Fortaleza (CE) — Um conjunto de pedras presas em relicários e fixadas na parede recebe o público que entra na Se Arar, mostra em cartaz até abril na Pinacoteca do Ceará, equipamento cultural estadual de 9 mil m² inaugurado em dezembro de 2022, em Fortaleza. A obra Relicário da Seca, do artista Zé Tarcísio, faz referência a uma das principais questões socioambientais que marcam a história do estado.
“A gente tem no Ceará uma dificuldade de distribuição democrática de água, então tem um histórico de migração muito grande, os retirantes pegavam o trem para vir para a capital e assim que eles desciam do trem, ficavam presos aqui. Não é à toa que a exposição inicia com uma obra [composta] de pedras de rios que secaram. De certa maneira, é como se a gente começasse pela ausência da água”, conta Lucas Dilacerda, uma das pessoas curadoras da exposição, ao lado de Cecília Bedê, Herbert Rolim, Maria Macêdo e Adriana Botelho. A exposição inclusive integra a mostra Bonito pra chover, uma expressão regional que indica que a chuva está se aproximando e também título de um livro do intelectual Gilmar de Carvalho.
Lucas explica que o prédio que hoje abriga a Pinacoteca e foi devidamente restaurado após décadas sem atividades era, no início do século 20, a estação de trem da capital. Na visão de alguns historiadores, a região também era um espécie de “campo de concentração” onde os retirantes eram mantidos em cárceres para que não entrassem na capital.
É preciso lembrar o passado para refletir sobre o amanhã, por isso a exposição rapidamente se afasta do estigma da seca – reforçado pela mídia e produção cultural do sul e sudeste – para abrir horizontes. A Se Arar traz 177 trabalhos de 171 artistas nascidos e residentes no Ceará, com obras do acervo da Pinacoteca e também de 40 artistas contemporâneos convidados, incluindo pessoas trans, negras e indígenas.
A proposta é calcada em pluralidade estética, política, de corpos e de lugares, a partir de um olhar que joga luz em diferentes Cearás. São muitas linguagens – da pintura à instalação – e diversas temáticas: religiosidades, festas populares, identidades, modernismos, artivismos.
“A exposição foi pensada como um grande rio”, explica uma pessoa profissional do educativo em uma visita guiada que o Nonada Jornalismo acompanhou . E como todo rio tem seus afluentes, quem visita a exposição vai se deixando levar pelas águas dos afluentes (ou núcleos) propostos pela curadoria: Cearás fabulados; Espelho do eu; Ancestralidade e natureza; Dilatações visuais; Multiespécies; e Artivismo e vitalismo.
Lucas conta que a expografia foi pensada de forma que o visitante serpenteasse seu corpo pelo espaço. “A forma do trem é a forma da linha reta, é a linha do progresso, é a linha da evolução, e a gente não queria essa forma, a gente queria a forma dos galhos, a forma do coração, a forma de de um fungo. É uma expografia meio cobra, meio rio. A gente se inspira como a natureza está cooperando o tempo inteiro, como esses afluentes têm uma comunicação subaquática entre si para poder sobreviver”, diz.
Um futuro espiralar
Seca (2005), de Luiz Hermano (Fotos: Thaís Seganfredo/Nonada Jornalismo)
O antropoceno e as relações entre sociedade e natureza fluem por toda a exposição, das redes de pesca à especulação imobiliária na orla de Fortaleza para abordar também a crise climática. Um exemplo é o trabalho de Luiz Hermano, que mostra o futuro que não queremos mas que pode chegar se não agirmos para acabar com a crise.
“Acho que a Se Arar é uma exposição que está completamente comprometida com essas questões. Ela faz um questionamento, primeiro, do que a gente arou no passado e que está colhendo hoje no presente, também o que é que a gente está arando, plantando hoje para colher no futuro e o que é que a gente quer arar agora. A escritora Saidiya Hartman fala justamente que o “se” é a partícula da arte, a partícula da fabulação, e acho que a Se Arar é uma fabulação de um futuro”, comenta Lucas.
De futuro, aliás, os fazedores de cultura do estado parecem entender bem. O Ceará é berço ou moradia de artistas como Leonilson, expoente da arte contemporânea brasileira desde os anos 1980, Letícia Parente, pioneira da videoarte, e Chico da Silva, artista de ascendência indígena descoberto nos anos 1960 que ganhou no ano passado uma mostra individual em Nova York.
