Leticia Pasuch (reportagem originalmente publicada na revista Sextante, do curso de Jornalismo da UFRGS)
Iara Deodoro, de 63 anos, é mestra de dança afro-gaúcha no Grupo de Música e Dança Afro-Sul. O coletivo faz parte do Instituto Sociocultural Afro-Sul Odomodê, um dos principais espaços de referência da cultura negra em Porto Alegre. Quando Iara se interessou pela dança, ainda jovem, teve dificuldade de encontrar características específicas da negritude nessa expressão artística.
A própria coreografia da dança afro tinha elementos embranquecidos e, com o passar dos anos, foi criando suas raízes particulares, conta. “A minha dança era uma dança branca”, relata Iara, que, por meio de contato com africanos, foi conhecendo melhor a dança negra. Foi aí que ela começou a prestar atenção no seu corpo enquanto dançava. “O que eu tinha mais dificuldade em fazer nas outras danças era o meu alerta para dizer ‘não, isso não é teu, isso não é para o teu corpo’.”
A dança afro-brasileira ocupa, no contexto cultural do país, um protagonismo que carrega sentidos político, artístico e pedagógico. Por meio da linguagem corporal, a manifestação artística pode ser uma forma de resistência e cultivo da ancestralidade. Iara conduz, hoje, o curso de metodologias de dança afro-gaúcha, que surgiu pelo incentivo de bailarinas do grupo do Odomodê.
Elas perceberam que a dança afro tinha um formato reconhecido em outros estados como Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, mas ainda não existia uma coreografia afro com raízes do Rio Grande do Sul. Iara entende esses formatos como “sotaques”. “Tu identifica no corpo da pessoa de que lugar ela é”, explica a mestra. Hoje, o sotaque da dança afro-gaúcha, desenvolvido por ela, se baseia em três pilares: a contração, o contratempo e o forte-suave.
A contração é um movimento comum nas coreografias criadas por ela, feito com o tronco. O contratempo é um gesto usado em qualquer dança de forma sutil, mas na dança afro-gaúcha é obrigatório. Por fim, o forte-suave é um movimento identificador da dança afro-gaúcha. Iara exemplifica esse terceiro pilar falando dos passos que se faz em referência aos Orixás.
Uma coreografia que fale de Ogum, por exemplo, normalmente tem o movimento de espada, forte. Porém, na dança afro-gaúcha, ele deve ter também uma suavidade. “Porque tu estás dentro de uma coreografia, então tem que manter aquela plástica”, explica a mestra. A união da força com a suavidade mostra a intenção do movimento. “Eu tenho a força das minhas pernas, mas tenho a suavidade do meu tronco”, resume.
Na coreografia de um de seus espetáculos, “O Feminino Sagrado: um olhar descendente da Mitologia Africana”, o grupo trabalhou com Yabás, as Orixás femininas. “A Oxum é leve, mas ela é forte. Ela tem a intenção”, diz Iara. Ou seja, ela pode ser representada na dança com força sem perder sua leveza. “Iemanjá é aquela coisa mais suave, mais onda, mais mar. E a Nanã vem o tempo inteiro na suavidade”, completa.
Iara reflete sobre o significado da dança como ação. “Dança é movimento, todo mundo concorda com isso. Mas o caminhar é movimento, né? Por que tu achas que tu não estás dançando quando estás caminhando?”, questiona a mestra. Ela explica que, entre um passo e outro, existe um vazio de milésimos de segundos. “A dança está exatamente ali, naquele espaço vazio”, define. Para ela, esse vazio é preenchido com a subjetividade do bailarino, com a sua expressão facial e até com o seu sentimento no momento.
Identidade da mulher preta
O Afro-Sul e a dança de Iara tornaram-se referência para outros grupos. O coletivo Corpo Negra, criado em 2015 por estudantes mulheres de dança da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e que tornou-se projeto de extensão, é um deles. “A gente tem muito da mestra Iara nas nossas danças”, diz Karine Guedes, que participa tanto do Afro-Sul quanto do Corpo Negra.
O coletivo ensaia na Escola de Educação Física, Fisioterapia e Dança (Esefid) da UFRGS. Além de apresentar espetáculos, as participantes também dão aula em escolas públicas de Porto Alegre e da região metropolitana. No projeto, são abordados diversos estilos – por exemplo, o tango branco colonizado e o tango afrocentrado, que inclui ritmos afrodescendentes como o candombe – ritmo musical sul-americano, calcado sobretudo nos tambores, que mistura de música, dança e a fusão dos Bantu e a religião católica, desenvolvida por escravizados angolanos e congoleses.
