“Meus avós plantaram essas imagens em mim”. Desde criança, o escritor Tiago Hakiy ouvia de seus mais velhos que deveria ser sempre como uma cobra. Ele demorou a compreender que aquela sabedoria significava ser observador do que está ao seu redor, não agir precipitadamente, e saber o momento do movimento. O escritor é fruto da oralidade, cresceu ouvindo histórias, e, quando adulto, tornou-se autor de literatura infanto-juvenil. Entre os 15 livros publicados, há frequentemente na literatura de Tiago a presença da serpente, como personagem, ou como um elemento sutil que aparece na narrativa.
Nascido na margem do Rio Andirá, estado do Amazonas, e descendente do povo sateré-mawé, o escritor de Guaynê derrota a Cobra Grande – Uma história indígena (Autêntica, 2013) tomou o curso das águas doces como inspiração com várias das histórias que escreve. “A cobra está presente e sempre estará porque ela faz parte do nosso mito de criação. Inconscientemente, fui escrevendo sobre ela e, só depois, compreendi meu processo de criação na literatura”, conta Tiago, um dos fundadores e o primeiro presidente do CLAM (Clube Literário do Amazonas), do qual atualmente é embaixador cultural.
Nas artes visuais, as serpentes aparecem em trabalhos de artistas de todo o país, como Daiara Tukano, Denilson Baniwa, além da emblemática instalação de Jaider Esbell no Parque do Ibirapuera na 34ª Bienal de São Paulo. Nas obras do coletivo Mahku elas também se fazem presentes, inclusive, abrindo a fachada do Pavilhão do Central na recém inaugurada 60ª Bienal de Veneza.
O MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin), fundado em 2013, é um coletivo de artistas baseados entre o município de Jordão e a aldeia Chico Curumim, na Terra Indígena Kaxinawá (Huni Kuin) do rio Jordão, estado do Acre. Atualmente, o MAHKU é um dos principais agentes no cenário da arte contemporânea brasileira em geral e, em particular, indígena. Em 2023, o MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin) apresentou a mostra MAHKU: Mirações, no MASP, marcando os dez anos do surgimento oficial do grupo.
Merremii Karão Jaguaribaras mora na na divisa dos municípios de Aratuba e Canindé, no Ceará, é artista visual, mestranda em humanidades, e carrega em seu nome uma relação de proximidade com as serpentes. O significado de Merremii é “Serpente de várias faces”, e ela se identifica com o nome espiritual que recebeu. O seu trabalho artístico tem raízes em seus avós, que lhe ensinaram a pintura com tintas naturais.
Para os Karão Jaguaribaras, a arte é chamada de Tawa – traduzido pela artista por “linguagens fixadas” – e está mais associada a pinturas e grafismos. A artista conta que decidiu pintar como forma de reeducação social ao perceber que os grafismos sob seu corpo causavam incômodo quando saía de seu território.Ela conta que enfrentava barreiras quando ia para Fortaleza de transporte público. O ímpeto de pintar as cobras, seja na tela ou em outros suportes que utiliza, como madeira e tecido, veio dessa sensação – de que as cobras poderiam abrir caminho para ela falar sobre o próprio povo.
“Para nós, a serpente é um oráculo de sabedoria”, explica a artista. “É interessante, porém, cada povo tem a sua particularidade com relação a determinadas práticas, principalmente animais, por mais que ela esteja presente em vários povos”, relembra a artista que já participou de diversas exposições como Se arar: Bonito pra chover, na Pinacoteca do Ceará, a Exposição Nhe ́ ẽ Se-, na Caixa cultural de Brasília e Hãwhãw – Arte Indígena antirracista no Museu da Imagem e do Som do Ceará.
Afastando-se da visão ocidental em que as cobras são tidas como perigo, o escritor Tiago relembra que para seu povo, esses animais estão associados ao mito original. “Em nossa história de criação do mundo, o Deus Tupã levou todos para o céu. Os que ficaram, os encantados, eram as serpentes, como a Sucuri, Surucucu e Jiboia, que resolveram fazer um mundo para elas. Além disso, fizeram um mundo da própria irmã, uma outra cobra. Se a cobra ficasse para o céu, eles nunca iriam morrer. Mas como ela ficou com a face para terra, a serpente fica sempre chamando. Por isso as pessoas, quando morrem, vão ser enterradas”, conta Tiago.
