Créditos de carbono, net zero, IPCC, crise climática, pegada de carbono. A aquisição deste vocabulário ecológico parece, à primeira vista, complexa. Com o planeta se aproximando cada vez mais do ponto de não retorno, isto é, do tempo em que os recursos naturais da Terra não conseguirão mais ser compensados, as soluções para frear os danos ambientais causados pela humanidade têm aumentado a visibilidade destes termos.
Cada vez mais festivais de música têm recorrido a estratégias para minimizar os impactos feitos por deslocamento, lixo e geradores de energia. O Rock In Rio, por exemplo, desenvolveu um plano de contingência para impactos ambientais. No relatório de ações de sustentabilidade do festival de 2022, o evento afirma que estuda utilizar geradores de energias renováveis e que plantou 3 milhões de árvores como medida compensatória. Bandas como o Coldplay também trabalham para informar seus fãs sobre ações como o uso de “combustível sustentável” na aviação e a reciclagem dos resíduos sólidos.
Ainda assim, algumas medidas são menos efetivas para a redução dos impactos do que outras. O Nonada Jornalismo conversou com especialistas que avaliaram as principais ações de redução ou compensação adotadas pelos eventos culturais e também alertaram para o greenwashing, quando empresas se utilizam de pautas ambientais para gerar capital simbólico, mas adotam ações que não fazem diferença na prática.
O que é descarbonização?
Cada quilo adicional de CO2 na atmosfera contribui para o efeito estufa. Assim, o calor solar que atinge a Terra fica retido na atmosfera em vez de ser dispersado de volta ao espaço gerando um aumento nas temperaturas médias da superfície do planeta. Dados do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), entidade criada pelo programa das Nações Unidas pelo Meio Ambiente em 1988 mostram que, por causa do efeito estufa, a temperatura média do planeta na década de 2011 a 2023 foi 2,07 graus Celsius mais alta do que na era pré-industrial.
Inclusive, cientistas debatem se as alterações climáticas são exacerbadas por conta da ação antrópica. O nome dado à era geológica que mostra as maiores mudanças climáticas desde o surgimento dos seres humanos, coincidindo com a revolução industrial, quando aumentaram as emissões de gás carbônico, é de Antropoceno – termo ainda em disputa por cientistas.
Mesmo assim, dados do IPCC mostram que a temperatura também aumenta 0,2 graus Celsius a cada década. Isso já tem efeitos visíveis, como o aumento da frequência de eventos climáticos extremos: inundações, ondas de calor, precipitações intensas e excepcionais, longos períodos de seca. Assim, resta a resolução do que fazer coletivamente para frear a crise.
A pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP) em mudanças climáticas, leis ambientais e políticas ambientais e doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília (UNB), Larissa Basso explica que já existem medidas individuais de diminuição da pegada de carbono no mundo – ou seja, a quantidade de CO2 que cada empresa ou pessoa emite.
“Tem muita coisa que é descarbonização que já está acontecendo. São essas tentativas que as pessoas e empresas vão fazendo, como mudar a embalagem, mudar a forma que você distribui produtos, ter uma dieta com menor consumo de carne. Isso já é uma prática de descarbonização.”
Larissa ainda comenta que a descarbonização é um processo que parece difícil, mas que, na verdade, é muito simples. “Descarbonizar significa simplesmente tentar, em qualquer sentido que você possa pensar, seja individual ou coletivo, em como emitir menos carbono.” Para eventos, ela recomenda conversar com quem participa das diferentes etapas para ter ideias boas e aplicáveis e assim gerar um impacto positivo em toda a cadeia.
Já na avaliação de Camila Moreno, pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a aparente progressividade da descarbonização é ilusória, pois ao entrar nesse jogo, adota-se a gramática das instituições financeiras globais. Isso, segundo ela, coloca em xeque qualquer tentativa genuína de subverter o sistema em direção a um modelo verdadeiramente sustentável coletivamente.
A pauta da descarbonização entrou na agenda do mercado financeiro a partir de 2018 pela bolsa de valores, com a ampla utilização do termo ESG, ou Meio Ambiente, Social e Governamental (Environment, Social e Government em inglês). Isso, para Larissa, acaba gerando confusão para os consumidores, que podem ser vítimas de greenwashing. Mesmo assim, há quem queira fazer a diferença.