Especula-se que o tango tenha origem negra e esteja vinculado à milonga cubana, que era uma expressão da população que vivia nos subúrbios e tinha que dançar em espaços pequenos. Enquanto no tango hoje chamado de clássico os movimentos são feitos principalmente a partir do quadril, o tango afro exige a movimentação do corpo inteiro. O quadril e as articulações soltas fazem o corpo dançar livremente ao som do tambor, mas os pés devem estar aterrados, como raízes.
O Corpo Negra prioriza as particularidades de cada bailarina nas criações coreográficas, levando em conta a diversidade de personalidades e de corpos. Karine explica que todas as participantes fazem reflexões e sugestões no momento de criar as coreografias. “Qual irmã tem o jazz no corpo para passar para nós?”, exemplifica ela sobre os sotaques das bailarinas, que vêm de cantos diferentes da cidade e do estado e trazem na dança as suas vivências.
Diversos estilos são trabalhados, cada um com a sua singularidade. “O que a gente mais quer é transmitir essa nossa identidade enquanto mulher preta”, diz Karine. A bailarina ensina que as danças afro-diaspóricas – que representam a dispersão do povo negro – evocam uma conexão com as raízes ancestrais. “A dança afro irradia o movimento. O movimento precisa ter os pés no chão bem enraizados, e é uma conexão que vem da raiz do chão até o topo da cabeça”, diz Karine.
As diferentes linguagens corporais
A dançarina Alessandra Souza considera fundamental aprender a dança afro com os mestres. “Direto na fonte”, como diz. Ela faz parte do grupo Brincantes do Paralelo 30, outro projeto de extensão do curso de Dança da UFRGS. O grupo também aborda várias linguagens da dança típicas do norte ao sul do Brasil.
Alessandra destaca a prática do maçambique, manifestação negra da cidade de Osório, também uma expressão afro-gaúcha da congada, que é resultado da mistura de expressões artísticas trazidas pelos negros escravizados com as da religiosidade cristã. Ela explica que em Salvador a dança afro é voltada aos Orixás e tem os movimentos frenéticos do braço. Já no Rio de Janeiro, o gingado é diferente, com o foco no rebolado do quadril por influência do samba. No sul, as manifestações exigem os pés no chão, joelhos flexionados e a ondulação na coluna.
Há, também, o jongo: outra manifestação da dança afro, que honra os antepassados e tem raízes na região sudeste do Brasil. A expressão veio do povo ubuntu, que se instalou na região do Vale do Paraíba. Os escravizados nas fazendas usavam os cantos do jongo como uma estratégia de comunicação, por meio de códigos para que os seus “donos” não compreendessem.
Alessandra enfatiza que é necessário entender a pluralidade das danças afro e não colocá-las em uma caixa só. “Quando a gente pensa em dança afro, nossa cabeça vai direto para Salvador, por exemplo. É importante a gente ter as nossas referências [gaúchas] e saber que existem, né? Para nós mesmos não acabarmos apagando a nossa história”, enfatiza.
Quem pensa da mesma forma é Mano Amaro, coreógrafo especializado na cultura afro-brasileira. Ele defende o desenvolvimento de uma metodologia de dança negra própria do Rio Grande do Sul. “O que caracteriza, por exemplo, o negro do Rio Grande do Sul? Podemos pegar pelo lado religioso, ou pelo lado profano, que seriam as festas blacks, que foram fortes.” A dança afro entrou na vida de Amaro por meio de festas ritualísticas de religião de matriz africana. No final dos anos 1980, começou a ministrar cursos e atuar como coreógrafo.
“Quando eu praticava a dança afro no Rio Grande do Sul, ela não era considerada dança. Era muito discriminada. Hoje, com o passar do tempo, volto ao Brasil e percebo uma outra visão de conotação para a dança afro que acho interessante”, analisa Amaro, que acredita que essa manifestação cultural ganhou mais visibilidade, mas lembra que é uma cultura, não um modismo. Alessandra, no entanto, considera as manifestações de danças negras ainda desconhecidas por muitos no estado, o que também caracteriza a maneira de ela ser expressada.
Iara defende que é preciso levar a dança afro-gaúcha adiante, pois há lugares no próprio estado em que as pessoas nem sabem que tem negros: “Não só tem, como tem cultura. A gente precisa disseminar isso, fazer com que as pessoas entendam e falem que tem. Porque, se não, a gente acaba caindo no esquecimento.”
Leticia Pasuch
Estudante de Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Tem interesse especial em temáticas ligadas a cultura, direitos humanos e meio ambiente.