Para os Karão Jaguaribaras, explica Merremii, as serpentes não têm essa carga de medo, ou sentido negativo, associado ao mal. A artista explica que para seu povo, é diferente: “Temos a serpente como um oráculo de sabedoria, onde vamos entender o comportamento do ser humano.” Através das cobras, das visões que os e as pajés atuam, o povo vai conseguir entender o futuro. Na cosmovisão desse povo, a cobra é responsável pelo equilíbrio social em diversas áreas, seja em processos de guerra, de festa, de celebrações.
A cobra desenhada e pintada pela artista aparece diversas vezes em formato circular. Na obra Cordel do Sonho Alheio, em exposição na Pinacoteca do Ceará, a artista aborda a colonização dentro do mundo natural. “A serpente costura os mundos”, explica. Há também uma espécie de gramática das serpentes. A pesquisadora explica que tudo que está sob sua pele são informações valiosas para quem sabe ler. “As serpentes têm seus traços porque elas se comunicam com as outras. É como letras, escritas, porque os animais se comunicam através de linguagens”, explica. “É a mensagem do mundo para o indivíduo e do indivíduo para o mundo.”
Ecologia e arte
A artista cearense ressalta que há uma intenção em suas pinturas de visibilizar a importância das serpentes em extinção. De alguns anos para cá, a artista parou de ver cobras que antes eram comuns no cotidiano. “Eu não vejo mais a Caninana, a Tinga, a Cobra de Leite com tanta frequência – ela era, inclusive, a que controlava as venenosas como a Cascavel. Essas foram mais assassinadas porque apareciam com mais frequência nos terrenos das pessoas que desaprenderam a conviver com esses seres”, relata. “As pessoas que não compreendem esse mundo acabam causando a extinção de um ser tão importante para nossa vida. A crise climática nunca foi natural, mas foi causada por um determinado predador chamado ser humano.”
Em outra obra, Serpentes Caminham, pintada em tecido, a artista pretende se conectar com o público para além da aldeia. A artista enxerga semelhanças entre o modo como a sociedade trata historicamente os povos indígenas e o não-lugar das cobras na sociedade não-indígena, expulsas dos próprios territórios. Segundo ela, Serpentes caminham não é somente a voz de pessoas periféricas.
A cobra representada na obra é a Tijibu, que significa o rio que segue com a ancestralidade. O sinuoso da cobra, semelhante ao do rio, tem um nome específico para o povo de Karemii: chama-se de “karakura” que traduzindo significa serpente-forme.”O formato da serpente vai representar nessa costura dos mundos, entre o sol, a lua e as energias que existem na água. Ela vai trazendo suas diversas faces. Tem espécies que escalam, voam, nadam e correm.”
“O rio não para. Ele é ininterrupto, independentemente de hoje estar seco ou não. Não pode interromper. Da mesma forma é o sangue, Ele não para de correr. A serpente é ao mesmo tempo o rio, a mata, e o rio das nossas veias”, explica Merremii. A serpente está em diversas formas e linguagens, das artes à literatura. E ela também mergulha rompendo as duas coisas que as pessoas temem: o bem e o mal. “Ela também vai representar o que a gente não consegue se desconectar: nossa ancestralidade.”
Tiago sempre escutou dos avós que nas águas do Rio Andirá, nas profundezas do leito, morava uma cobra grande. Em Guayne, o livro de estreia do autor, é justamente essa imagem que conduz a narrativa. “A história de Guyane é uma criação minha, mas os elementos tradicionais são bastante presentes. A literatura indígena é sempre uma invenção de algo que está ao nosso redor, das histórias que escutamos”, explica. “Quando eu comecei a escrever, eu não queria só contar as histórias. Eu queria também criar.” Outros autores também se aproximam da cosmovisão das serpentes para contar histórias, como no livro de Daniel Munduruku As serpentes que Roubaram a Noite.
