Foto: Rafa Neddermeyer/Agência Brasil

Nonada, Margem Lab e Encruzilhada iniciam mapeamento cartográfico e narrativo das cozinhas solidárias de Porto Alegre

O Nonada Jornalismo, o Grupo de pesquisa, ensino e extensão Margem_laboratório de narrativas urbanas e o Encruzilhada_lab (PROPUR/UFRGS) estão realizando um mapeamento cartográfico e narrativo das cozinhas solidárias como espaços de convergência social e comunitária em Porto Alegre/RS. A iniciativa integra o GT Espaços de convergência social da Faculdade de Arquitetura da Ufrgs.

A devastação climática que estamos vivendo traz muitas perdas e impactos nas vidas, nas cidades, nas economias. Ainda não há como medir toda sua extensão e gravidade. Mas, desde os primeiros dias de enchentes, já temos visto que iniciativas comunitárias têm ganhado espaço na cidade e criado importantes formas de articulação social.Um destaque são as cozinhas solidárias. Além de somarem-se ao desafio de alimentar as pessoas desabrigadas, elas vêm atuando como espaços de convergência social. As cozinhas formam redes de sustentação e ações urgentes. Especialmente junto aos territórios marginais mais afetados pelas águas, que também são aqueles que possuem uma ancestralidade infinita de perdas em diversas dimensões.

“Resolvemos nos abraçar, nós todos com o Levante [Popular da Juventude] e vamos atuar para ajudar as famílias. E é o que viemos fazendo desde o dia 1º , incansavelmente. Todo mundo fornecendo essas 500 marmitas de manhã, 500 marmitas de noite para essas famílias”, diz Elizabeth Lopes, voluntária na Cozinha Barracão, na vila Cruzeiro.

A curto prazo, enquanto se estrutura uma política de retorno às habitações originais e reassentamento para pessoas afetadas pelas enchentes, processo que deve ter recursos do poder público, mas construído sempre de forma democrática com consulta às populações impactadas, estes espaços de convergência social podem contribuir na manutenção e formação de novas redes comunitárias.

A troca de saberes e a ação coletiva e comunitária vivenciada no cotidiano destes espaços é um apoio importante tanto para que novas redes de vizinhança possam se formar no caso do assentamento de pessoas que não possam retornar às suas moradias, como para fortalecer as redes no entorno de espaços devastados e quem possam ser reestruturados para moradia digna e segura. 

Nesse sentido, nos parece fundamental desenvolver um processo de mapeamento narrativo e cartográfico destes espaços de convergência social, dando testemunho dos modos de organização comunitários que podem pautar o planejamento urbano e territorial desde uma outra racionalidade, mais próxima aos saberes ancestrais que se assentam nas comunidades afrodiaspóricas, originárias e periféricas. 

As Cozinhas Solidárias, mais do que produzir marmitas, suportam uma “pedagogicidade” pré, durante e após o “fogão”. O que vai na panela são produtos agroecológicos, em sua maioria, oriundos de assentamentos ou da agricultura familiar, ou seja, eles ensinam sobre modos solidários e ecológicos de produzir, sobre a necessária articulação entre cidade e campo, bem como questiona a relação com a comida e os hábitos de consumidores. Por pautarem novas  sensibilidades ecológicas, elas, como afirmam Reis da Silva e Dornelles (2022), ensinam a pensar formas de habitar o mundo.

