Roda de carimbó na Feira do Açaí (Foto: Savio Maiandeua)

Grupos de Carimbó reivindicam permanência de roda tradicional após reformas da COP 30 em Belém

Os finais de tarde de domingo são marcados por um tradicional encontro da cultura popular em Belém, no Pará. O ponto é a Feira do Açaí, localizada dentro do complexo Ver-o-Peso, lugar em que um grupo formado por jovens carimbozeiros e mestres da cultura reúnem-se semanalmente para celebrar o carimbó pau-e-corda. O som dos tambores ecoa na roda, que cresce em público ao adentrar a noite e costuma se estender até madrugada. A roda recebe grupos diferentes a cada semana, como os Sativos do Mangue e o Carimbó Selvagem, e também já foi palco para a voz de reconhecidos mestres paraenses como Mestre Damasceno e César do Regatão. 

No começo de junho, porém, o batuque não transcorreu da forma como costumava ser. Arames farpados, fitas de isolamento e uma ronda policial foram notados pelos participantes. A Feira do Açaí começou a ser reformada, como um dos pontos turísticos da cidade, em preparação à Conferência das Nações Unidas sobre o Clima, a COP30, que ocorrerá em novembro de 2025. Os trabalhadores das 94 bancas da Feira foram remanejados pela prefeitura para um espaço provisório até a conclusão das obras, mas os artistas, fazedores de cultura e grupos de carimbó ainda não sabem o futuro da roda. 

Em resposta ao Nonada Jornalismo, a Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel) disse que não foi procurada pelos grupos e que para que os artistas se apresentem em espaços públicos, inclusive ao ar livre, é preciso que seja expedida uma licença junto à prefeitura. A obrigatoriedade também vale para o carimbó, patrimônio imaterial registrado pelo Iphan. “Para que toda e qualquer manifestação popular na cidade de Belém se realize em espaço público, precisa ser expedida uma licença, normalmente sem cobrança de taxa, mas que precisa ser feita para que os órgãos de segurança tenham conhecimento”. (Leia a nota no final da matéria).

Assinado por 24 grupos de Carimbó, de diferentes regiões do Pará, um manifesto lançado no meio de junho reivindica um espaço adequado para a Roda de Carimbó da Feira do Açaí. A carta, divulgada nas redes sociais, pede a permanência da manifestação cultural na rua após a reforma, sem obrigatoriedade de licença, assim como o reconhecimento do espaço como um direito da comunidade carimbozeira. A preocupação dos grupos é que não possam retornar ao local, como já aconteceu em outras revitalizações em Belém, segundo a historiadora e escritora Roberta Tavares. 

Roda reúne dezenas de pessoas no centro de Belém (Foto: Savio Maiandeua)

A pesquisadora frequenta a roda desde o surgimento e explica que o encontro já é fruto de repressões anteriores da cultura popular. “Essa roda de carimbó é como uma filha de outras rodas que foram sendo expulsas em Belém, como a que acontecia na Praça da República todo domingo na barraca do mestre Dimmi”, relata. Roberta conta que, quando a manifestação cultural ganhou uma proporção maior, a polícia passou a hostilizar a roda. Ela relembra que no mesmo local, nos sábados do Círio de Nazaré, outra roda tradicional de Carimbó também começou a sofrer a repressão e deixou de acontecer da maneira que era. “Belém tem um histórico de expulsão da cultura popular dos lugares que vão sendo reformados”, analisa. Duas rodas em formato parecido já foram extintas no Mercado de São Brás e no espaço do atual Bar do Parque, próximo ao Theatro da Paz. 

Em 2022, a roda de Carimbó conhecida como Batuque da Praça ganhou o status de Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do município de Belém, após a mobilização de coletivos culturais. Embora o direito de acontecer esteja garantido, nesse caso, as rodas acontecem após uma vez por mês, com horário definido de início e término. Roberta considera que essa já seja uma forma de cerceamento. “Ou seja, há uma repressão de qualquer roda de carimbó que aconteça espontaneamente na Praça da República ou em qualquer espaço público da cidade”, explica a pesquisadora.

Para ela, a importância da Roda de Carimbó da Feira do Açaí é o encontro geracional e também à reverência ao carimbó pau-e-corda, em que os tambores são protagonistas. “Nesta roda, temos um público bem mais jovem, mas os mestres estão lá presentes. Existe um repertório que nós cantamos, com músicas dos mestres do Marajó, de Marapanim, do Salgado e também de muitos desses grupos que já passaram pela Feira do Açaí.” 

Mestre Cuité Marambaia (Foto: divulgação)

Mestre Cuité Marambaia é uma das pessoas que semanalmente canta suas próprias composições na Feira do Açaí. Há mais de três décadas atuando na cultura popular e no ativismo ambiental em Belém, ele entende que o manifesto se posiciona para a salvaguarda do carimbó. A Roda na Feira está relacionada à sua própria trajetória e à história cultural da cidade.  “Quando a gente começou a fazer a roda de carimbó, era no grito mesmo, sem microfone, sem caixa amplificada, com todo mundo cantando. A Feira do Açaí sempre foi um polo de referência aos artistas populares daqui. Muitos dos artistas que temos hoje passaram por lá, poetas, músicos, desenhistas”, recorda Cuité, idealizador do Boi Vagalume que acaba de completar 14 anos. 

