Por Carolina Dill (reportagem originalmente publicada na revista Sextante, do curso de Jornalismo da UFRGS)
“Nos olhos da sociedade, eu sou uma pessoa com deficiência. Nos olhos da comunidade surda, eles veem o meu nome.” Escrita pelo produtor de conteúdo digital João Gabriel Ferreira, essa frase está em destaque no WhatsApp de Alessandra Rithiele, atriz e administradora surda de 25 anos. Desde os oito, quando ingressou nas aulas de teatro da Escola Bilíngue Frei Pacifico, em Porto Alegre, a jovem encontrou na arte uma forma de apresentar o seu nome, lutar pelo seu espaço e o de sua língua, a Língua Brasileira de Sinais (Libras).
A criança que observava os adolescentes performando em ensaios, logo insistiu à mãe para que pudesse atuar. A oportunidade a levou a participar de apresentações em outras escolas bilíngues e em peças de surdos para surdos. Fora do ambiente escolar, sua frequência nos espetáculos em língua portuguesa se limitava àqueles em que houvesse intérprete de Libras. Ou se restringia a ir com uma companhia que estivesse disposta a comunicar a ela tudo o que estava sendo dito na cena.
A Libras é a primeira língua de Alessandra. “Essa língua é tudo na minha vida. Eu valorizo, e as pessoas estão valorizando mais”, afirma. “Nós, surdos, sabemos o português, e os ouvintes precisam saber a língua de sinais. Algumas coisas, pelo menos. Nós achamos bom nos comunicar em duas línguas, e o ouvinte também deveria.”
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estima que o número de pessoas surdas no Brasil passa dos 10,7 milhões. A Lei nº 10.436, de 2002, reconhece a Libras como segunda língua do país. Outro levantamento, no entanto, revela que a maior parte da população brasileira não sabe utilizá-la. De acordo com a Pesquisa Nacional de Saúde (2021), entre aqueles que têm alguma dificuldade auditiva na idade de 5 a 40 anos, 9,2% sabem a língua e, entre os que têm deficiência moderada, apenas 22,4%. No grupo que alega não ouvir de forma alguma, 61,3% sabem utilizar a Libras. O baixo alcance na sociedade acaba levando a comunidade ao isolamento.
“O surdo tem conhecimento, tem uma cultura: a cultura surda. É preciso olhar para ela. Para mim, a representatividade é mostrar aos ouvintes que nós somos iguais [em direitos] e nós temos a nossa língua”, enfatiza Alessandra. Dessa forma, cada espetáculo torna-se mais do que uma manifestação artística: é uma afirmação da identidade.
A última apresentação da jovem ocorreu na sétima edição do Sarau Arte de Sinalizar, evento de literatura surda vinculado ao projeto Arte de Sinalizar, coordenado pelo ator e professor surdo do curso de Letras Português/Libras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Cláudio Mourão, o Cacau, de 50 anos, natural do Maranhão.
Com o objetivo de tornar a Libras visível, o educador criou um repositório digital para divulgar produções artísticas de surdos. “Nós temos uma literatura brasileira registrada, peças teatrais, roteiros, piadas, gravações e entrevistas em português, um material muito rico. Onde estavam os registros em língua de sinais? Antigamente, eles circulavam na oralidade de geração para geração, na sinalização, sem o registro”, reflete Cacau.
Por anos, a comunidade surda foi vista sob o aspecto clínico da deficiência auditiva, na perspectiva da ausência e não das potencialidades. Em um contexto em que a Libras não é adotada por todos, o intérprete assume um papel crucial na promoção da acessibilidade. A sociedade, ao inviabilizar o acesso à cultura e à língua, acaba limitando que surdos se enxerguem na posição de artistas. “Se não tem acessibilidade, acabamos desconhecendo essa possibilidade”, afirma Cacau. Conforme o professor, é comum que as ações promovidas pelo projeto Arte de Sinalizar tornem-se o primeiro contato de um surdo com a arte. “No Sarau, conversando com algumas pessoas, comentavam: ‘é a primeira vez que acesso arte na minha vida’. Quer dizer, quantos espaços são invisibilizados?”, questiona.
Conheça mais sobre a Libras:
Protagonismo surdo
O grupo Signatores, formado em 2010 em Porto Alegre, busca inverter o padrão vigente: nele, atores surdos são protagonistas e a língua gestual tem papel central. “O Signatores sempre foi voltado aos surdos, sempre teve como prioridade os estímulos visuais e a expressão corporal, um trabalho com o corpo, com jogos de integração, improvisação e a busca pela autonomia em cena”, explica Adriana Somacal, de 39 anos, moradora de Palhoça, diretora do projeto e doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). O grupo surgiu de um interesse em investigar a construção da linguagem artística em união à utilização do corpo na Libras, uma vez que a expressão corporal é parte estrutural da língua. Assim, as performances são criadas com e para surdos, com acessibilidade para ouvintes.
Umberto da Rosa, ator e professor de matemática surdo, de 37 anos, de Gravataí, está no grupo desde a criação. No início de sua formação artística, a curiosidade e as práticas corporais direcionadas à atuação despertaram-lhe o interesse em continuar. “Além de trabalhar a questão corporal, tem a questão do compartilhamento entre os pares. Nesse período, nós tivemos que nos esforçar bastante. Alguns surdos tinham mais dificuldades do que outros, mas sempre havia um apoio entre as pessoas”, lembra.
