Antônia Dias Soares em foto para exposição (Foto: Ana Dévora)

Acervos da memória negra exaltam cultura afro-brasileira e resistem à invisibilização

O Subúrbio Ferroviário de Salvador (SFS) já foi palco para um sem-número de epopeias ao longo dos séculos. Foi no Parque São Bartolomeu que ocorreram as batalhas pela independência da Bahia, como também foi onde surgiu o Quilombo do Urubu, chefiado por uma mulher, a combatente Zeferina. Composto por cerca de 600 mil habitantes distribuídos em 22 bairros, a localidade, porém, não possuía espaços de memória em seu território até pouco tempo, relegando ao esquecimento histórias da resistência de um povo negro que viu o tempo passar com poucas chances de fazerem nele algum registro efetivo de si.

Em meados de 2010, a memória da população do SFS encontrou uma forma de preencher suas lacunas a partir da materialidade de objetos artísticos com a criação do Acervo da Laje. O professor, pesquisador e co-fundador do acervo José Eduardo Ferreira Santos tinha acabado de defender sua tese de doutorado em saúde pública pela Universidade Federal da Bahia quando recebeu, do sociólogo membro de sua banca Gey Espinheira, a sugestão de estudar as belezas do território suburbano. 

Ao lado de sua esposa, a co-fundadora Vilma Soares Ferreira Santos, e do fotógrafo Marco Illuminati, o professor reuniu o que viu em uma pesquisa sobre a arte invisibilizada dos subúrbios. “Muito se produz nas periferias. Mas, geralmente tudo vai para o centro, vai para outras partes do Brasil e do mundo e a gente não tem a materialidade dessas obras presentes, até para uma devolutiva para o território”, conta José Eduardo.

(Foto: Acervo da Laje)

Da vontade de reverter o apagamento das expressões e vivências de sua comunidade através do trabalho coletivo, nasceu, financiada com o dinheiro do casal, a casa-museu-escola de três andares que abriga o acervo, situada na rua Sá Oliveira 2, bairro São João do Cabrito, em Salvador.

A organização é uma das dezenas de coletivos e instituições do Brasil voltadas a salvaguardar e preservar acervos de memória negra. A Rede de Acervos Afro-brasileiros, coordenada pela Associação Museu Afro Brasil Emanoel Araújo, por exemplo, contabiliza 63 organizações em 16 estados. O Nonada Jornalismo conversou com lideranças de algumas dessas iniciativas. 

Memórias para Dona Antônia

José Eduardo é ramificação de uma família de retirantes. Seus antepassados realizaram êxodos para chegar até a cidade grande na esperança de se tornarem menos invisíveis. No Subúrbio Ferroviário de Salvador, encontraram moradia e formularam, com o passar do tempo, o senso de pertencimento territorial. Aos poucos, uma história ia se construindo. Munidos de trabalho braçal, os antepassados de José Eduardo, entretanto, estavam longe dos livros, das classes escolares, do beabá que guarda potência para reescrever os capítulos de onde brotarão gerações futuras. Ou seja, construíam suas histórias à medida que as viviam, mas com poucos meios para registrá-las. Coube ao Acervo a travessia, a reapropriação da narrativa por meio da noção de pertença ao território e por meio da coletividade, através do trabalho realizado pelo professor e Vilma junto à comunidade.

“Enquanto a gente não devolver as memórias a quem eles pertencem, aos povos tradicionais, aos povos negros, a gente não vai ter paz”, diz o professor. Em novembro do ano passado, o Acervo da Laje estreou a exposição Memórias para Dona Antônia, tida como a exposição de uma mulher negra não famosa que mais reuniu públicos e artistas. A exibição teve o apoio da Fundação Flávia Abubakir e da Galeria Midlej, que doou molduras para as pinturas. A exposição também teve apoio da Secretaria de Cultura e Turismo da Prefeitura Municipal de Salvador, em diálogo com o secretário Pedro Tourinho.

Antônia Dias Soares era figurinha carimbada nos expedientes do acervo. Sempre à porta, guardando chaves e abençoando quem chegava e quem partia, a mãe de Vilma viveu, em seu tempo, suas próprias epopeias. Lavadeira, merendeira de escola, ama de leite, benzedeira de crianças, Dona Antônia teria entrado na lista de matronas cujas histórias as acompanharam para o túmulo se não fosse pela existência do acervo, que reuniu suas memórias através de pertences e pinturas em uma exposição de curadoria coletiva, com obras elaboradas por mais de 30 artistas.

Acervo da Laje (Foto: divulgação)

Na catalogação dos pertences de Dona Antônia, a contribuição era coletiva: todos os presentes davam palpites sobre o que poderia entrar ou não na exposição. A superstição falou mais alto quando escolheram um de seus vestidos e o deixaram à mostra. As filhas, sempre que passavam pela peça de roupa, viam que o vento batia e o vestido balançava. Como se fosse uma presença transfigurada pela arte, acreditavam que a mãe não havia deixado de estar, mas continuava no lugar de sempre, abençoando.

Os artefatos utilizados na constituição da memória do acervo são inúmeros, de diversos tipos – na luta contra a ausência de iconografia das periferias, tudo que guarda memória é valioso. Vão desde pinturas em azulejos, máscaras talhadas em madeira e recortes de jornais a fotografias, quadros e livros datados de 1847. Para José Eduardo, a fotografia é um dos meios de registro mais importantes, apesar da fragilidade e das adversidades às quais muitas vezes são submetidas diante das condições precarizadas nos subúrbios, onde a chuva, quando vem forte, leva tudo o que vê pela frente, em mais um gesto de violência estrutural contra as periferias.

“Você tinha fotografias guardadas numa caixa e, de repente, tem uma inundação e você perde tudo. Isso é muito comum. E a gente ainda tem poucos registros da nossa infância, por exemplo. É como se fosse um borrão as nossas infâncias. É como se fosse um borrão as nossas adolescências”, relata o professor, a voz embargada. Construindo um acervo a partir da dor e da esperança, o que José Eduardo espera é que as infâncias e adolescências posteriores a de sua geração poderão contar com registros de seus tempos mais remotos de sonhos e inocências. Em vez de borrão, irão encontrar presença.

Com site financiado pelo Fundo Internacional de Ajuda a Instituições Culturais (Hilfsfonds), do Ministério das Relações Exteriores, do Goethe Institut, o Acervo agora registra suas obras e exposições no ambiente digital.

Acervo Zumví (Foto: Sivaldo França)
Do fotógrafo ao acervo

Na metade da década de 1970, em plena ditadura militar, Lázaro Roberto, fascinado com as fotografias de Antônio Olavo que viu pela primeira vez durante uma peça de teatro do grupo do qual fazia parte, aprendeu que ele mesmo era capaz de congelar um momento em um negativo de rolo de filme com o simples clique de uma câmera. Pensou que podia se tornar um fotógrafo. Levou a crença adiante e, vendo que Jeremias, seu colega de grupo, tinha uma câmera profissional, começou a demonstrar interesse na expectativa de que o colega lhe desse dicas de como manusear o instrumento. Não demorou até que Lázaro passasse de ator para fotógrafo no grupo gerido pelo padre Paulo Maria Tonucci.

O Acervo Zumví é fruto do trabalho coletivo de sete fotógrafos cujo objetivo é registrar, por meio de imagens, a cultura afro-brasileira. Criado por Lázaro e pelos fotógrafos Aldemar Marques e Raimundo Monteiro no início da década de 1990, hoje o acervo conta com mais de 30 mil fotografias sobre a cultura afrobaiana. No início deste ano, após 30 anos de existência digital, o acervo ganhou sede no Pelourinho, na rua Gregório de Matos nº 29, em frente à casa do Olodum. O espaço, concedido a partir de iniciativa pública através de permissão para uso de bem imóvel que “celebra o instituto do patrimônio artístico e cultural da Bahia”, sedia exposição de fotografias e promove o desenvolvimento de atividades voltadas para a formação e debate sobre arte, fotografia e memória. No endereço recém inaugurado, o pessoal do Zumví prepara projetos educacionais para inserir o trabalho feito na periferia dentro das escolas.

