Dona Onete em frente ao Ver-o-peso (Foto: Renato Reis/divulgação)

A luta em festa na ‘Bagaceira’ de Dona Onete

Abílio Dantas*

Belém (PA) — “A felicidade do negro é uma felicidade guerreira! ”, escreveu o poeta Waly Salomão na canção Zumbi, parceria com Gilberto Gil. A audição das dez faixas de Bagaceira – quarto álbum de Dona Onete, lançado na última terça-feira, 18, dia também em que completou 85 anos – pode levar o ouvinte de primeira viagem ou o marinheiro apenas das águas de superfície da obra a captar somente a festa e a alegria contidas no novo trabalho da cantora e compositora. Alto lá.

Do pitiú à bagaceira, passando pelo banzeiro e pelo rebujo, cada palavra, história e ritmo trabalhados pela mestra traz em seu pilar de existência a escolha por um lado na guerra travada pela cultura do Norte brasileiro e seus artistas. Em Dona Onete, as armas são o humor, a sedução e o conhecimento afetuoso e profundo dos lugares de onde vem. Feliz e guerreira, Ionete Silveira Gama sabe bem o que quer.

“O que eu sempre quis foi mostrar aquilo que é nosso e que estava escondido, que achavam que era feio”, diz Onete durante a coletiva de imprensa do álbum, em um hotel em Belém. E ilustra a fala com um argumento: o pitiú do meio do Ver-o-Peso, por exemplo. Termo usado para designar um cheiro desagradável, normalmente associado a carnes cruas ou podres ou jogadas fora, como é o caso dos restos de peixe no maior mercado a céu aberto da América Latina, o pitiú, tal como o personagem urubu, foi sempre associado – e continua sendo – aos aspectos de falta de higiene e organização do cartão postal, que paradoxalmente é tratado com orgulho e vergonha pelos belenenses.

Dona Onete (Foto: Renato Reis/divulgação)

Desde que Dona Onete lançou a música “No meio do Pitiú”, em 2016, sucesso na feira e em toda a cidade onde quer que toque, o sentimento de pertencimento do cheiro e do local, em sua inteireza, com a podridão e a síntese cultural que representa, “saiu do armário”. Dona Onete escancara o que há de mais particular nos modos de viver, comer, dançar, festejar e sentir do povo do Pará, e consequentemente do povo da Amazônia. 

Com a alegria das melodias e arranjos percussivos, “pra frente”, na linguagem dos músicos, a artista não busca o ufanismo, o fácil, mas o particular que atrai como um imã a identificação coletiva. É para nós, os daqui, que Dona Onete canta, mas sem deixar de lançar uma piscadela simpática a quem queira se aproximar e nos entender.

Em “Bagaceira” não é diferente. O Ver-o-Peso está de volta, tanto na canção-título quanto em “Festa no Ver-o-Peso”, carimbó que traz novamente o Urubu malandro e a Garça namoradeira de “No Meio do Pitiú”, mas agora com convidados: Seu Rato, Dona Barata, Dona Mosca, Dona Formiguinha. Os “bichos escrotos” do rock dos Titãs, na festa de Dona Onete são os personagens que formam o quinteto para animar a festa. Eles saem dos esgotos não para afrontar ninguém, mas para festejar a vida. É feio? Dane-se. A festa é essa, e vai até o amanhecer.

Dona Onete em frente ao Ver-o-peso (Foto: Renato Reis/divulgação)

Aliás, festa é também o centro da canção “Bagaceira”. Outra palavra que tem como uso mais comum o de sinônimo de “esculhambação”, “descompostura”, festa já sem pudores de início de noite, hora em que ninguém mais se importa com nada além de se entregar aos prazeres e excessos de uma noitada.

Dona Onete assume o termo, mas agora com uma perspectiva histórica e de conhecimento de causa. Ela afirma que está associado ao bagaço de cana, mais um resto, descarte, desta vez não de pescados, mas dos engenhos do município de Igarapé-Miri, morada das lutas pela educação da professora de História e Estudos Paraenses e fundadora do Sindicato dos Trabalhadores e das Trabalhadoras em Educação Pública do Pará (Sintepp), além de militante pioneira da Central Única dos Trabalhadores (CUT), em 1983.

Com o novo álbum, volta também a reverência de Onete a mestres importantes e muitas vezes esquecidos da cultura popular do Pará. Se em canções anteriores, Mestre Lucindo, Mestre Cupijó, Mestre Celé e Mestre Verequete já foram mencionados, em “Bagaceira”, na canção “Meu boi campeou”, é a vez de Mestre Piticaia e Mestre Fabico serem homenageados.

Os dois, fundadores do Boi Ponta de Ouro, em Cachoeira do Arari, no Marajó, o primeiro, e do Boi Bumbá Flor de Todo Ano, no bairro do Guamá, em Belém, o segundo, são símbolos da criatividade, resiliência, mas também do descaso com que o poder público ainda trata os sábios guardiões dos nossos saberes. Apesar de reconhecidos em vida, os dois não tiveram o apoio necessário para viver de seus brinquedos populares. Ainda assim, marcaram gerações com seus ensinamentos e criações. Dona Onete não esquece.

Para ela, entre festas e sabores, o que importa não é o “bonito” dos padrões eurocêntricos ou sudestinos, no caso nacional. E, sim, o que pulsa no interior geográfico e subjetivo do mundo rural e urbano da Amazônia, que não pode deixar de incluir os mestres, os cheiros e os encontros da bagaceira. “Onde a festa se anima e ninguém guarda rancor”, como escreveu Verequete.

Belém, bairro da Pedreira, 21 de junho de 2024.

* Abílio Dantas é jornalista e mestre em Linguagens e Saberes da Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA)

Compartilhe
Ler mais sobre
processos artísticos
Ler mais sobre
Opinião Processos artísticos

O fazer literário e seu papel de alteridade: um caminho de conhecimento e compaixão