Serpenteando
Maru Huni Kuin nasceu no Acre, na fronteira do Peru com o Brasil. É descendente de dois povos – o Pai é Inca, de uma aldeia chamada Barro Sagrado, e a Mãe Huni Kuin brasileira. Maru fez pedagogia, pós-graduação, licenciatura indígena, e hoje atua como educador no Museu das Culturas Indígenas em São Paulo, onde um pufe de grandes dimensões, pintada por vários artistas, intitulado Jiboinha, é considerado uma ferramenta pedagógica do Museu.
Desde a infância, ele aprendeu a conhecer as plantas e hoje é pesquisador das medicinas da floresta. “Cresci dentro de uma alquimia de família que desde cedo me ensinou a arte medicinal – que está em todas as instâncias culturais de diversificados tipos de cultura no Brasil”, conta.
Para Maru, a simbologia da cobra está em ser como uma raiz originária, que conecta as mais de 305 diferentes etnias. “A cobra faz parte da antiga história de transformações, ligada a diferentes troncos linguísticos no Brasil e fora do Brasil. A gente tem conhecimentos em comum, mas por causa de todos esses invasores, nos dividimos.”
O pesquisador chama a serpente de “alquimia educativa” e explica que, em especial para os Huni Kuin – que significa gente verdadeira, as cobras são sinônimo de transformação e conhecimento. Na história contada por esse povo, as serpentes já foram humanas um dia e todas fazem parte de uma cosmovisão espiritual. “A cobra Jiboia, para nós, traz histórias e grafismos de uma narrativa que faz parte da história, da geografia, da ciência, de um mundo social interno e externo desse povo. Cada bordado que se encontra dentro do grafismo do mistério tem um significado”, diz Maru.
O grafismo para pessoas casadas, solteiras, pais e mães é específico, por exemplo. Há também o grafismo do batismo que pede proteção material e espiritual para crianças. “A serpente representa de onde os povos nativos, principalmente o povo Huni Kuin, têm a sua inspiração vinda.”
A cobra Jiboia inspira inteligência e proteção. Assim, as pinturas de cobras, para além da presença no trabalho artístico e literatura, também fazem parte de uma essência medicinal, ligada às medicinas ancestrais e culturais existentes dentro da floresta do Brasil e do Mundo. “A serpente faz parte da vida humana. Ela não é simplesmente uma narrativa histórica. Ela é uma grande guardiã da nossa sede”, diz Maru. “Onde existem as grandes serpentes, existe água potável, protegida, preservada, que nunca vai acabar. Se matarmos as nossas serpentes, tirarmos de baixo de nossa água, especialmente os rios vão secar. Elas cavam os rios e dão a vida para que os rios continuem vivendo.”
Na visão do pesquisador, falta atenção por parte dos pesquisadores brasileiros às medicinas da floresta, e portanto, às serpentes. Para ele, muitas doenças hoje enfrentadas poderiam contar com os tratamentos de cura dos povos indígenas, mas ainda enfrentam discriminação para serem entendidas como formas de conhecimento.
“Hoje, a gente vê gente da Austrália, da Noruega, da Itália na Amazônia, utilizando as histórias narradas das serpentes, das medicinas, das transformações. Enquanto isso, a gente não vê nenhum pesquisador da PUC, da USP, da UFMG, das grandes universidades do Brasil, em busca desses conhecimentos. Esses pesquisadores levam para fora do Brasil todos esses saberes, enquanto, encontramos aqui discriminação e preconceito”, finaliza.
A conexão entre a sabedoria das plantas e as artes pode ser vista em muitas das obras do MAHKU, destaque na Bienal de Veneza, em que são feitas traduções visuais dos cantos huni meka, conhecimento tradicional que acompanha os rituais de nixi pae com a bebida da ayahuasca – uma espécie de chá com potencial alucinógeno preparado com plantas amazônicas e utilizado há séculos por diversos povos na América do Sul. É a serpente costurando mundos.