Nicoly Ambrosio, especial para o Nonada Jornalismo*
Manaus (AM) — Escritora das ruas, Márcia Antonelli não hesita em dizer que gosta do contato com as pessoas quando está vendendo seus livretos em andanças pelo centro de Manaus, capital do Amazonas, onde nasceu e foi criada. “Olhar nos olhos delas, poder falar diretamente a elas sobre a obra”, descreve. É assim que a autora, notável figura do cenário literário manauara desde os anos 1980, faz o “exercício da observância” que guia seu processo de escrita, pavimentado pelo cotidiano urbano da cidade.
Autora de crônicas, contos, novelas, ensaios, prosas e haicais, estilo de poesia de origem japonesa que consiste em um poema curto, a escritora aborda, além da urbanidade de Manaus, o erotismo, a violência da cidade e realismo fantástico. “Manaus é uma cidade que me inspira muito. Seu fluxo, sua contradição, seus tipos humanos, sua misticidade”, explica.
O Nonada Jornalismo ouviu autores da região Norte, que relataram suas trajetórias diversas, as dificuldades e os desafios em produzir literatura. Entre os assuntos abordados, estão o processo de criação, a dificuldade de circulação das obras, o trabalho das editoras locais e reflexões sobre preconceito que muitos escritores da região costumam sofrer.
Como disse em entrevista anterior a escritora Monique Malcher, ganhadora do Jabuti com o livro de contos Flor de Gume: “Estamos e somos faz um bom tempo, mas pensam que podem nos descobrir como se nossa existência tivesse gênese apenas no olhar que nos exotifica. Até quando seus livros vão se passar no norte? Uma vez me perguntaram. E posso afirmar que respondo essa pergunta quando ela for feita para outro autor assim: até quando seus livros vão se passar no centro de São Paulo?”, disse.
Em Manaus, a obra de Antonelli mostra o “lado b” da cidade, “a crueza do asfalto e da vivência das pessoas da periferia”, enfatiza a autora. Longe do “cancro do bucolismo”, um aprisionamento à estética ou ao discurso do regionalismo amazônico, que dita como e sobre o que escritores da Amazônia devem escrever, a autora pensa a cidade de Manaus por um viés urbano. A escritora foi responsável pela criação da Revista Sirrose, uma publicação que, durante 11 edições, reuniu escritores e poetas que produziram literatura considerada subversiva e marginal.
Contudo, ela afirma que o maior desafio de ser escritora em Manaus é a carência de lugares, mesmo nos bares e praças, para transitar e entrar com a sua literatura, que hoje a sustenta. “Há uma cultura escrota aqui nessa cidade que é de cercar os bares e impedir que os artistas circulem, divulguem e vendam suas obras literárias ou qualquer outro tipo de arte. O público é receptivo. Mas essa política cultural é hedionda. Ela nunca está (e nunca esteve) do lado do artista, mas dos empresários”, denuncia.
Para ela, essa “política de atraso cultural” é recorrente na cidade, e por isso Márcia continua a ser uma escritora alternativa. “Ser artista alternativa é ser da resistência”. Com obras traduzidas até para outros idiomas em publicações de revistas independentes, a escritora aponta que a literatura amazonense é muito rica e não deve a outros estados, mas que ainda sofre com ostracismo e com a falta de apoio.
“Arrisco até em dizer que a nossa literatura amazonense sofre bairrismo ou preconceito. Nós temos uma literatura que possui uma identidade própria. Uma linguagem própria. Uma força própria e peculiar. As pessoas daqui precisam se aproximar mais da nossa literatura. As escolas e universidades precisam ler mais e estudar os nossos autores. Mas também é preciso sobretudo romper a bolha política e hermética desses escritores de academia que se fecham e compactuam com esta política assassina e burguesa do estado e seus braços”, disse.
Contos seus como “A Louca”, por exemplo, são baseados em memórias da infância que Márcia viveu no bairro Educandos, incorporadas em sua literatura como personagens que vivem à margem da sociedade, marca de sua escrita. Sua obras já foram adaptadas para cinema e teatro. “O Desentupidor de Fossas”, que fala sobre um alcoólatra que sobrevive na Manaus dos anos 1980, foi transformado em curta-metragem pelo diretor amazonense Jimmy Christian e indicado no Festival de Cinema da Amazônia – Olhar do Norte de 2023. Este ano, ela publicará pela Editora Transe seu livro de contos O Desentupidor de Fossas e Outras Histórias.
No Acre, a jornalista, ativista e escritora Hellen Lirtêz escreve uma literatura também influenciada pelo local onde vive e pelas relações com as pessoas. Sua escrita é inspirada por contextos amazônicos. “Pelas coisas que faltam nesse local, pelas coisas que têm excesso, pelas coisas que tornam o local onde eu vivo um local totalmente identitário. Tenho uma introspecção muito grande sobre isso”, diz.
Desde os 8 anos de idade, a autora produz poesias e hoje se debruça a pensar sobre as injustiças sociais e ambientais que “tocam fundo a sua alma”, ressalta. Em 2018, conheceu uma maneira mais política de expor seus ideais, por meio do Movimento SLAM (campeonato de poesia falada). No mesmo ano, ficou em 3° lugar no SLAM Estadual e 3° lugar no SLAM Nacional, em dupla, representando a etapa Norte da competição. Em 2020, participou da antologia Porque Somos Mulheres e no ano seguinte publicou poesia na antologia Reminiscências, que reúne 100 escritores acreanos. Em 2022, lançou seu livro solo, Poesia Oceana.
“O que me leva a escrever é o incômodo, sabe? Quase nunca escrevo coisas sentimentais, é um incômodo muitas vezes com alguma questão política, então isso me leva a escrever e eu escrevo para os outros nesse processo. Eu tento fazer uma ponte com as coisas que eu escrevo, para que outras pessoas possam caminhar por ela e ver o que eu consigo ver também”, afirma Hellen.
No que diz respeito à visibilidade da literatura do Norte no resto dos país, a escritora analisa que o Brasil não aprendeu a consumir a região de forma intelectual, sem exotificação ou folclorização das obras, como são consumidos os trabalhos do eixo-Sul-Sudeste. “Muitas vezes por curiosidade, os autores nortistas são lidos, mas é sempre com essa ideia folclórica do que seria o Norte e do que está sendo produzido aqui”, expressa.
Além disso, a poeta questiona a quantidade de escritoras mulheres do Norte que são lidas e consumidas intelectualmente pelo restante do Brasil. Ela considera que a baixa adesão ao trabalho de nortistas é fruto de xenofobia. “Elas não são lidas porque esse pensamento nortista não é validado no restante do país, como uma coisa a ser aprendida e dialogada. A gente vê a xenofobia voltada para cá, para nossas questões culturais, pelo jeito como a gente fala e pelo jeito como a gente se posiciona, vinda de regiões como sudeste e o sul”, diz ela.
Mesmo quando há a presença de autores do Norte nas publicações e círculos literários, Hellen diz que não é comum a presença de mulheres escritoras. “Essas mulheres ainda não são lidas, então, a gente precisa ler mulheres, admirar essas mulheres e consumir esse conhecimento que essas mulheres proporcionam para poder impulsionar de verdade a literatura nortista feminina”.
Barbara Primavera, jovem poeta nascida no município de Afuá, no Pará, observa que seus escritos estão cercados pela Amazônia. Transitando entre rios e asfalto, do Pará à cidade de Macapá, no Amapá, ela fala da Amazônia sob a perspectiva de uma pessoa que viveu cercada pela vida cotidiana ribeirinha. Desde 2016, participa de rodas de poesia e exposições em eventos literários nas cidades de Macapá e Santana, onde desenvolveu seu trabalho de escrita que começou aos 13 anos de idade.
“Falar através desse olhar me trouxe uma sensibilidade muito grande”, explica sobre a sua obra, que abarca também as histórias de mulheres silenciadas da Amazônia, que “apesar das belezas naturais e coisas muito lindas que nós temos dentro da Amazônia, nós temos mulheres à margem dos rios sendo abusadas, e eu queria falar sobre isso”, diz, citando como exemplo o poema “Certas Marias”, um relato de violência sexual em uma família ribeirinha.
