O avesso da Pele (Foto: divulgação)

Com funk e orixás, versão teatral de O Avesso da Pele traz dramaturgia elaborada 

“Ogum é o único orixá que fala de abismos”. A frase abre o espetáculo O avesso da pele, dirigido por Beatriz Barros e interpretada pelos integrantes Alexandre Ammano, Bruno Rocha, Marcos Oli e Vitor Britto, do Coletivo Ocutá. O nome do grupo, inclusive, remete às pedras, rochas e outros minerais em que estão representadas as energias de cada orixá. 

Quando levamos um ocutá para o quarto de santo, estamos abrindo caminho para a morada da divindade dentro da pedra. Essa é uma das formas de seu cultivo por praticantes de religião de matriz africana. No candomblé, Ogum pode ser representado com a cor azul, pigmento que tinge as vestimentas dos personagens do espetáculo baseado no livro homônimo de Jeferson Tenório, publicado pela Companhia das Letras. 

Ogum também é o orixá pai de cabeça de Henrique, pai de Pedro, o protagonista da obra. Logo no início da peça, Pedro segura o ocutá de seu pai, embalado em um pano. Durante o drama, vemos os quatro atores montarem o quebra-cabeça da vida do progenitor, em meio a muitos livros e recorrendo a preceitos de religião de matriz africana como elementos da dramaturgia. 

Na obra, Henrique é um homem negro, professor de literatura, morador da periferia, na vila Bom Jesus, em Porto Alegre (RS) e foi morto brutalmente durante uma abordagem policial. Antes de sua morte, Henrique comemorou sozinho o sucesso de uma aula sobre Crime e Castigo, do escritor russo Fiódor Dostoiévski. “Eu conheço um homem que matou duas pessoas e eu sei tudo que ele estava pensando enquanto matava elas”, proclama o professor para sua turma, que assiste compenetrada.

Foto: divulgação

No livro russo, o protagonista só consegue atingir a felicidade quando é punido. Assim, a redenção é alcançada somente após castigo, remetendo a uma ideia religiosa cristã de que primeiro precisamos sofrer para depois sermos felizes. Já na vida de Henrique, após seu maior momento de felicidade, quando finalmente consegue seu êxito enquanto professor, ele é assassinado, parado durante uma abordagem policial de rotina. 

A punição imediata e brutal para personagens que alcançam seu sucesso após uma vida sofrida também ocorre em A hora da estrela, de Clarice Lispector. Neste romance, Macabéa, uma retirante nordestina, morre atropelada logo após descobrir que teria sucesso na vida. 

A versão transposta para os palcos fala sobre pais e filhos, literatura, educação, religião de matriz africana e racismo. Pedro e Henrique são dois homens marcados pelo racismo em seus afetos. À medida que se apropriam de sua própria subjetividade enquanto pessoas negras, conseguem melhorar suas relações. Vemos, no filho, uma tentativa de reconstruir a história do pai para que consiga dar sentido ao vazio de sua morte violenta e racista. 

O Nonada Jornalismo assistiu ao espetáculo junto com a casa lotada no último dia de apresentação durante o 30º Porto Alegre em Cena – os ingressos estavam esgotados. No primeiro e no segundo dia, a organização do evento contou que foram vendidos 1600 ingressos para cada sessão. 

A narrativa não-linear da dramaturgia alterna entre momentos de dança funk e hip-hop entre as cenas. Os quatro atores se revezam na interpretação dos personagens e, em alguns momentos, usam a balaclava, uma espécie de gorro que vai até a cabeça. 

Foto: Beto Rodrigues/Porto Alegre em Cena

Essa é uma das formas de ressignificação de estereótipos racistas durante a peça, já que pessoas negras vestidas dessa forma podem sofrer racismo. “Balaclava é uma coisa que na rua só branco pode usar”,  já desabafou o apresentador e ex-BBB João Luiz Pedrosa em suas redes sociais. Mais uma vez, o trabalho pedagógico da literatura, de formar leitores e cidadãos críticos, é trazido na escolha da simbologia visual. Foram 3 anos de ensaio e pesquisa para criar a peça. 

