Em qualquer estado e município do Brasil, as pessoas sabem que podem acessar o Sistema Único de Saúde (SUS). O governo pode mudar, mas a sociedade brasileira entende que esse é um direito garantido em todo território nacional. O SUS é composto por uma estrutura que envolve o Ministério da Saúde, Secretarias Estaduais e Municipais, Conselhos, e princípios que regem sua estrutura.
Nos últimos meses, após dez anos de espera, o Ministério da Cultura avançou na implementação do “Sistema Nacional de Cultura”, apelidado de “SUS da Cultura”. Em março, o Projeto de Lei (PL 5206/2023) instituiu o Marco Regulatório. Em abril, o presidente da República sancionou, com veto parcial, o marco regulatório do Sistema Nacional de Cultura. Mas, o que esses dois sistemas terão de parecido?
A existência do Sistema Nacional de Cultura está prevista na Constituição desde 2012 (Emenda Constitucional 71), mas, até então, ainda não contava com uma regulamentação que definisse a articulação com os demais sistemas nacionais e as políticas setoriais de governo. O objetivo do SNC é a promoção do desenvolvimento humano, social e econômico com o pleno exercício dos direitos culturais. Fundamentado na política nacional de cultura e suas diretrizes, fixadas pelo Plano Nacional de Cultura (PNC), o SNC rege-se por alguns princípios, como o da diversidade das expressões culturais, da universalização do acesso aos bens e serviços culturais e o do fomento à produção, difusão e circulação de conhecimento e bens culturais.
Assim como o SUS na saúde, o SNC foi criado para organizar a política cultural brasileira, além de sistematizar a descentralização de recursos do setor cultural para estados e municípios, a partir de programas como a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), que vai destinar um total de R$ 3 bilhões anuais aos entes federados. O sistema é composto por diversos órgãos gestores, conselhos de política cultural, conferências de cultura, comissões intergestoras, planos municipais e estaduais de cultura, sistemas de financiamento à cultura, sistemas de informações e indicadores culturais, programas de formação na área de cultura e sistemas setoriais.
Próximos passos
Até o fim do ano, o Ministério da Cultura também deve encaminhar ao Congresso o novo Plano Nacional de Cultura, documento fundamental do SNC com metas e diretrizes eleitas na Conferência Nacional de Cultura, realizada em março. O plano serve como norteador das políticas públicas de cultura em âmbito nacional e também dá embasamento aos planos estaduais e municipais. (Confira aqui um resumo das propostas aprovadas).
Atualmente, segundo os dados do SNC, 100% dos estados e 63,8% dos municípios (3.554 de um total de 5.570 cidades) aderiram ao sistema. A perspectiva é que esse índice cresça, uma vez que a implementação dos sistemas municipais de cultura é uma medida necessária para receber os recursos da Lei Paulo Gustavo e da PNAB. Nesta plataforma, é possível conhecer quais componentes do SNC cada município ou estado já implementou, assim como consultar documentos como os planos municipais de cultura, quando existentes.
No portal, constam ainda dados sobre os recursos distribuídos via SNC a partir das leis Aldir Blanc (2020) e Paulo Gustavo (2023). Os programas possibilitaram que a verba do setor chegassem diretamente a fazedores de cultura de todo o país por meio de editais e chamadas públicas.
Na prática, o Sistema Nacional de Cultura atua como um “organizador” e articulador da política cultural, em que estados, Distrito Federal e municípios ao aderirem, como fizeram na Lei Paulo Gustavo, também organizam suas próprias gestões. Ou seja, ao integrar o SNC, os munícipios e estados, além de receberem os recursos de forma articulada, também precisam constituir seus conselhos de política cultural – compostos por representantes da sociedade civil e do setor cultural -, assim como fundos de cultura próprios ou a adequação dos já existentes.
O marco regulatório sancionado este mês também prevê que os estados possam se articular em consórcios interestaduais, “a fim de promover o desenvolvimento sustentável e os direitos culturais em âmbito regional.” Outra implicação direta do projeto é uma ampliação progressiva dos recursos destinados à cultura, em especial do Fundo Nacional de Cultura (FNC).
Em artigo publicado pelo Nonada, a produtora cultural Inti Queiroz relembra que os recursos do FNC foram insuficientes nos últimos anos. “Não houve real vontade política nem do Executivo nem do Legislativo para que isso ocorresse. A escassez de recursos públicos para o setor, principalmente após 2010, colaborou para que a implantação do sistema não avançasse conforme planejado em seus primeiros anos”, avalia. A pesquisadora também cita a instabilidade política que atingiu o brasil desde 2016 como um dos fatores do atraso na regulamentação.
Para o Secretário Márcio Tavares, o SNC é estruturante para o desenvolvimento das políticas culturais. “A gente precisa que essas políticas tenham responsabilizações e deveres claros para cada um dos entes. Nós aqui, na União, temos os nossos deveres. [Assim como] o estado, o município, com isso otimizamos o uso dos recursos que estamos distribuindo e não ficamos sobrepondo ações entre unidades da federação. Assim, a população tem mais condições de cobrar o seu órgão responsável pelo desenvolvimento dessas políticas”, explica.
Segundo ele, os princípios que regem o SNC passam pela participação, transparência e fiscalização. A participação pode ser vista nos Conselhos de Política Cultural, áreas permanentes de articulação e deliberação nos sistemas culturais, compostos por representantes do poder público e da sociedade civil, com no mínimo 50% de cada segmento. “A regulamentação do SNC vai tornar tudo mais ágil, transparente, e com mais controle e com mais força para ser uma política de estado. O SNC é uma política de estado, não de governo, e articula todas as nossas ações.”
Um exemplo de funcionamento do SNC pode ser visto na 4ª Conferência Nacional de Cultura. Mari Martinez, coordenadora do escritório do MinC no Rio Grande do Sul, explica que o “SUS da Cultura” permite o fortalecimento das políticas culturais em uma abrangência maior. “Em 2023, começa um processo de retomada de participação que começa nos municípios. No Rio Grande do Sul, por exemplo, foram mais de 250 municípios nas Conferências, sendo que muitos nunca tinham feito uma conferência. Muitos instituíram recentemente seu conselho municipal de cultura. Então, o Sistema Municipal de Cultura se fortalece pelo processo de conferência.”
O diretor do Sistema Nacional de Cultura e secretário-executivo do CNPC, Júnior Afro, explica que após a regulamentação da lei, os próximos passos são trabalhar na implementação de componentes do sistema, como as comissões intergestoras, que são espaços de pactuação entre os entes. “Sua existência pressupõe um avanço no enfrentamento às descontinuidades das ações e políticas culturais nos estados porque organiza a política cultural nas 3 esferas.”