Outros temas que rodeiam o seu processo são a misticidade e os encantamentos dos povos de terreiro e de religiões de matriz africana. “Falar sobre Amazônia e falar sobre a mulher da Amazônia, falar sobre as mulheres de terreiro, isso é muito interessante, é um prato cheio para mim. A gente vê essa misticidade nos nossos costumes amazônicos, com os banhos de ervas. Acho que os meus poemas têm gosto e cheiro de folhas”, relata.
Para Barbara, os desafios de escrever na região Norte emergem principalmente na falta de políticas públicas que viabilizem a publicação de livros físicos e impressos. Outra barreira é a apatia do público diante das obras nortistas. Ela acredita que os autores da região são ignorados pelo cenário da literatura nacional. “Há uma falta de circulação, uma falta de valorização. Apesar de estarmos em um mundo muito virtual, a publicação de livros é muito importante. Outro desafio é que as pessoas não leem autores do Norte, mesmo com a vasta produção literária produzida aqui”, declara.
Furar a bolha literária
De Roraima, Sony Ferseck, escritora indígena da etnia Macuxi, foi semifinalista na categoria poesia do 65º Prêmio Jabuti, em 2023, com seu livro Weiyamî: mulheres que fazem sol. Diante das condições de produção e difusão das obras de autoras e autores do Norte, que acaba afetando a sua visibilidade, Sony diz não acreditar que conseguiu chegar tão longe. “Se me perguntassem lá no início da minha andança editorial e de escrita que eu ficaria entre as semifinalistas da categoria poesia no Prêmio Jabuti, não iria acreditar porque são muitos nãos que temos de receber ainda hoje”.
A escritora percebe, no entanto, que as tecnologias de comunicação, como a internet e as redes sociais, ajudaram a fazer com que os escritores do Norte pudessem se encontrar e estabelecer conexões, trocas de experiências e circular seus livros para além de seus locais de origem. “A visibilidade tem aumentado pouco a pouco, mas para a maior parte da população do Brasil, escritoras do Norte não fazem parte de seu horizonte de leituras ou mesmo conhecimento. Dei algumas aulas na Universidade Federal de Roraima (UFRR) de literatura e perguntava aos alunos que indicassem nomes de autores e autoras do Norte. Pouquíssimos sabiam nomear”, relatou.
Ferseck tem mais dois livros publicados, Pouco Verbo (2013) e Movejo (2020). “Weiyamî: mulheres que fazem sol”, publicado em 2022, é uma obra composta por 15 poemas bilíngues, que combinam português com macuxi, escritos em versos livres. O título da obra é na língua macuxi, “Wei” significa “Sol” que, para a cultura deste povo, é uma entidade feminina e, por isso, Sony usa como alegoria para ilustrar a força da mulher indígena. “Escrevo nos dois primeiros livros sobre muitos assuntos, mas as questões femininas e indígenas sempre estão entrelaçadas nesses assuntos. Não tinha como ser diferente visto que cresci em Roraima, um dos estados do Brasil com os piores índices de violência contra as mulheres, de feminicídio e de violência contra os povos indígenas. Então, é bastante influenciado por estas realidades que vivencio”, afirmou.
Cada um dos poemas de Weiyamî: mulheres que fazem sol recebeu uma ilustração de Georgina Sarmento, artista visual indígena de etnia Macuxi e Wapichana, que entre as técnicas utilizadas incorporou o bordado. A poeta entende que a visibilidade das escritas têm aumentado e tem tido recepção até melhor em outras regiões do que na própria região Norte.
“Na verdade, muitas das vezes somos ignorados pelo cenário da literatura local. Isso porque embora escrevamos na região Norte, não escrevemos de maneira alheia aos problemas sociais, às circunstâncias políticas e históricas dela. Cresci em Roraima, tenho família no Pará também. O governador atual do estado de Roraima foi autor de um projeto de lei que buscava legalizar atividades de garimpo em terras indígenas. Isso para se ter uma ideia do estado de coisas da região Norte. Isso faz com que nossas escritas sejam mais bem acolhidas e recepcionadas entre outros públicos, mais sensíveis e politizados com relação às questões que levantamos”, argumenta.