Cuité relembra o histórico de repressão das rodas de rua, e reforça que a perseguição é com os tambores. “Fomos para a Feira do Açaí, porque a gente foi expulso de todos os lugares. Chegava a polícia na praça, tinha horário para acabar, e as pessoas sempre tiveram esse preconceito com a festa do tambor. Hoje, a Roda de Carimbó da Feira do Açaí é até mesmo uma referência turística na cidade”, detalha. 

Carimbó: uma história de resistência

O pesquisador Tony Leão, professor da Universidade do Estado do Pará (UEPA), explica que a origem do Carimbó, assim como outras manifestações culturais populares de origem afro-diaspórica, conecta-se com as populações que historicamente se localizam nas margens das cidades, nas periferias. Ele explica que a presença histórica do Carimbó pode ser percebida no interior do Pará, nas regiões do Salgado, Marajó, baixo Tocantins, até nas áreas que eram suburbanas e semirrurais em Belém desde o século XIX. 

Na capital, o enraizamento pode ser percebido em bairros periféricos, ou bairros que foram periféricos até algumas décadas atrás e que hoje passam por processos de gentrificação. Segundo ele, “são nessas regiões que o carimbó e outras formas de populares (batuques em geral, bambiá, bois-bumbás, capoeiragem, grupos carnavalescos, quadrilhas juninas etc.) se materializavam e de lá se expandiram em alguns momentos para o conjunto da cidade.” 

O professor explica que na década de 1970, houve uma ampliação do público consumidor de carimbó, a partir da indústria cultural local, e da veiculação em discos, Rádio e TV. “Mas, antes e depois disso, o carimbó continuou sendo uma manifestação fundamentalmente enraizada nas culturas populares de muitas cidades do interior do estado do Pará e de áreas mais periféricas da cidade. Por isso ele se mantém tanto como uma manifestação popular quanto como uma música popular de veiculação mais midiática, digamos.”

“Isso explica, em parte, que o carimbó é ao mesmo tempo uma manifestação registrada pelo Iphan como patrimônio cultural imaterial desde 2014 (pela luta dos próprios carimbozeiros) e, mesmo assim, muitas vezes receba uma forte carga de preconceito e até perseguição pelos órgãos oficiais que os reprimem em muitos momentos quando rodas de carimbó “espontâneas” ou “não autorizadas” ocorrem no espaço urbano”, explica o professor. 

Roda de carimbó na Feira do Açaí (Foto: Savio Maiandeua)

“A cultura popular viva, mesmo aquela que já foi oficializada e patrimonializada em algum âmbito oficial, sempre vai soar como um ruído ameaçador para os setores elitistas da sociedade. Essa mesma ambivalência explica também o porquê de o carimbó ser registrado desde 2014 pelo Iphan e ainda assim muitos mestres e mestras viverem com muita dificuldade de acesso a financiamentos públicos, editais etc. as vezes até mesmo passando dificuldades para a sobrevivência básica.” 

O professor relembra que no século XIX havia uma legislação no código de conduta de Belém que nominalmente proibia tocar Carimbó durante à noite. “Uma das formas de exigir direitos a estar e viver na cidade é a manifestação do lazer, da festa, das brincadeiras populares nos espaços públicos. Não é à toa que a legislação brasileira está repleta de exemplos de leis e decretos onde a ocupação das ruas, das praças, o festejar, o folgazer dos setores populares é visto como crime, perseguido e policializado”, exemplifica Tony. 

“A gente deseja que a roda de carimbó da feira volte da maneira que ela já existe. Manter esse espaço  faz parte também da salvaguarda do carimbó, que é um patrimônio imaterial registrado e que continua sendo perseguido. A curto prazo, nossa luta é manter aquele espaço, mas ela está conectada com outras lutas maiores de valorização dos mestres e mestras”, finaliza Roberta. Cuité Marambaia completa: “não é porque a gente é da periferia, que não queremos o espaço público dentro da cidade. Ele também nos pertence.”

Futuro da Roda 

Questionada pelo Nonada Jornalismo, a Fundação Cultural do Município de Belém (Fumbel) em nome do atual presidente Jamil Mouzinho, declarou ter recebido com surpresa o manifesto dos artistas do Carimbó. Em nota, o presidente afirmou que a Fundação não foi procurada. Em relação à presença policial, a Fumbel declarou: 

“Sobre o Manifesto do carimbó ou algum tipo de impedimento deles na Feira do Açaí, a FUMBEL não foi procurada.Houve um acontecimento, este ano, na Feira do Açaí, ainda antes da reforma do Ver o Peso, com uma roda de samba que foi interrompida por um órgão de segurança. Reunimos com os coordenadores da roda para que eles pudessem nos explicar o que era que havia ocorrido e o problema foi a falta de documentação.A FUMBEL então instruiu para que eles solicitassem a licença. Esse é o rito a ser seguido. Para que toda e qualquer manifestação popular na cidade de Belém se realize em espaço público, precisa ser expedida uma licença, normalmente seM cobrança de taxa, mas que precisa ser feita para que os órgãos de segurança tenham conhecimento. Desta forma, os fazedores de cultura realizam o evento com apoio da segurança pública, resguardando, inclusive, as pessoas que chegam para participar da roda. