Foto: Filipe Araújo/MinC

Da diversidade cultural aos direitos trabalhistas, Conferência elege 30 propostas para nortear novo Plano Nacional de Cultura

Brasília — Foi com o mesmo canto que Ailton Krenak havia manifestado na Constituinte de 88 que a artista e liderança Daiara Tukano celebrou a plenária final da 4ª Conferência Nacional de Cultura (CNC). O encontro encerrou com a fala de lideranças indígenas e de matrizes africanas no palco do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, em Brasília, na última sexta (8). Logo depois, Pai Jeová, conselheiro nacional representante das Matrizes afro-brasileiras, cantou: “Eu já plantei. Eu vou plantar. Vamos cuidar da nossa semente. Ela vai germinar”. A presidenta do Conselho Municipal de política cultural de Salvador, a Ialorixá Marcia de Ogum, também subiu ao palco, ao lado de mulheres de terreiro, e entoou uma canção em iorubá celebrando o momento. 

O momento foi representativo de como a CNC foi pensada e constituída: a partir da pluralidade de vozes e agentes integrantes do setor cultural. A cerimônia marcou o encerramento da plenária que elegeu 30 propostas e 129 moções para elaboração do novo Plano Nacional de Cultura (PNC), elaborado pela primeira vez em 2010

O documento oficial da Conferência será publicado em até 60 dias, mas o Nonada Jornalismo esteve presente e adianta alguns itens das propostas aprovadas na Conferência, considerada a maior já realizada. As medidas foram votadas de acordo com seis eixos: Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura (SNC); Democratização do Acesso à Cultura e Participação Social; Identidade, Patrimônio e Memória; Diversidade Cultural e Transversalidade de Gênero, Raça e Acessibilidade na Política Cultural; Economia Criativa, Trabalho, Renda e Sustentabilidade e Direito às Artes e Linguagens Digitais. 

Em todos os eixos, aparece um esforço em comum de especificar diversos grupos, como uma forma de reduzir desigualdades nas políticas culturais. Ou seja, na redação das propostas há uma atenção especial à população LGBTQIAPN+, negras, com deficiência, periféricas, bem como os povos do campo, das águas e florestas, pessoas idosas, infâncias, quilombolas, povos de terreiro, indígenas, em situação de vulnerabilidade, população em situação de rua, pessoas egressas do sistema prisional, pessoas em conflito com a lei, pessoas neurodivergentes, pessoas refugiadas, comunidades circenses, ciganos e nômades, comunidades ribeirinhas e litorâneas, respeitando as interseccionalidades necessidades à população em todo território nacional. 

Também em comum a todos os eixos, menciona-se a necessidade de observar o Custo Amazônia no contexto das políticas culturais brasileiras, termo utilizado para se referir aos custos adicionais de logística e transporte que empresas e governos precisam arcar para realizar operações comerciais, infraestruturais ou de serviços na região amazônica do Brasil. Outra proposta transversal aos eixos é o desejo dos fazedores de ferramentas de mapeamento, cartografia, seja do trabalho na cultura, ou da diversidade cultural. Essa proposta já havia sido debatida no primeiro PNC, e foi uma das metas não cumpridas. De forma inédita, as propostas finais pautam os direitos trabalhistas dos fazedores culturais. 

Reunião dos eixos elegeu propostas para serem apreciadas na plenária final (Foto: Paulo Cavera/MinC)

O fortalecimento de programas e equipamentos já existentes se fez presente nas propostas aclamadas na Conferência. Diversos eixos cobraram do poder público a manutenção da Política da Cultura Viva, o fortalecimento do Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC), a expansão do Vale Cultura, o estabelecimento dos Comitês de Cultura através de uma lei, entre outros. Também foi transversal, e presente na fala de muitas pessoas na Conferência, a necessidade de aprovação da Lei de Mestres e Mestras, no Congresso desde 2014. 

As propostas finais, eleitas pelos 1.201 delegados de todas as regiões do país, além de integrantes do Conselho Nacional de Cultura, surgiram a partir dos debates e plenárias dos grupos de trabalho da Conferência, divididos nos seis eixos temáticos que guiaram todo evento. As discussões dentro do Grupos de Trabalho duraram dois dias e se concentraram no esforço de transformar mais de 140 propostas em 30, pois cada Eixo poderia priorizar apenas cinco propostas para a plenária final. 