A compensação de carbono está centrada em equilibrar as emissões por meio de investimentos em projetos que reduzem ou removem os gases de efeito estufa da atmosfera. Por outro lado, a neutralização de carbono tem como objetivo alcançar um balanço líquido zero de emissões – o chamado net zero -, ao combinar a redução de emissões com a compensação.
No Brasil, um dos setores que mais emite gás carbônico e outros poluidores é o do agronegócio. Mudanças do uso da terra, como o desmatamento em solo brasileiro também lideram o ranking de emissões de carbono, segundo o Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa do Observatório do Clima.
Em 2021, as emissões referentes ao desmatamento dos biomas brasileiros foram de 1,19 bilhão de toneladas de gás carbônico equivalente. Isso é 83% mais do que as que ocorreram em 2010, segundo o mesmo estudo. No plano global, os setores responsáveis pelo uso de combustíveis fósseis que liberam gás carbônico são vários: energia, transporte, imobiliário, dentre outros. A parcela 1% mais rica do planeta emite CO2 equivalente à de 5 bilhões de pessoas, ou o 66% mais pobre da população.
Embora os festivais não sejam transparentes quanto ao valor de suas pegadas de carbono (o total de CO2 emitido por cada empresa). estima-se que o montante emitido por todos os eventos culturais somados – levando em conta o transporte do público e dos trabalhadores, os geradores a diesel e a quantidade de lixo – geram impactos.
Saiba quais as principais ações adotadas pelos festivais na avaliação dos especialistas:
Utilização de transporte público ou carros elétricos
Uma das maiores causas de emissão de gás carbônico em eventos é causada pelo transporte, seja ele de artistas, de equipamentos, da equipe ou de espectadores. Para subverter essa lógica, a indicação é utilizar veículos elétricos para locomoção interna e conduções coletivas. “Não usar transporte particular, mas sim, o público, economiza muito as emissões”, destaca Larissa.
Só que o cálculo de emissões de carbono para grandes grupos não é assim tão fácil, como destaca o mestre em Mestre em Engenharia e Tecnologia de Materiais pela PUCRS e coordenador do Programa de Pós-Graduação de Créditos de Carbono também da PUCRS, Bruno de Rosso:
“Todas as pessoas que vão em direção a grandes festivais que ocorrem no Brasil, por exemplo, chegam de todos os lugares do país e, talvez, do mundo, faz com que exista uma responsabilidade, por parte do evento, indiretamente, que corresponde às emissões disso. Só que, se a gente diz, é muito difícil de mensurar. O cálculo das emissões é mais difícil, mas entender como aquelas pessoas chegaram lá e apresentar soluções é essencial.”
Mesmo que a responsabilidade da organização do evento seja indireta em relação ao deslocamento de espectadores, é possível contabilizar o impacto das formas de transporte utilizadas pelos espectadores, como ônibus, Uber, táxi ou carro particular e, assim, apresentar soluções ecológicas a partir de mediações com o poder público, como aumentar o número de linhas de ônibus para o evento, ampliar o horário de trens, priorizar por conduções elétricas, caso estejam disponíveis.
Integração com cooperativas de reciclagem
Canudo de papel, garrafas de vidro, ecobags para distribuição para o público, talheres não-descartáveis Todas essas são formas de diminuir o consumo de plástico, que gera danos ambientais, para produtos que são recicláveis e não geram um ciclo infinito de consumo e descarte. No entanto, segundo Larissa Basso, é mais vantajoso envolver os trabalhadores da reciclagem para pensar em quais produtos oferecer no evento.
“Os trabalhadores da coleta seletiva possuem um conhecimento prático fundamental sobre quais materiais são mais eficazes e têm uma rápida saída no mercado de reciclagem, como o alumínio e o papelão”, enfatiza Larissa. Ela complementa que, mesmo que o vidro seja, teoricamente, mais sustentável que outros materiais, a sua reciclagem é muito difícil. Assim, pessoas que trabalham em cooperativas de reciclagem preferem alumínio ou papelão ao vidro. Por isso, faz-se necessária uma abordagem realista ao planejar iniciativas de reciclagem, considerando não apenas o impacto ambiental, mas também os aspectos sociais, econômicos e práticos envolvidos na gestão de resíduos.