Para o também roraimense Aldenor Pimentel, jornalista, poeta e escritor, o grande desafio dos autores do Norte é vencer as distâncias, tanto geográficas quanto simbólicas. “Nós estamos longe do eixo rio-são Paulo, portanto de onde estão as maiores livrarias e editoras do país, e onde estão concentrados os maiores eventos literários. É onde está concentrada também uma maior parte da população, então a maior parte dos potenciais leitores do que produzimos”, ressalta Aldenor.
Ele é autor das obras Deus para Presidência (2015), Livrinho da Silva (2017), A Inacreditável História do Milho Gigante (2019) e O Jogo da Democracia (2021), e já recebeu cerca de 70 prêmios em concursos literários nacionais e internacionais pela produção de romances, poemas, crônicas e contos voltados a crianças, jovens e adultos. Selecionado em um edital de publicação de livros do Governo de Roraima, Eldorado de Brisa foi seu primeiro romance publicado.
O autor sugere que para furar a bolha do cenário literário convencional, é preciso superar as distâncias por meios alternativos. “Nós temos também alguns meios de diminuir essas distâncias de forma independente, sem precisar ser publicado por uma editora tradicional. Existe a possibilidade de se publicar em plataformas digitais, em que as pessoas podem ter acesso ao seu livro não só no suporte físico, mas digital também. Existem pessoas que escrevem nas redes sociais, em blogs. Então, todas essas estratégias são possíveis e fazem com que essas distâncias encurtam”, observa.
Processos transitórios
Quando publicou BÊTE (“Bicho”, em português), em 2021, na França e no Mali, Beatriz Mascarenhas estava longe de casa. Escritora, roteirista, dramaturga e produtora cultural nascida em Manaus, no Amazonas, Mascarenhas escreveu a maior parte do longo poema engajado em questões sociopolíticas e de raízes familiares quando ainda morava em Marselha, no sul da França. O livro, descrito por ela como um “poema político inspirado na mesma estrutura livre do Poema Sujo, de Ferreira Gullar, nem sempre rimado, de forma muito crua”, escancara o racismo, a xenofobia e a saudade do local de origem, problemas enfrentados pelos imigrantes na Europa.
“Foi um choque perceber como os franceses eram racistas e “Bicho” nasceu dessa raiva mesmo, a gente começa a ficar muito irritado. Acho que no primeiro ano que você imigra para um país europeu, você tem o baque da raiva. Você sente raiva porque eles não têm noção da colonização, eles realmente se acham muito desbravadores e exploradores, curiosos por natureza. Os europeus têm uma cultura de racismo e de xenofobia presente, é notório”, atesta.
Em 2020, ela se tornou roteirista da Turma da Mônica, nos Estúdios Mauricio de Sousa. Participa de diversas antologias literárias, dentro e fora de Manaus, desde 2012 e também foi roteirista de Histórias em Quadrinhos em obras coletivas como Mao 39° e MaoPinGuari. Gato, garoto, gaivota, publicado em 2023 no Brasil, é o seu primeiro livro para crianças.
Para a poeta, que transitou entre Manaus e Marselha enquanto escrevia “Bicho”, o processo de mudança para o país europeu foi um “soco”, como define. Diante da dor da distância de sua cidade e de situações vexatórias de preconceito, nascem versos como: “O que dói, minha mãe / É saber que nessa rua não sou um passarinho / É sentir que nessa rua sou um rato de esgoto”.
Apesar de celebrar o fato de publicar no mercado editorial africano e de estar produzindo para outros países da Europa, “uma hora bateu a água no pescoço e vi que tinha que vir embora paro o Amazonas”, disse Mascarenhas. Ela ressalta o fato de que sua poesia, que fala sobre questões políticas de diferenças de classes sociais e raciais, questões LGBTQIAPN+ e aspectos de sua própria família, se diferencia do que autores europeus estão escrevendo, por isso “não é interessante construir carreira literária na Europa”.