A reunião começou ainda na quinta-feira e se estendeu até o início da tarde de sexta-feira. Diferente da plenária do regimento, em que os artigos foram vistos por item, e com possibilidade de destaque, no encontro final, as propostas foram aprovadas por bloco, sem possibilidade de alteração. Os integrantes da mesa organizadora, composta pelo Secretário Executivo Márcio Tavares, e a Secretária de Secretaria dos Comitês de Cultura Roberta Martins, leram as propostas na íntegra e essas foram aclamadas pelos delegados.  

Eixo a eixo 

Nas propostas do eixo 1, Institucionalização, Marcos Legais e Sistema Nacional de Cultura (SNC), houve um foco na defesa de instrumentos de descentralização dos recursos, como a permanência da Lei Rouanet Norte e a equidade dos investimentos públicos. Durante a Conferência, foi aprovado no Senado o Sistema Nacional de Cultura, considerado o SUS da cultura, e o SNC foi pautado nas propostas do Eixo. As propostas defendem uma reestruturação do SNC, a implementação de linhas de créditos para artistas e a criação de fundos específicos, como o Fundo das Amazônias e o Fundo Nacional para a Infância. Há também a proposta da obrigatoriedade de realização a cada 4 anos da Conferência Nacional de Cultura. 

No eixo 2, Democratização do Acesso à Cultura e Participação Social, as culturas hip-hop e da capoeira foram bastante mencionadas. As propostas do eixo mencionam uma necessidade de combate das desigualdades nas seleções, através de cotas e planos de acessibilidade cultural, e sugerem a criação de setoriais transversais em todos os colegiados. Há também a proposta da criação de Pontos de memória dos povos indígenas e povos de terreiro, e defendem uma maior participação popular nas políticas culturais, com mais consulta pública e maiores representações elegidas entre pares. As propostas do eixo mencionam a importância dos Comitês de Cultura e sinalizam a emergência amazônica, assim como a integração entre países da Amazônia Legal. 

Representantes de ao menos 40 povos indígenas participaram da Conferência (Foto: Filipe Araújo/MinC)

A atual meta 4 do Plano Nacional de Cultura foi relembrada nas propostas do Eixo 3, Identidade, Patrimônio e Memória. A antiga meta, transformada em proposta, pede a continuidade da política nacional de proteção e valorização dos conhecimentos e expressões populares. Uma das propostas do eixo sugere uma cota de 30% para as culturas populares dentro da Lei Aldir Blanc. Também menciona a aprovação da Lei de Mestres e de Patrimônio Vivo, assim como a valorização dos Mestres como professores nas universidades e os pontos de cultura. O eixo também recupera a atual meta 5 do Plano Nacional, que pede a implementação do Sistema Nacional do Patrimônio Cultural (SNPC) e tem como objetivo implementar a gestão compartilhada do Patrimônio Cultural Brasileiro, visando a otimização de recursos humanos e financeiros para sua efetiva proteção. 

A proteção à memória, salvaguardado dos acervo das culturas populares, através de bibliotecas e arquivos, e o reconhecimento das culturas hip hop, funk, culturas tradicionais e povos de terreiro, também foi mencionado. No eixo, houve a defesa da valorização da moda enquanto cultura ancestral, e a importância de se pensar sustentabilidade dentro da cultura.

O enfrentamento do racismo, lgbtfobia e capacitismo foram as principais pautas do Eixo 4, Diversidade Cultural e Transversalidade de Gênero, Raça e Acessibilidade na Política Cultural. As propostas priorizadas tratam da necessidade de políticas específicas para essas populações, como por exemplo o Bolsa Cultura, formações e treinamentos anticapacitistas abordando a acessibilidade em seus diversos prismas. Para isso, os delegados e delegações sugerem a realização de parcerias com outros ministérios, como o MEC, e sugerem o fortalecimento da pedagogia Griô – valorizando mestres e mestras. Além disso, mencionam a necessidade de letramento cultural, racial e de gênero, falam sobre a valorização da infância, e defendem uma formação para o uso da linguagem neutra. 

O combate à precarização do trabalho na cultura foi a principal proposta do Eixo 5, Economia Criativa, Trabalho, Renda e Sustentabilidade. As propostas reconhecem a “Pjetização” dos trabalhadores, através do MEI, e pedem direitos trabalhistas, como seguro-desemprego, direito à previdência social e segurança no trabalho. Um vínculo maior com o Ministério do Trabalho também é mencionado. As propostas se relacionam com a implementação do SNC, pois sugerem um CADÚnico da cultura, reforçam a proposta do MinC de expandir o Vale Cultura, e pedem a desburocratização do acesso ao fomento para culturas populares, tradicionais e itinerantes. O eixo destaca a proposta do Programa Nacional de Economia Criativa,  que pretende a transversalidade e a capacidade de interlocução entre as mais diferentes áreas do governo que ativam o potencial da economia criativa. 

