Foto: Isabelle Rieger

Como a cultura do brincar pode ajudar na aprendizagem e alfabetização das crianças

Inventar histórias, pintar, modelar, ouvir cantigas de roda, pular amarelinha. Mais do que atividades nostálgicas, o brincar precisa estar presente na vida das crianças de hoje, inclusive em espaços de sala de aula e mesmo em momentos de crise. É o que defendem especialistas em educação infantil como Andrea Serpa, doutora em Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

Com duas décadas nas salas de aula, a professora é atualmente coordenadora do Laboratório de Brinquedos da UFF, programa que desenvolve metodologias para trabalhar a aprendizagem e a alfabetização a partir do brincar. Com materiais simples como itens recicláveis e ideias fáceis de serem aplicadas, a iniciativa tem como foco o respeito à ludicidade e o entendimento de que o brincar ajuda no desenvolvimento cognitivo durante a infância.

“O brincar realmente é um ansiolítico natural, se a gente brincasse mais a gente seria muito menos estressado, teria um corpo muito mais funcional, então roubar isso das crianças é uma temeridade. A criança não pode ser um investimento no mercado futuro, a criança precisa ser feliz hoje, aqui e agora”, diz.

Para a educadora, é importante também que as famílias respeitem o tempo de brincar das crianças, um direito que virou lei em março de 2024, quando o governo Federal sancionou o PL que “institui a parentalidade positiva e o direito ao brincar como estratégias intersetoriais de prevenção à violência contra crianças”. Segundo o artigo 3º da lei,  “é dever do Estado, da família e da sociedade proteger, preservar e garantir o direito ao brincar a todas as crianças”.

Confira a entrevista:

Nonada Jornalismo – Por que usar a brincadeira para trabalhar a alfabetização?

Andrea Serpa – O brincar, o que geralmente o leigo chama de brincar do ponto de vista do aprendizado é, na verdade, um trabalho da criança. Quanto mais concentradas as crianças estão na sua brincadeira, significa que mais aquele cérebro dela está produzindo sinapses, está testando hipóteses, está construindo conhecimento. Então, a gente tem no brincar todo um processo de desenvolvimento e aprendizado que passa pelas questões cognitivas, uma série de conhecimentos que o cérebro precisa desenvolver. 

Por exemplo, você pega uma criança que nasceu em uma família letrada, que já tem uma biblioteca em casa…A criança ainda nem nasceu, mas já ganhou um livrinho de borracha para morder, a madrinha, a avó, todo mundo compra livrinho pra criança, conta história para criança. Ela cria um vínculo afetivo com esse momento, aquilo entra na tua memória como um momento de encantamento. Então, a sua relação com a leitura e a escrita vai ser uma relação de desejo, de vontade. Com a leitura, a gente pode ir para outro país, para outra época, para outra dimensão. Então a criança é convidada, não é obrigada. Não é pelo treino, pela caligrafia, é pelo caminho do encantamento que a criança naturalmente começa a ter o desejo de aprender a ler e escrever.

Não é nenhum bicho de sete cabeças para uma criança de 5, 6 anos aprender a ler. Muitas vezes o adulto é que atrapalha o caminho da criança. A partir dos 6 anos, a criança já tem uma maturidade e ela vai lidar com esse universo da formalização da escrita, mas antes tem todo um processo de desenho, de pintura, de criar uma história, e isso vai arando esse terreno para que brote de uma forma muito mais natural para criança. 

Nonada – Um dos artigos que você escreveu que foi publicado em 2022 falava da observação de uma criança com uma bolinha de sabão e o brincar livre em contextos de pandemia. Você fala que as crianças que vieram agora da pandemia talvez precisem de uma escuta mais sensível das realidades que elas estão vivendo, porque passaram por muito tempo num confinamento social. O que você tem observado agora? Em 2024 tem diferença dessa geração pra outra? 

Andrea – A gente vem enfrentando uma dificuldade bastante grande. A criança não foi isolada só pela pandemia. Eu sou de uma geração que com 11 anos eu ia para  escola sozinha, pegava dois ônibus sozinha. Hoje muitas famílias estão cada vez mais aprisionando as crianças dentro de casa, porque é perigoso, a rua oferece muito perigo. 

Temos poucos espaços onde você vê a criança brincando com outras crianças, e a escola muitas vezes também está roubando esse espaço de brincadeira, porque no senso comum se acha que o espaço do brincar é o espaço do perder tempo. Se escuta muito as famílias falando “eu vou mandar meu filho pra escola só pra brincar?”, como se a criança tivesse outros espaços de brincadeira, como se esse adulto tivesse tempo de brincar com essa criança e como se o brincar não fizesse parte desse processo. 