“Eles escrevem sobre problemas de brancos e europeus. Eu vim de Manaus, eu tenho uma história de família muito interessante, eu não vou ficar falando sobre coisas sempre muito palatáveis, muito fáceis de serem faladas. Então acho que é por aí essa questão dos temas que influenciam a minha escrita”, declarou.
No Brasil, como escritora do Norte, a barreira é ter visibilidade no resto do país com as suas obras produzidas e publicadas na região. Para Mascarenhas, a literatura feita fora do eixo do Sudeste é pouco valorizada. “É difícil alcançar esse público e esse mercado. A gente publica, a gente divulga, mas parece que tem uma barreira mesmo que não é só geográfica, como muitas pessoas pensam, mas também é um barreira realmente preconceituosa em relação ao Norte do país”.
“Acredito que na minha escrita há muito das paisagens dos territórios em que vivo, pelos quais eu passo, pelos quais ocorrem os encontros”, disse à reportagem a escritora e jornalista Gabriela Sobral, de Belém, no Pará. Seu primeiro livro de poesias, Caranguejo, foi lançado pela Editora Patuá em 2017. Ela também mediou o clube literário Leia Mulheres, na cidade de Belém, e realizou o projeto “Imaginárias”, premiado pela Fundação Cultural do Pará em 2016.
A poesia de fluxos criada por Sobral carrega, em suas palavras, a temperatura dos lugares em que morou, um recorte de paisagens e territórios. “Nos últimos anos, por ter me mudado muito de casas e cidades, acabei não desenvolvendo uma rotina fixa. Posso ficar longos períodos sem escrever. Uma meta diária é algo bem distante do meu processo. Por isso, um verso que criei pode ser finalizado tanto no mesmo dia como daqui a seis meses”, explica a escritora.
Ela diz acreditar que os artistas e a produção do Norte ainda são muito estereotipados pelo mercado editorial e da arte em geral, além da limitação encontrada na distribuição, publicação e promoção das obras. “Os desafios ainda são enormes, acho que o maior deles é a distribuição desses livros em espaços como livrarias, bibliotecas públicas, eventos de promoção do livro e leitura. Tudo isso é ainda muito escasso e faz com que as narrativas que nascem aqui, por vezes, parem em nichos de distribuição muito específicos. Outro ponto é que se em âmbito nacional viver como um escritor já é difícil, quem dirá como uma escritora do Norte, a falta de possibilidades de se viver, economicamente, da literatura e da produção cultural é um desafio ao crescimento e amadurecimento da arte aqui produzida”, expõe.
Editoras independentes movem novos autores
De acordo com o estudo de mapeamento e catalogação de editoras do Norte feito pela pesquisadora Mylena Santos, da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), os desafios de operações desses espaços são inúmeros, começando pela adesão dos leitores.
“As obras de cunho amazônico ou nortista não são narrativas lidas pelos leitores daqui, há uma baixa adesão do público de leitores dos mais diversos perfis, seja de obras de poesia ou literatura fantástica, por exemplo. Os leitores optam por consumir a literatura produzida em outros locais, mesmo que no Brasil e não a literatura do Norte, mesmo que eles estejam presentes nesses espaços”, explicou a pesquisadora em entrevista ao Nonada.
Santos aponta que as condições de produção literária na região são precárias e que mesmo as novas editoras, a maioria operando de forma independente, não estão em posição privilegiada, lidando com dificuldades financeiras e de visibilidade para funcionar. Por outro lado, essas iniciativas que são as mais transgressoras em dar vazão à uma literatura produzida por pessoas “das margens”, diz a pesquisadora. Esses são os novos autores que, em tese, não seriam bem recebidos ou não fazem parte do perfil das grandes editoras.
“Esses locais mais intimistas estão abraçando esse escritor que está começando, que não tem capital suficiente nem público ainda. À sua maneira, esses espaços contribuem muito para a continuidade da literatura. As editoras independentes são transgressoras em não olhar com preconceito para essas obras, elas não são só alternativas para as autores, às vezes elas são o único meio de publicar”, atestou.