Direito às Artes e Linguagens Digitais foi o tema do Eixo 6, cujas propostas foram lidas pela presidente da Funarte, Maria Marighella. A proposta central, aclamada pela plenária, foi a Implementação da Política Nacional das Artes, um conjunto de políticas públicas consistentes e duradouras para as artes brasileiras, a partir de um amplo debate com os diversos setores artísticos e com a sociedade em geral. Como novidade, o eixo propôs sonhos antigos do setor cultural: a criação da Agência Nacional da Música, a exemplo da Ancine, do setor audiovisual, e a recriação do Instituto Brasileiro de Livro, a exemplo do Iphan. Também sugere a criação e fomento de Festivais de Culturas Indígenas, a Implementação de instituições setoriais específicas, e acessibilidade plena. 

Valorização da diversidade cultural 
Apresentações artísticas e da cultura popular coloriram a CNC (Foto: Gabriel Brandão/MinC)

Ao final da Conferência, Mãe Francys de Oyá, delegada do Distrito Federal e conselheira de Patrimônio,  falou que sua emoção de finalizar o encontro era grande. “Me sinto no Brasil, porque nossa cultura voltou. É uma cultura diversa, com diferentes religiões, espaços, indumentárias. Isso muito me emociona, porque as pessoas da sociedade civil saíram das suas casas, sem ganhar nada, para mostrar que o Brasil ainda é uma grande cultura.” 

Mestres e mestras de todas as regiões consideram que a Conferência foi uma oportunidade de defender a valorização de seus saberes e trajetória. Sinei Dantas, delegada do Maranhão, avaliou que as propostas foram bem representadas no Eixo 3. “Nós do patrimônio cultural trazemos a proposta de salvaguarda dos bens materiais, a valorização dos mestres e a questão da memória que precisamos preservar. Queremos que a cultura possa perpetuar, porque quando se trata de salvaguarda, tratamos do fortalecimento e preservação do bem de natureza imaterial para que outras gerações possam ter acesso a esses bens, além do sentimento de pertencimento”.

A multiartista Juliane Vicente, de Porto Alegre, não se sentiu representada pelas propostas do Grupo de Trabalho, que participou, no eixo 4. Para ela, houve um “esvaziamento do que é uma ação afirmativa”, e uma falta de valorização dos mais velhos das lutas negras. “A gente está desconsiderando o que é o resgate histórico, a reparação histórica. Porque queremos incluir tantas coisas, mas se esvazia. Para quem vai essas ações afirmativas, no final?”, relata ao Nonada Jornalismo.

 “A gente não está conseguindo fazer uma inclusão daqueles que estão sendo excluídos. Estamos agregando todo mundo e lá na ponta a gente não vai atingir. Vai acontecer que se temos um edital com 10 vagas, em que 3 precisam ir para uma cota, se a gente incluir 50 grupos de pessoas fazedoras de cultura, como o que está acontecendo hoje, essa vaga não vai chegar em um indígena ou em um quilombola”.  A artista também destacou a falta de pessoas quilombolas convidadas pelo Ministério da Cultura para integrar a delegação do seu estado.”

Para o intelectual e xamã Davi Kopenawa, a Conferência foi um momento inédito de reunir fazedores de cultura de mais de 40 povos indígenas presentes. “Vieram parentes de quase todo Brasil para discutir sobre cultura. Isso é muito importante e é a primeira vez que estou vendo. É a primeira vez que estou vendo muita gente falar da nossa cultura, cada povo e lugar diferente. Nós, povos indígenas, estamos aqui para defender a nossa cultura tradicional. Isso é muito importante para juntar a cultura que está espalhada, tanto dos povos indígenas do Brasil, quanto dos povos não-indígenas da cidade. Nós estamos arrumando e levantando o que não estava sendo valorizado. Agora nós estamos levando de novo para se renovar.”

Moções em apoio à cultura gospel e carros de som foram rejeitadas
Momento de votação na plenária final (Foto: Gilberto Soares/MinC)

Um total de 131 moções de apoio ou repúdio a expressões culturais e questões relativas à CNC foram apresentadas, ao fim das propostas, porém duas foram reprovadas pela plenária. Assim como as propostas oficiais, as moções seriam aprovadas em bloco, apenas pelos títulos, mas quando a leitura de “Reconhecimento dos artistas da Cultura Gospel” e “Reconhecimento da cultura de carros de som automotivos” foi realizada, uma gritaria começou no auditório. Rapidamente, uma fila de mais de 30 pessoas formou-se ao lado do palco, em busca de realizarem defesas, na maioria, contrárias às duas moções. 

A Conselheira Nacional de Cultura Daiara Tukano pediu licença e explicou sua posição contrária à proposta: “Falo enquanto mulher indígena, originária, e também como representante dos Povos Indígenas no Conselho Nacional de Cultura. Eu faço parte do povo Yepá-Mahsã. Em 1910, a Igreja Católica instituiu na nossa região uma política integracionista, que proibiu todas as línguas, nossas cerimônias, perseguiu nossas lideranças espirituais, e hoje o que mais temos é resistência, continuidade de nossa cultura. É diante de uma violência histórica, da invasão, da colonização, de um povo que acha que uma cultura é superior às outras, e dá violências geradas por essa história, nós ainda precisamos nos curar hoje”, defendeu. 

“Eu não entendo e gostaria de explicações sobre o que seria uma cultura gospel, porque ainda hoje existe um movimento de invasão dos nossos territórios e de falta de respeito com as tradições dos povos indígenas e de outros povos originários do Brasil. Nós estamos aqui para respeitar os direitos humanos e os direitos culturais de todos e não podemos apoiar um grupo que ainda hoje é conhecidamente praticante de intolerância religiosa.” A fala foi aplaudida e ovacionada, com gritos de apoio à retirada da votação.  A autora da proposta defendeu que artistas cristãos não teriam cachê e teriam seus portfólios prejudicados em seleções. Porém, por maioria unânime do plenária, através da votação dos mais de mil delegados presentes, a moção foi rejeitada. 

Foto: Filipe Araújo/MinC

A segunda moção reprovada se referia à cultura dos carros de som, Gloria Potyguara, Artista índigena do Ceará, argumentou contra a moção: “Eu sou mãe atípica, de dois filhos autistas, e eu sei que o barulho nos adoece. Nós, mães atípicas, viemos com essa luta há muitos anos. Esses carros de som dão crises nessas pessoas.” Outras defesas mencionaram a poluição sonora e a preocupação ambiental. O autor da proposta explicou que se tratava da valorização das aparelhagens do norte do país, porém o descritivo de proposta não dizia isso. A moção foi rejeitada pela plenária, encerrando com o total de 129 moções aprovadas. 

O momento das moções também se tornou um espaço para que várias pessoas apresentassem suas críticas em relação à organização da 4ª CNC por parte do Ministério da Cultura. Os principais pontos foram a falta de acessibilidade – mencionada diversas vezes durante a plenária final, e a dificuldade de alimentação no primeiro dia do evento. Outro relato foi o descaso com pessoas com pessoas com deficiência e com pessoas LGBTQIA+ no momento de preenchimento de formulários antes da Conferência. 

Próximos passos 

Mas, afinal, o que acontece depois que termina a conferência? O secretário executivo do MinC, Márcio Tavares, explica que todas as propostas aprovadas alimentarão o Plano Nacional de Cultura, que será entregue até o final do ano para o Congresso Nacional. “Essa reunião tem resultados práticos e muito objetivos em breve que vão resultar naquilo que será um grande pacto pela cultura avalizado por esse conjunto de delegados, pelos diretores estaduais e municipais, pelo Congresso, e depois referendado pelo presidente da república”, explica. 

A partir de agora, o MinC começará a debater como transformar as 30 propostas em metas concretas, já que o último PNC completou 14 anos com 3 das 53 metas cumpridas na sua totalidade. segundo o relatório final de avaliação do Plano Nacional de Cultura elaborado pela Escola Nacional de Administração Pública publicado em 2022. Para Roberta Martins, esse é um dos desafios e compromissos. “Nessa conferência, discutimos 10 anos em 5 dias, então as demandas e falas – todas muito importantes – são imensas”, explica Roberta. 

“Se a gente olha para outras políticas públicas, a gente tem uma meta de quantas pessoas precisam se vacinar. Na cultura, a gente tem que ter uma meta concreta, tem que ter números. O trabalhador não tem meta para bater? A cultura tem que entender que a política pública é sua aliada, portanto precisamos ter metas mensuráveis de formação, de capacitação, de pessoas empregadas e com carteira assinada. A gente tem que entender quais prioridades a cultura aponta. Não tem mistério. Precisamos olhar a Conferência, pegar as propostas e simplificá-las a tal ponto que a gente consiga entendê-las e chegar no final com essas metas atingidas”, finaliza. 

*A repórter viajou a Brasília a convite do Ministério da Cultura

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Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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