A pandemia agravou isso, mas nós temos também alguns espaços que foram roubados. A questão do celular por exemplo, você deixa a criança na frente do celular e na frente do tablet que ela fica quietinha.  Só que esse comportamento tem consequências, essa falta de interação com outras crianças. O que chamamos hoje de dificuldade de aprendizagem está sendo produzida pela vida que ofertamos: elas estão se tornando espectadoras da vida.

Foto: Isabelle Rieger

Nós temos que olhar também para a escola: ela está sendo um ambiente que permite às crianças viverem a infância sem pressa? Atualmente, por exemplo, temos muitas crianças hiperativas. Elas são hiperativas ou estão sendo hiperativadas por um mundo que hiperestimula essas crianças com luz, cor, som? 

O brincar realmente é um ansiolítico natural, se a gente brincasse mais a gente era muito menos estressado, tinha um corpo muito mais funcional, então roubar isso das crianças é uma temeridade. A criança não pode ser um investimento no mercado futuro, a criança precisa ser feliz hoje, aqui e agora.

Nonada – A importância do brincar na educação tem sido mais falada e reconhecida nos últimos anos?

Andrea – Eu já estou  com 35 anos de magistério, e essa discussão sobre educação infantil tem uns 40 anos. Hoje nós temos diretrizes curriculares, nós temos a BNCC, temos todo um campo teórico. Mas nós temos um mercado muito forte, inclusive das escolas privadas, que vive de vender apostila e esse mercado veio dando uma uma ideia do que seria ideal para uma criança. É um mercado muito poderoso porque é um mercado que move muito dinheiro. São empresas, então o objetivo não necessariamente é o compromisso com a infância. É um compromisso com o cliente. 

Há tempos enfrentamos o que eu chamo de “currículos inventados”. Por exemplo, está muito na moda aqui no Rio de Janeiro livrinho de caligrafia para criança de 2 anos. Nenhum teórico das infâncias vai defender que uma criança de 2 anos fique sentada numa sala de aula fazendo livrinho. Nenhum professor alfabetizador que defende alfabetização, nem mesmo a Bárbara Suárez que fala de alfabetização na educação infantil. Mas o que ela fala de alfabetização na educação infantil passa por aquilo que eu te falei: vamos contar histórias,  vamos trabalhar o nome das crianças, mas não vamos fazer cartilha. 

E hoje há pessoas querendo pegar uma cartilha de 50 anos atrás, quando eu me alfabetizei, para dar para criança. Tenho um grupo de pesquisa que chama-se “Alfabetização sem Cartilhas”. Fui professora alfabetizadora durante minha vida de escola pública e eu estou há 13 anos na universidade, mas os outros 22 anos eu estava no ensino básico. Nunca usei cartilha para alfabetizar.

Nonada – Você pode me dar um exemplo de metodologia para alfabetização com brincadeira ?

Andrea – No Laboratório de Brinquedos, em todo o processo de alfabetização, eu trabalho numa perspectiva discursiva. Eu conheço meu aluno, sei quais são os animais favoritos, quais são as histórias que ele gosta, quais são os brinquedos que ele prefere. A partir desse material, eu posso construir uma série de jogos e brincadeiras com esses materiais, eu faço cruzadinha com os nomes das crianças, eu faço dominó. Com o nome dos animais eu faço jogo de memória. Eles constróem, não sou eu que construo para eles. Eles recortam, montam e brincam. 

Tem brincadeira de recontar história, de construir os personagens da história, aí as crianças produzem seu próprio texto, vão sendo convidadas,  o nome da princesa é com letra maiúscula ou minúscula? A criança vive aquela experiência afetiva, e a  gente vai convidando ela a registrar essa brincadeira, a pensar sobre as letras

Eu tenho um exemplo de um trabalho com letramento com turma de crianças de 4 anos.  Quando brinca, ela produz uma narrativa que traz toda a referência social dela. Um dia eu falei “gente, hoje eu tenho uma história engraçada pra contar pra vocês” aí comecei a ler, aí eles foram assim “nossa mas é nossa brincadeira” e eles  se reconheceram e acham mágico que ficou registrado aquele momento que eles viveram. Elas começam a pensar que estão produzindo uma narrativa, criando um texto.

Compartilhe
Ler mais sobre
direitos humanos
Repórter e fotógrafa. Escreve prioritariamente sobre cultura e meio ambiente, culturas populares e educação
Nortista vivendo no sul. Escreve preferencialmente sobre políticas culturais, culturas populares, memória e patrimônio.
Ler mais sobre
Direitos humanos Resenha

O cochilo como resistência: conheça Tricia Hersey, a artista e poeta que defende o descanso