Esse alimento ao chegar nas cozinhas, por sua vez, é preparado, cozido e servido com planejamentos horizontais e coletivos e construção de consensos. Ensina-se, portanto, um modo de organização e de trabalho baseado na colaboração e companheirismo. (Branco, 2020)

Entre uma etapa e outra, e especialmente nos almoços coletivos com todos que trabalharam, “prosas” ou diálogos são fomentados. Esses versam sobre vivências, alegrias e tristezas do desenrolar de vidas, construindo um saber sobre táticas cotidianas do (sobre)viver. Por outro lado, se ensina-aprende sobre saúde e nutrição e sobre conhecimentos tradicionais, como técnicas de plantio, receitas de família e efeitos medicinais de alimentos (Branco, 2020). Na trama dessa sociabilidade, narrativas do trabalho e não-trabalho, do passado e do presente, se entrecruzam, ensinando-aprendendo saberes sobre o ofício das “panelas” e sobre estratégias para lutas futuras do “viver”

Quando a marmita chega nas mãos de vulneráveis, as cozinhas ensinam solidariedade.  Não se trata, contudo, de só sensibilizar sujeitos para identificação com o sofrimento do outro e ou amenizar esse sofrimento, o que inegavelmente, promove gratidão dos dois lados (Branco, 2020). Trata-se de construir uma consciência coletiva mobilizada e transmitida pelos conflitos da vida social  (Souza 2014)

Não se pode, portanto, limitar as cozinhas a lugares de produção de comida, uma demanda básica que deveria ser direitos de todos.  Elas são espaços em que, na vida cotidiana e em especial em situações emergenciais, se ensina-aprende modos de fazer, de conviver, de ser, fortalecendo autonomias e sentimentos de autonomia. (Branco, 2020; Lanchonete, n.d.). São comunidades de aprendizagem que sustentam um caráter pedagógico, ao propor outros modos de existir e ao se opor ao individualismo prevalecente, refletindo sobre as imposições predatórias das concepções colonialistas, modernistas e capitalistas de mundo. (Reis da Silva; Dornelles, 2022; Souza, 2014).

Primeiros resultados

Na primeira cartografia realizada pelos coletivos da Ufrgs, foram espacializados os dados relacionados à renda per capita (IBGE 2010), as cozinhas solidárias, populares e comunitárias cadastradas pelo Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome entre maio e novembro de 2023, e as cozinhas emergenciais que iniciaram seus trabalhos desde os primeiros dias das enchentes de 2024 no RS, cujo mapeamento segue em curso. A cartografia revela que a leste, centro e sul do município, a incidência das cozinhas se concentra majoritariamente em bairros de baixa renda, os quais frequentemente ocupam áreas de borda ou topo de morro com pouco acesso à infraestruturas urbanas, serviços, equipamentos e moradia digna.

Há também a incidência das cozinhas solidárias em bairros mais centrais e consolidados em termos de infraestrutura urbana, e que concentram boa parte da população de rua desatendida em todos os aspectos da vida social e urbana, além de ocupações urbanas em imóveis que não cumprem sua função social. Outras cartografias serão produzidas pelos coletivos e com participação dos participantes das cozinhas, além de outros projetos.

Referências

BRANCO, Bruno. Cozinha Solidária: partilha de alimentos e vivências. MST. 29 jul 2020. Disponível em: https://mst.org.br/2020/07/29/cronica-cozinha-solidaria-partilha-de-alimentos-e-vivencias/

LANCHONETE. Cozinha Eco Afro Afetiva. n.d. Disponível em: https://www.lanchonetelanchonete.com/cozinha-eco-afro-afetiva  

SOUZA, André Ricardo.  Trabalho, solidariedade social e economia solidária. Lua Nova (93) • Dez 2014. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ln/a/3jJ636jKqtVTs6KMq6dF99q/# 

REIS DA SILVA, A. T.; DORNELES, A. B. Pedagogias ecológicas e decoloniais em rede: o movimento CSA como comunidade de aprendizagem. Desenvolvimento e Meio Ambiente. Vol. 59, p. 399-417, jan./jun. 2022. DOI: 10.5380/dma.v59i0.75659 e-ISSN 2176-9109.

RIZOLLO, Anelise; MADRUGA, Samanta Winck. COZINHAS SOLIDÁRIAS, FOME E COMIDA Intersecções do comer em sociedade. Diplomatique.  14 de dezembro de 2022. Disponível em: https://diplomatique.org.br/interseccoes-do-comer-em-sociedade/

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