Utilização de energias renováveis
Substituir o diesel por gerador de energia solar ou utilizar um equipamento que tenha energia proveniente de biomassa são exemplos de utilização de energias renováveis. Para o cálculo de emissão dentro do evento, entra “tudo que é consumo da energia elétrica da rede, seja ela para o mercado livre de energia, ou seja, ela para o consumo de rede”, explica Bruno. Os geradores são importantes para não depender somente da luz elétrica fornecida. Em locais com difícil acesso de rede elétrica ou em situações de emergência para panes na rede, estes equipamentos se fazem necessários.
Mesmo assim, “não existe energia limpa”, explica Larissa. “A mais limpa de todas é a energia nuclear, mas ela tem outras problemáticas”, finaliza. Assim, segundo ela, o propósito de utilizar outras fontes de energia, como as renováveis, é uma forma de compensar as emissões de carbono. No entanto, um gerador de energia solar, por exemplo, pode custar o triplo de um gerador que utiliza óleo diesel, o que inviabiliza que festivais pequenos com baixo orçamento consigam adquiri-lo. Até mesmo os maiores festivais ainda não adotam geradores movidos a energia renovável.
Plantio de árvores
O reflorestamento ocorre quando determinada empresa planta – ou contrata uma empresa para plantar – árvores em áreas degradadas, já que elas capturam CO2. No entanto, o cálculo para o plantio de árvores tem como medida de comparação 7 anos. Ou seja, para calcular o impacto de aproveitamento que uma árvore pode oferecer na mitigação dos gases de efeito estufa, é necessário que tenha transcorrido 7 anos. Um estudo realizado pela USP mostra que a cada 7,14 árvores plantadas na Mata Atlântica, é compensada uma tonelada de CO2. Esse número ganha dimensão quando observamos que o país emitiu 2,42 bilhões de toneladas brutas de CO2 em todo o ano de 2021, por exemplo.
O pesquisador Bruno de Rosso alerta para o chamado greenwashing, em que empresas utilizam estratégias de marketing exageradas sobre o reflorestamento para parecerem mais ambientalmente responsáveis, sem contribuir significativamente para a redução real das emissões de CO2. Ele destaca que somente projetos de reflorestamento de alta magnitude podem ser levados em conta. “Isso de plantar uma árvore e colocar no site é um marketing exacerbado que de fato não contribuem com expressividade na compensação de gases de efeito estufa.”
Compra de créditos de carbono
Os créditos de carbono são uma forma de moeda ambiental utilizada para incentivar a redução das emissões de gases de efeito estufa. Eles funcionam como uma unidade de medida no mercado de créditos de carbono que representa a remoção ou redução de uma tonelada métrica de dióxido de carbono (CO2) ou de outros gases de efeito estufa da atmosfera. Qualquer empresa ou pessoa física pode adquirir créditos, e os valores iniciam em três dólares por unidade.
Larissa Basso conta que o crédito foi concebido como uma ferramenta para facilitar a adoção de plataformas ecológicas, a fim de superar os obstáculos políticos e ampliando a transição para práticas mais sustentáveis. “Os créditos são vendidos como parte desse processo, gerando intensas discussões sobre seu papel e eficácia”, ressalta.
O modelo é contestado por ambientalistas porque não oferece uma solução prática e aplicável, mas sim, transfere a responsabilidade da discussão ambiental para um espaço vazio de sentido, “colocando um preço na poluição“. Para a doutora em sociologia pela Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e pesquisadora sobre negociações internacionais sobre Mudanças Climáticas e biodiversidade, Camila Moreno, os créditos de carbono, na verdade, “são uma licença das empresas para poluir”.
Camila contesta a sustentabilidade do uso de créditos de carbono e expõe que a narrativa em torno da agenda ecológica muitas vezes simplifica questões complexas e serve aos interesses da hegemonia atual. “Essa agenda é vendida como ecológica, mas é importante desnaturalizar isso. Ela é a linguagem do neoliberalismo, do Banco Mundial, do Fundo Monetário Internacional e do mercado financeiro”, relata a pesquisadora.