Editora independente do estado de Roraima, a Editora Wei foi fundada em 2019 pelos escritores Sony Ferseck e Devair Fiorotti, a partir de uma pesquisa acadêmica sobre histórias e cantos indígenas. “Queríamos que não ficassem restritos aos relatórios. Queríamos que as vozes indígenas circulassem para além de suas comunidades, que chegassem para muitos outros lugares”, ressaltou Sony.
A editora já fez a publicação de cerca de 30 livros de autores indígenas e não indígenas. As narrativas são em versões bilíngues em português e língua Macuxi ou Taurepang como Adaä Pantonü – A história do Timbó (2018), Makunaimö Pantonü – A história de Makunaima (2019), Meriná eremu – Cantos e encantos (2018) e Ka’sana pantoni – A história do Urubu-Rei (2022). Esses livros são narrados, traduzidos e ilustrados por indígenas, o que faz com que mais do que suportes para esses cantos e histórias originários, os livros sejam obras de arte visuais, além de valorizar o protagonismo indígena na produção das obras.
Sony Ferseck admite ser muito difícil manter uma pequena editora em Roraima, pelas limitações técnicas e financeiras. “Há muita falta de incentivos e recursos. Há apenas duas gráficas aqui e os materiais vêm de fora, o que encarece bastante as impressões. Mas as alianças afetivas têm me feito continuar, como o prêmio Arena Palavra que recebemos por nossas atividades. E assim seguimos”.
Em Manaus, no ano de 2020, já no período de isolamento pela pandemia da Covid-19, Luana Aguiar começou a pensar na abertura de uma editora. No entanto, esbarrou em diversos problemas, como a falta de cursos para a área e gráficas especializadas na impressão de livros, por exemplo. “As editoras iniciantes e de pequeno porte não possuem recursos e estrutura para isso”.
Pela falta de acesso a técnicas adequadas de impressão e com o desejo de ultrapassar esse problema, Luana decidiu fazer os livros à mão. Assim nasceu a Editora Transe. “A encadernação artesanal surgiu nesse momento para mim, eu não tinha experiência com isso. Realizei alguns cursos pela internet e, aos poucos, fui montando o meu pequeno ateliê de encadernação em casa. Este foi um desafio que me levou a desenvolver a Transe como uma editora artesanal inicialmente. Eu, de fato, naquela época, não tinha noção da dimensão e da importância dessa escolha. Mas, hoje, após um certo crescimento, a editora não trabalha apenas com edições artesanais, mas edições convencionais em gráfica também”, disse Luana.
A Transe publica obras literárias como contos, romances, poesia, crônica, teatro, e não-literárias na área de Humanidades (história, filosofia, crítica literária etc.). Tem como objetivo publicar obras inéditas e, principalmente, de escritores da região Norte. Ainda este ano, a editora irá lançar duas obras contempladas em editais de cultura. Uma é a já citada antologia de contos O Desentupidor de Fossas e Outras Histórias, da autora Márcia Antonelli, e a outra é a obra de peças de teatro do ator amazonense Adanilo.
Em julho do ano passado, a Transe lançou a coletânea Narrativas em transe, primeira coletânea de chamada aberta da editora, com foco em reunir textos narrativos de escritores do Norte do país. Foram selecionados 17 textos de autores do Amazonas, Pará e Acre para compor o livro. Essa foi uma das ações da editora para movimentar a publicação de autores da região.
Nicoly Ambrosio
Jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e fotógrafa independente residente na cidade de Manaus. Como repórter, escreve sobre violações de direitos humanos, conflitos no campo, povos indígenas, populações quilombolas, racismo ambiental, cultura, arte e direitos das mulheres, dos negros e da população LGBTQIAPN+. Já expôs trabalhos fotográficos no 10° Festival de Fotografia de Tiradentes (Tiradentes/MG, 2020) e Galeria do Largo – Espaço Mediações (Manaus/AM, 2021-2023).