Foto: Isabelle Rieger

Mães e Pais de Santo criam rede de solidariedade para apoiar comunidades de matriz africana afetadas no Sul

Porto Alegre (RS) — Quando a situação das enchentes se agravou no Rio Grande do Sul, Ialorixás e Babalorixás da cidade de Alvorada, região metropolitana de Porto Alegre, reuniram-se em um grupo de Whatsapp para monitorar o impacto para as comunidades de tradições de matrizes africanas na região metropolitana de Porto Alegre. Agora com mais de 40 pessoas, entre mães e pais de santo, o grupo tornou-se uma rede de solidariedade para apoiar e acolher aqueles que perderam seus terreiros devido às enchentes históricas que afetam mais de 80% do estado desde a semana passada. 

A mãe de santo Ediandra de Obá, do Ilê Axé Obá, localizado no bairro Jardim Algarve, Alvorada, uma das fundadoras do grupo, abre sua casa diariamente para receber quem precisa. “Muitos pais e mães foram afetados e perderam seus Ilês. Estamos em situação de calamidade. Mesmo tendo passado por isso, muitos estão arregaçando as mangas e ajudando a comunidade”, conta. 

O Pai Sandjai de Iemanjá estima pelo menos 50 terreiros afetados direta ou indiretamente na região metropolitana. Já Ediandra, com base nos relatos do grupo e também de conhecidos,  fala em 300 casas de religião afetadas. O número de terreiros existentes no Rio Grande do Sul é um dado não mapeado nos últimos anos, mas dados de 2010, do IBGE, estimam que há pelo menos 60 mil casas no estado inteiro. Segundo dados de 2019, o estado teria, proporcionalmente, a maior parcela de praticantes de religiões de matriz africana entre os estados brasileiros. 

Segundo Mãe Ediandra, as redes sociais estão sendo o canal para que as comunidades possam relatar, já que o poder público não atende. “Estamos usando as redes sociais para reunir as comunidades de matriz africana para ajudar pais e mães de santo para conseguirem montar suas casas”, explica. Em Alvorada, bairros como Americana, Umbu e Intersul foram duramente atingidos. 

Mancha marrom mostra altura em que a água chegou no Terreiro Pai Alfredo, em Porto Alegre (Foto: Rafael Gloria/Nonada Jornalismo)

O Pai Sandjai de Iemanjá, do Ilê Axé Oloboci, localizado no bairro Jardim Alvorada, um dos criadores do grupo de solidariedade, conta que muitos babalorixás e ialorixás resistiram em sair de suas casas, que são espaços construídos durante décadas e assentados de muito valor afetivo, espiritual e ancestral. A perda, assim como para muitas das 200 mil pessoas desalojadas neste momento no estado, é dupla: há a perda da casa, de moradia, e simultaneamente, de sua casa religiosa. Assim como Mãe Ediandra, sua região não foi atingida e está sendo ponto de acolhimento. 

“Nós temos o grupo, pois juntos somos mais fortes. Todos os Babás e Iás estão interagindo com doações. Por incrível que pareça, mesmo com as perdas, estão em uma garra por ajudar o próximo. Isso não parou eles. A força está sendo diária.” Somente ontem, Ediandra abrigou 13 pessoas e 14 cachorros de outras regiões em seu Ilê. Já Sandjai relembra que, embora o grupo parta da ideia de acolher pessoas das comunidades de matrizes africanas, ele é voltado para ajudar vítimas da enchente de forma geral. 

O Pai de Santo Sandjai explica que essa rede faz parte da solidariedade que já existe nos terreiros, independente do momento, mas que agora ganha força com a situação grave que enfrentam. Em parceria com o Centro de Tradições Gaúchas (CTG) Amaranto Pereira (Rua Antônio Carlos Jubim, número 1000), em Alvorada, Mãe Ediandra, Pai Sandjai e Pai Jonas Tavares, abriram um ponto de arrecadação de doações de roupas e alimentos. “Nós, das comunidades de matriz africana, não estamos tendo suporte dentro do município com as autoridades. Se hoje temos uma roupa, uma coberta, é por conta dos nossos irmãos de axé e dos moradores da vizinhança”, relata Ediandra. 

Terreiro inundado no bairro Americana, em Alvorada (RS) (Foto: acervo pessoal/reprodução)

O impacto para terreiros localizados em Porto Alegre, Região Metropolitana e em outros municípios do estado ainda não pode ser mensurado, mas, segundo o mapeamento realizado pelo Nonada Jornalismo, em atualização constante, já há casas de religião na cidade atingidas pela enchente, como o Ilê Nação Oyó – Reino de Exu Rei das 7 Encruzilhadas, terreiro de Mãe Ieda do Ogum, conhecido pela origem da Quimbanda Tradicional no Rio Grande do Sul. 

Localizada na Cidade Baixa, a casa faz parte da história do Batuque do estado há mais de 60 anos. Segundo filhos de santo, ainda não é possível mensurar as perdas, porque a água segue subindo dentro do Ilê, já tendo atingido o primeiro piso e marcado mais de 1,5m de altura. (Atualização: na sexta (10), o Nonada confirmou que o terreiro foi completamente invadido pela água, e tudo foi perdido.) O bairro é um dos mais afetados da região central de Porto Alegre e precisou de evacuação nos últimos dias. 

“As enchentes no Sul do país já deixaram milhares de vítimas e desabrigados em todo o estado do RS e muitos Terreiros também estão sendo destruídos pela força das águas. Quando os temporais passarem, a catástrofe climática no Rio Grande do Sul ainda deixará graves marcas na história e terreiros inteiros precisarão ser reconstruídos. São décadas de história e resistência negra, assentamentos e espaços de acolhimento social e religioso que precisarão de manutenção e recuperação”, lembram os filhos do Ilê Nação Oyó na Vakinha Solidária já aberta para contribuições. 

No Sarandi, o Centro Africano Mãe Oxum Pandá é um dos atingidos. O bairro periférico também precisou ser evacuado, e é um dos que mais concentra terreiros em Porto Alegre, segundo um levantamento realizado em 2012 por Tiago Bassani Rech. Há informações de terreiros também nas regiões de Navegantes, Humaitá, e nas cidades de Canoas e Montenegro severamente tomados pela água. 

Compartilhe
Ler mais sobre
comunidades tradicionais
Coordenadora de jornalismo do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Ler mais sobre
Clima e cultura Comunidades tradicionais Reportagem

“Os adultos precisam melhorar”: o que crianças Kaingang pensam sobre o futuro do planeta