática e de apontamentos para a construção de políticas públicas”, avalia Roberta Cristina Martins, Secretária dos Comitês de Cultura. Nos períodos em que são realizadas, sociedade civil e governos têm a oportunidade de mobilizar e promover encontros, além de fortalecer redes, conexões e diálogos sobre as necessidades de cada território. São ocasiões para avaliar a maturidade das políticas públicas em municípios, Estados e no Distrito Federal e apontar novos caminhos.
Direito à cultura é destaque da edição
Estudo recente promovido pelo Itaú Cultural afirma que a Economia da Cultura e das Indústrias Criativas correspondem a 3,11% do PIB do país e empregam mais de 7,5 milhões de trabalhadores e trabalhadoras , apontando o dinamismo e o potencial do setor para a economia e o desenvolvimento. As Conferências são instrumentos de proteção aos trabalhadores da cultura para que se busque formas de garantir a sustentabilidade financeira, em especial dos periféricos, do campo e de mestres dos saberes tradicionais. Desde sua criação, a Conferência tem este objetivo final: garantir direitos.
Cada Conferência traz uma temática que é reflexo das inquietações de seu momento histórico. A primeira, no início dos anos 2000, destacava a interligação entre a cultura e a comunicação digital, em um período de ascensão das plataformas digitais e da multimidialidade. O evento também buscava introduzir a função de gestões culturais, oferecendo informações sobre esse campo de atuação.
Algumas reflexões permanecem quando comparamos o texto da 1ª e da atual edição. Desde a gestão de Gil, há uma luta pelo reconhecimento do papel da cultura na economia. Já naquele momento, buscava-se quantificar a incidência das variáveis culturais no PIB, vendas, contratação de serviços, exportações, importações, empregos, transações com direitos de autores e intérpretes, entre outros. As formas de financiamento da cultura também são debatidas desde a primeira edição. As Conferências têm o papel de visualizar o setor para além de seus valores simbólicos, entendendo a cultura como campo do trabalho e da economia.
Em 2024, o tema debatido enfoca a cultura como um dos elementos constitutivos da própria democracia e a reafirma como um direito universal, ou seja, de todas as pessoas, como é expresso na Constituição. O tema também já havia sido debatido como eixo na 2ª Conferência, em 2010, nomeado como acesso, acessibilidade e direitos culturais. “Esperamos que a 4ª Conferência Nacional de Cultura seja um ambiente de reflexão crítica, mas também de proposições inventivas que farão fortalecer os direitos culturais e o estado democrático de direito em nosso país”, afirma o documento base.
O evento também se propõe a discutir o papel da cultura no enfrentamento das desigualdades sociais, ao racismo, sexismo e todas as formas de discriminação. A nova Conferência demonstra atenção ao direito à memória e reparação de processos históricos que silenciam vozes da diversidade étnica e cultural do país. Exemplos recentes no Brasil são o recém inaugurado Museu do Hip Hop e as diversas iniciativas museológicas em favelas. Outro ponto bastante citado é a necessidade de garantir a acessibilidade, não apenas das pessoas consumidoras de arte, mas também daquelas que fazem cultura no país.
A preocupação com a diversidade de expressões culturais de povos, tradições e profissões também se mantém na CNC deste ano. A 4ª Conferência Nacional de Cultura trará a possibilidade de discutir e priorizar diretrizes para a execução da Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), que possibilitará a irrigação de recursos públicos por 5 anos para todo o país, por meio da transferência de recursos aos estados fortalecendo o Sistema Nacional de Cultura.
Financiamento perene como meta
A Política Nacional Aldir Blanc e a Lei Paulo Gustavo representam momentos marcantes nas políticas públicas recentes como forma de socorro imediato ao setor cultural. Embora se reconheça a importância da mobilização social e política para a execução das leis, a 4ª CNC discutirá políticas de financiamento de longo prazo, como compromisso do Estado – a chamada “institucionalização da cultura”.
Esta é uma forma de combate à precarização das relações trabalhistas na cultura. “Vamos aprofundar nossos entendimentos sobre o que significa “federativar” as políticas culturais, para que qualquer cidadão no mais longínquo território do Brasil tenha as condições necessárias de exercer seus direitos culturais.”
Constata-se uma necessidade de uma organização estruturante da gestão pública de cultura, de forma descentralizada e articulada em nível nacional (inspirada no Sistema Único de Saúde, SUS) para prover melhores condições para o desenvolvimento cultural e acesso. “As políticas voltadas para trabalhadores da cultura, como questões trabalhistas, previdenciárias e de proteção social, precisam ser foco de atenção”, consta no documento.