Em muitos momentos, a cenografia tinha como centro uma sala de aula, por conta da profissão de Henrique. Os atores chamavam a plateia para participar das cenas com cantos e palmas. Mas além disso, parte do público era formada por 60 estudantes do Ensino de Jovens e Adultos (EJA) da Escola Municipal de Ensino Fundamental Saint Hilaire. Para a coordenadora do EJA do colégio, Nina Becker, estar na peça com os alunos foi “maravilhoso, maravilhoso. Tenho certeza que eles aproveitaram muito”. 

Censura de livros e amor às artes são temas de conversa entre Jeferson Tenório e Marcelino Freire

“É muito triste estar falando o óbvio. Não vencemos, voltamos uma etapa e temos que fazer a conversa de novo”, desabafa o escritor e produtor cultural Marcelino Freire. A fala faz menção à censura que o livro O avesso da pele, de Jeferson Tenório, vem sofrendo, com a retirada de seus exemplares em bibliotecas públicas estaduais. Os dois autores estiveram reunidos no auditório do Prédio de Humanidades da PUCRS, em Porto Alegre.

Os exemplares da obra estão sendo retirados de catálogos de bibliotecas escolares estaduais. Tanto os estados do Paraná, Goiás e Mato Grosso do Sul tiveram os livros recolhidos e o conteúdo atacado por representantes do governo. Ainda, o governo paranaense tem falado sobre permitir o livro somente para pessoas maiores de 18 anos. “Parecia que o pior já tinha passado, mas não passou”, lamenta Barberena. 

O movimento de censura ocorreu poucos dias após o livro ser atacado pela diretora de uma escola no interior do Rio Grande do Sul, em vídeo. Mesmo assim, nas últimas semanas, o livro estava esgotado nas livrarias e a peça com nome homônimo teve ingressos esgotados no último dia de apresentação na PUCRS. Para Freire, o consumo destes materiais “é a afirmação de algo que não tem censura que pare, e a resposta viva imediata que está sendo dada é o espetáculo com a casa lotada”. A universidade, para ele, é um espaço de resistência do pensamento.

Foto: Cláudio Fachel/Porto Alegre em Cena

Para Tenório, o papel da literatura é formar leitores e promover o pensamento crítico. Ele também destacou a importância de desafiar o status quo e incentivar as pessoas a se tornarem leitoras ativas e pensadoras independentes. Ser escritor, segundo ele, é pensar no artesanato da palavra e fazer a mediação pedagógica “Infelizmente, a ultra direita e os ultraconservadores têm sido muito eficientes em levar as pessoas a atacar os livros”, comenta ele.

Tanto Freire quanto Tenório já atuaram em apresentações teatrais. “O teatro me ensinou a cooperação e a ser solidário”, comenta Freire. “Teatro é palavra”, define. Toda vez que eu escrevo eu penso em teatro. A palavra aparece como fala, embocadura. Os personagens, na minha escrita, vão surgindo pela fala, pela palavra”, explica o escritor. Ele fez teatro de seus 9 aos 19 anos e continua apaixonado pela dramaturgia. “Quando um texto meu foi escolhido para ser interpretado pelo teatro,  significou um sonho antigo sendo realizado”, disse Freire. 

Já Tenório participou, durante a época de faculdade, de um grupo de teatro chamado Mitologia Subversiva. O escritor conta que largou o teatro após ter que fazer uma peça-propaganda de remédios contra piolhos, em que performou o inseto parasita, perseguindo crianças no recreio enquanto era perseguido por uma colega que interpretava o remédio contra piolhos. “Sou um ator frustrado”, disse Tenório, levando a plateia às gargalhadas. 

Assim, a partir da literatura, tanto Tenório quanto Freire conseguem fazer teatro. Inclusive, o primeiro texto de Tenório a ser adaptado para os palcos foi o conto A beleza e a tristeza, mas ele não participou da premiação por causa de acordos de direitos autorais. Assim, ele não constou na ficha técnica da obra. Para ele, constar como autor na peça O Avesso da Pele e ir ao palco receber os aplausos é uma ressignificação pessoal de que sua obra pode e é reconhecida também nas artes dramáticas.

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Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
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