Nascido e criado no bairro da Fazenda Grande do Retiro, filho de lavadeira e de estivador e filho do meio entre 11 filhos, Lázaro viu o movimento negro crescer em Salvador na medida em que se espalhava pelas capitais do Brasil. Num momento em que os blocos afro se difundiam rapidamente, incentivando a exaltação das raízes do povo negro, tal como o bloco Ilê-Aiyê, Lázaro se deu conta de que estava no meio de uma revolução. “Foi um momento muito importante para mim aquele período de conscientização. Se eu não tivesse passado por esses movimentos, eu teria sido um fotógrafo social, de casamentos, aniversários”, comenta. No ano passado, o Zumví foi presença na 35º Bienal de São Paulo com fotografias do cotidiano negro em Salvador.

No início dos anos 1980, Lázaro passou a trabalhar como impressor gráfico na gráfica gerida por Paulo Tonucci, no Centro de Evangelização da Penha, no bairro da Ribeira. Os anos de aprendizado em fotografia iam de vento em popa. Quando a primeira câmera profissional caiu em seu colo, uma Minolta XG1 50mm todinha para ele, o fotógrafo começou suas expedições pelos movimentos sociais que aconteciam em Salvador. Mas diferente do que se pretende enquanto portador de uma câmera, Lázaro não conseguia ficar invisível. Era um homem negro. Um homem negro com uma câmera. E em Salvador, naquela época, quem portava câmera ou era branco ou era turista.

Irmandade do Rosário dos Pretos, 2012 (Foto de Lázaro Roberto, Acervo Zumví)

Mesmo sendo um ponto em evidência em meio a protestos que chamavam atenção por si só, Lázaro fotografou feiras, festas populares, as passeatas dos favelados e das lavadeiras e registrou, com a sua lente e a sua perspectiva de fotógrafo, a ascensão da cultura negra na Bahia. Na época, fotografava sem ver as imagens. Não tinha dinheiro para fazer a revelação. Anotava os registros no papel. Fazia o seu trabalho solitário sem se dar conta de que era uma exceção num cenário onde o negro estava quase sempre nos piores postos de trabalho. Afinal, Lázaro só queria fotografar.

Os dias de trabalho na solidão e na invisibilidade estavam contados. Havia uma rede de fotógrafos negros em processo de constituição. Depois do encontro com Aldemar Marques e Raimundo Monteiro, os três fotógrafos fundaram o Acervo Zumví. Com o passar do tempo, o acervo de outros fotógrafos, que também traziam registros do cotidiano e do movimento negro, foram se integrando ao escopo do Zumví, que não parou de crescer. Hoje, além dos três fotógrafos fundadores, o acervo também conta com trabalhos de Jônatas Silva, Geremias Mendes, Lúcio Guerreira e Rogério Santos.

Depois que conseguiram comprar um computador e um scanner com a ajuda de um edital do Ministério da Cultura voltado para a preservação de acervos da memória negra, o Acervo virou uma chave. Em 2018, estiveram no Festival Valongo, em São Paulo. Foi a primeira vez que Lázaro andou de avião. Em seguida, passaram a ser procurados por curadores negros e instituições, incluindo o Instituto Moreira Salles. Em 2021, durante a pandemia de coronavírus, foram vencedores da premiação Reconvexo com a exposição virtual Memórias da Resistência Negra, projeto realizado a partir da lei Aldir Blanc. É a memória da periferia atravessando as limitações do território onde foram registradas.

Corpo, reza e movimento

“Quando você escuta um ponto de Umbanda, esse ponto tá ligado a uma questão de ouvir. Tem também uma questão de reza, porque aquele ponto ali é uma forma de você tá praticando um ato religioso. E tem um movimento, dependendo do ritmo, da forma como você escuta”, diz o fotógrafo cearense e criador do Acervo dos Santos Eden Barbosa. O Acervo em processo de construção, fruto da tese de doutorado em Educação do fotógrafo pela Universidade Federal do Ceará, abrange a musicalidade de mais de 300 discos de vinis de umbanda e candomblé. E o número segue aumentando.