O Signatores busca aproximar surdos da arte e incentivar a formação de pesquisadores, de atores e de professores de teatro. Em 2020, o grupo incluiu uma nova área de trabalho: o audiovisual. Lucas Bourscheid, de 28 anos, ator e gestor de recursos humanos surdo, natural de Santa Rosa, começou a fazer parte neste mesmo período.
O jovem conheceu o projeto durante uma peça em sua cidade natal. “Eu me encantei e falei: ‘quero participar’, mas isso ficou em stand by“, conta. Ele chegou a integrar outros grupos, voltados para uma perspectiva ouvinte, mas não se adaptou. Quando surgiu a oportunidade de participar de uma oficina do Signatores, não quis deixá-la passar.
“O grupo traz surdos com protagonismo, leva as nossas experiências. Isso muda a nossa vida. Não é só a questão de apresentação de espetáculos, mas a construção enquanto sujeito”, diz. Ele encontrou uma metodologia diferente das que ele tinha conhecimento. “Você tem um texto, um roteiro e precisa trazer esse roteiro para língua de sinais”, explica Lucas. “Muitas vezes, temos que criar sinais específicos para poder trabalhar coletivamente e entender os processos.”
Pessoas surdas utilizam a comunicação visual como principal meio de absorver as informações ao seu redor. Nesse sentido, enquanto no teatro entre ouvintes o responsável pela direção passa as instruções nos ensaios pela fala ao mesmo tempo em que os atores continuam representando, no teatro surdo, isso não funciona. Os atores precisam parar e olhar para quem deseja comunicar, já que o recurso visual é fundamental para compreender as orientações antes de continuar. A gravação das práticas e do roteiro em língua de sinais é outro método que auxilia na construção coletiva da peça e na memorização.
Com relação ao audiovisual e ao teatro, na perspectiva de Lucas e Umberto, a oportunidade de atuar nas duas áreas é algo desafiador, uma vez que no cinema é mais difícil capturar as imagens utilizando a língua gestual. Além disso, se diferenciam nas formas de trabalho, considerando que num espetáculo não existe a possibilidade de corte e repetição da cena.
A participação de Lucas tem lhe dado ferramentas para que atue como formador de outros atores, o que é reforçado pela diretora do grupo, Adriana. “Sempre buscamos que os atores criem e sejam os autores do seu trabalho. Agora eles estão se tornando professores de teatro, dando continuidade em suas áreas, conforme suas possibilidades.” Ao lado do artista Philipe Philippsen, mais conhecido como Lipsen, Lucas é um dos criadores do Café Sinalizante, um encontro mensal na capital gaúcha, que reúne pessoas surdas e ouvintes para aprender e praticar a Libras.
Segundo Priscila Lourenzo, de 29 anos, de Porto Alegre, professora de teatro com surdos e mestre em Educação pela UFRGS, a arte mostra-se como um espaço para reflexão sobre a realidade e expressão de subjetividades. O campo também pode ser uma ponte entre a cultura surda e a ouvinte, desde que haja um diálogo e que tenham surdos construindo artisticamente. “A arte tem o potencial de fazer com que as pessoas se relacionem e troquem ideias, reconheçam o outro e pensem em outra perspectiva. Ao estudar um personagem, pensamos em outra realidade, em outra maneira de ser.”
A presença de atores surdos no palco pode ter impacto positivo na construção da autoestima das pessoas surdas que estão na plateia. Ver suas experiências, assim como a própria língua, refletidas no espetáculo contribui para a sensação de pertencimento e valorização.
Libras na cultura drag queen
O intérprete, tradutor e ator ouvinte Lenon Tarragô, 35 anos, morador de Canoas, encontrou na cultura drag queen e na Língua Brasileira de Sinais um instrumento de representatividade e inclusão. Inspirado na cantora Rita Lee e na dançarina Rita Cadillac, o jovem criou Rita D’Libra, a primeira drag queen intérprete de Libras do Brasil, que hoje atua fazendo apresentações, produzindo conteúdo informativo nas redes sociais e trabalhando como intérprete em eventos e em shows de artistas.
Ao invés do padrão do qual se espera do intérprete — discreto, de preto, de cabelos presos, na lateral de uma apresentação —, Rita aparece sinalizando montada com a lace, maquiagem e joias, sem perder a marca da expressividade corporal.
“A Libras é o principal. Minha preocupação, primeiro, é passar a mensagem, depois o resto é performance”, aponta. Inicialmente, atuava apenas como intérprete no teatro e, aos poucos, foi ganhando os palcos e passou a performar. “A minha performance é para chegar primeiro no surdos. É diferente de eu estar produzindo ‘na caixinha’, eu estou em um palco aberto, então tenho que fazer um sinal para ser visto pelo maior número de pessoas possíveis no local.” Ao valorizar a Libras, a sociedade abre as cortinas para um futuro mais inclusivo, no qual a diversidade linguística é celebrada e a comunicação é acessível a todos.
*Esta reportagem contou com o apoio de tradutores e intérpretes de Libras para a execução das entrevistas. Colaboraram com este conteúdo as profissionais Ângela Russo, tradutora e intérprete de Libras do Grupo Signatores e do Incluir (Núcleo de Inclusão e Acessibilidade da UFRGS); Janaína Viegas, tradutora e intérprete de Libras do Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS); Maitê Maus e Celina Xavier, tradutoras e intérpretes de Libras do Instituto de Letras da UFRGS.