“O Ceará historicamente não teve um curso de Belas Artes, o curso de artes visuais do Cariri é muito recente. Então é como se os artistas do Ceará se formassem em outros saberes, não nos saberes acadêmicos. Por isso que eles já nascem modernos, eles já nascem vanguardistas, eles já nascem experimentais”, avalia Lucas. Um exemplo é Antonio Bandeira, artista negro ícone do abstracionismo, que começou seus trabalhos de forma autodidata em fortaleza, fomentou o sistema da arte na região e é um nome internacionalmente reconhecido.
Por isso, o curador questiona por que a produção artística feita no estado é enquadrada como “arte regional”. “Bandeira é internacional, Chico da Silva é internacional, Zé Tarcísio é internacional, então às vezes é uma maneira de tentar colocar a gente no local de regional para que São Paulo seja o porta voz da arte brasileira”, aponta.
Quando se olha para os artistas contemporâneos da Se Arar, também se vislumbra talento. São nomes Kulumym-Açu, artista visual, diretor audiovisual, ator e dramaturgo, e Indja, ambos artistas indígenas, e Trojany, artista travesti, negra e nascida no interior do estado que trabalha com inteligência artificial. Ou ainda Aline Albuquerque, com seu trabalho AGITPROP. “Ela pega esses vários discursos de lutas políticas e agrupa em uma grande polifonia de vozes. Lembra também uma manifestação política, no sentido de várias pessoas acumuladas brigando pelos seus direitos”, descreve Lucas.
O trabalho de Aline foi um dos principais alvos de uma campanha difamatória que a Pinacoteca do Ceará sofreu em fevereiro deste ano, quando uma vereadora da extrema direita fez uso de fake news através de vídeos que mostravam as obras da exposição fora de contexto. A parlamentar acusou o equipamento cultural de expor crianças à nudez, mas não informou que cada trabalho exposto no museu é acompanhado de uma placa com classificação indicativa. “Os ataques são geralmente direcionados a obras de artistas de grupos socialmente minoritários. Há uma deturpação dessas obras”, pontua Lucas.
Artistas de várias gerações e linguagens conversam em cada afluente, que foca em temáticas como o retrato, a religiosidade (cristã ou de matriz africana, por exemplo), e o meio ambiente. É por essa sinfonia de vozes de artistas consagrados, naïf e contemporâneos que a Pinacoteca do Ceará fabula futuros não apenas para o Ceará, mas também para a humanidade.
“A nossa sociedade fabrica corpos de fato anestesiados aos problemas políticos, isso também é uma questão estética, da sensação, e acho que a arte trabalha com sensação. A gente precisa fertilizar a imaginação das pessoas, assim como a gente fertiliza a terra pra brotar, para imaginar um outro futuro”, aponta o curador.
Equipamento cultural de ponta
Como um expresso que vai em direção ao futuro, a proposta da Pinacoteca do Ceará provoca um deslocamento do olhar sobre o que há de mais avançado hoje na arte brasileira para o nordeste do Brasil. A começar pela reserva técnica do espaço, planejada antes da inauguração do centro cultural e que deve abrigar a coleção de 5 mil peças do acervo. “Os museus normalmente constroem a reserva depois, é uma necessidade posterior. A gente pôde pensar na reserva antes, pensar na coleção “, comemora Erick Santos, coordenador de Conservação e Restauro.
“Todo o trabalho agora do núcleo do acervo é de catalogar essas obras, mas as peças também não podem vir para cá se não estiverem todas higienizadas. Nós temos um rigor internacional para receber as obras”, anuncia com orgulho Rian Fontenele, diretor geral da Pinacoteca, enquanto mostra uma tela de Chico da Silva de proporções enormes que já está salvaguardada na reserva. O espaço é organizado, com temperatura e umidade controladas e verificadas a cada 20 minutos, e duas salas para a quarentena das obras antes da catalogação.
Além de manter o acervo de artistas do estado, a Pinacoteca também nasce com a proposta de ser um novo espaço de arte contemporânea. Isso implica também levantar debates sobre questões atuais, seja através dos trabalhos expostos ou da programação da Pinacoteca, que envolve conversas abertas sobre temas como direitos autorais, classificação indicativa e ainda relações entre arte e emergência climática.
“Não faz sentido hoje criar um espaço que se restringe à sua missão mais básica de fazer a salvaguarda, a difusão e a fruição do seu acervo. A arte se encontra onde há o deslocamento, trazendo o que historicamente esteve à margem desses acervos hegemônicos, eurocêntricos, trazer as questões indígenas, trazer essas questões sociais, trazer as questões raciais, de gênero”, diz Rian. E como um espaço contemporâneo, a Pinacoteca conversa com instituições como o Itaú Cultural para realizar ações integradas.
A Pinacoteca é também é uma das maiores do país em termos de extensão, com auditório, salas expositivas e salas de oficinas, além do espaço para o administrativo. Apesar de ser uma demanda do setor cultural desde a metade do século 20, o projeto começou a se concretizar em 2018, com recursos do próprio governo do Estado, lembra o diretor, que é também artista e arquiteto, e participou do processo do projeto de restauro da Pinacoteca desde o começo.
Hoje, junto ao Mercado AlimentaCE (com foco na gastronomia local), ao Kuya – Centro de Design do Ceará, e ao Museu Ferroviário, a Pinacoteca é parte de um complexo de equipamentos culturais do governo que valorizaram e deram um impulso cultural ao centro histórico de Fortaleza, que, como em várias capitais do país, ainda conta com vários prédios históricos deteriorados. Para gerir esse conjunto de centros culturais, foi criado o Instituto Mirante, uma nova organização social (OS) que se soma ao Instituto Dragão do Mar, responsável por outras operações.
“Nós discutimos muito sobre esse modelo. Em São Paulo, hoje cada equipamento cultural do governo e município é uma OS. E tampouco deveríamos ter uma só, como era aqui no Ceará. Entendemos que, por exemplo, falando em cultura, talvez ainda pudéssemos ter mais uma ou duas OS, porque o sentido dessa organização é que os equipamentos que tenham a mesma finalidade, seja acervo e memória, seja educação, processos formativos, educação e referência, experimentação, ou fruição de artes visuais, você pudesse concentrar [em termos de gestão]”, avalia o diretor.
No primeiro ano de atividade, em 2023, o centro cultural recebeu 140 mil visitantes, que visitaram as exposições ou participaram das oficinas, voltadas tanto ao público mais amplo quanto ao mais especializado, com aulas focadas em capacitar profissionais para o restauro, por exemplo. Da equipe de 114 pessoas trabalhando na Pinacoteca, 23 são do ramo educativo do museu, com diversidade de gênero e cor, devido ao processo de chamamento público inicial para o quadro de funcionários do centro, que contou com cotas.
Como um local que já nasceu referência no mercado da arte, a Pinacoteca também chama a atenção para o que a arte tem de mais provocador e questionador. Desde a inauguração, o espaço vem sofrendo ataques de pessoas descontextualizando as obras, como ocorreu com a Se Arar. “Nós respondemos o retrocesso com a educação, realizamos um seminário sobre classificação indicativa que já estava sendo pensado muitos meses antes”. Se depender da Pinacoteca, a arte e a educação vão continuar aprendendo e ensinando juntas. “O lugar certo de um fórum de debates, de reflexão sobre a sociedade que nós vivemos é justamente a arte”, aponta o diretor.
4 artistas contemporâneos para ver na Pinacoteca
Cecília Calaça
Artista visual, doutora em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará, Cecília traz para a Pinacoteca o trabalho “Xirê de cura”, uma instalação com pequenos orixás suspensos em forma de roda, sobre objetos ligados a religiões de matriz africana. “É uma obra que a gente gira ao redor dela. Nos rituais afro-diaspóricos, no candomblé, o giro é fundamental. E se você reparar, o corpo que gira é um corpo que ativa a memória”, explica Lucas.
Sy Gomes
“Sy é uma artista travesti que nessa obra questiona o que tem em comum entre o corpo de uma travesti e o corpo de uma planta. São dois corpos que são matáveis na nossa sociedade, são corpos que são podados. Ela vai pensar como o corpo dela e o corpo da planta tem muito a ver em comum.Então ela planta feijões que vão brotando ao longo da exposição”. (lucas Dilacerda)
Rodrigo Lopes
“A Rodriga pega essas fotografias do álbum de família e borda por cima frases homofóbicas que ouvia do pai. Essas frases geralmente marcam, violentam esse corpo. Então, o que a Rodriga faz é costurar no corpo da imagem, essa imagem também é corpo.” (Lucas Dilacerda)
Nicolas Gondim
Fotógrafo de moda, Nicolas registrou em retratos as figuras dos papangus, uma expressão da cultura popular cearense. “São pessoas, inicialmente pescadores, que coletam esses objetos que são descartados, lixos, criam essas roupas fantásticas e saem andando pela cidade, fazendo traquinagem”, conta o co-curador Lucas Dilacerda.
*A repórter viajou a Fortaleza a convite da Pinacoteca do Ceará.
**Atualizado em 15/03: diferentemente do informado anteriormente, a maior Pinacoteca do país em termos de extensão passou a ser a Pinacoteca de São Paulo em 2023, com a inauguração da Pina Contemporânea.