O fotógrafo faz uso das práticas de seu trabalho no Memorial da UFC para criar o seu próprio projeto de catalogação. Na universidade, registra sistematicamente qualquer objeto que contenha historicidade, fazendo uso de equipamentos de ponta. Em casa, a digitalização dos vinis depende do improviso: usa caixas de som e o microfone do celular para digitalizar as músicas contidas no chamado “bolachão”. Esse processo tem permitido o acesso público a cantigas de religiões de matriz africana produzidas ainda no século passado. “Além de salvaguardá-lo [o trabalho], também é essencial difundi-lo, para não virar uma relíquia”, explica.

Discos do Acervo dos Santos (Foto: Camila de Almeida)

O processo de categorização dos discos é delicado, mas Eden elucida: existem três tipos principais de discos de canções umbandistas. O etnográfico é aquele disco gravado ao vivo dentro de um terreiro, geralmente produzido por pesquisadores ou gravadoras. Na reprodução da dinâmica de terreiro, integrantes de um terreiro vão até uma gravadora gravar as canções. E existem as pessoas que, inspiradas pelo candomblé, acabam por inserir elementos do gênero em suas produções, como sambistas e forrozeiros. 

Eden cresceu ouvindo samba. Na casa dos pais, o gênero estava prioritariamente na agulha do toca discos, já que pouco se ouvia nas rádios do Ceará. Sambistas como Clara Nunes, Roberto Ribeiro e João Nogueira eram alguns dos mais tocados. “A gente escuta música não pelo entretenimento apenas, mas a gente tenta entender o que vai norteando, o que está transversalizando essa música. É importante a gente saber a história da música, a gente saber a história do intérprete. Esse caráter investigativo também está dentro do meu seio familiar”, diz.

Ainda que venha de uma família branca, a identificação de Eden com a musicalidade negra aconteceu naturalmente. No terreiro que frequenta, o fotógrafo, além de ogã – pessoa responsável, dirigente –, é alabê, aquele que cuida dos toques rituais, da alimentação e da preservação dos instrumentos musicais sagrados do candomblé. “Pra minha formação como ogã, eu digo que alguns desses discos foram cruciais pra facilitar a minha memorização, pra facilitar a questão de ficar ouvindo o toque, facilitar a aprendizagem, porque nem sempre eu podia estar no terreiro de duas ou três vezes na semana”, comenta.

O trabalho que o fotógrafo tem feito de digitalização de discos é divulgado somente no perfil do Acervo dos Santos no Instagram. O incentivo a essa categoria musical no estado é baixo, segundo Eden: o Museu de Imagem e Som (MIS) de Fortaleza, por exemplo, conta com apenas cinco discos de umbanda em seu acervo. Atualmente, Eden encontra resistência nos museus locais do Ceará para fazer exposições dos discos e aproximar a comunidade da cultura musical afro-brasileira. Além de analisar o conteúdo sonoro dos discos, Eden também analisa a composição imagética das capas. Na década de 1960, era comum que muitos discos trouxessem, em suas capas, informações sobre o período em que foram produzidos a partir de suas imagens. A divulgação nas redes já rendeu contato com a Revista Noize e atraiu o interesse de DJ’s internacionais interessados em reproduzir a sonoridade do gênero musical. 

O intuito do Acervo dos Santos é seguir no processo de digitalização dos discos já obtidos e continuar investindo na aquisição de novos materiais, que, a depender do disco, podem chegar até dois mil reais. Por se tratar de um projeto cultural voltado para música e artes visuais, o Acervo está elegível para candidatura em editais de incentivo à cultura voltados para música, memória, culturas digitais e fotografia. Contudo, não é nesse caminho que Eden acredita. “Essa questão do edital é uma estratégia mágica, mas é muito complicada porque ela nos coloca em competição. Eu sou muito mais favorável a criar um orçamento público pra rede ou pra setores museológicos afro do Brasil”, explica. Futuramente, a materialização do acervo em um espaço físico pode facilitar o contato da comunidade com as obras a partir de exposições. 

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Estudante de Jornalismo na UFRGS. Repórter em formação. Gosta de escrever sobre o Outro. Na mesa de cabeceira há sempre um romance. Cearense no Sul.
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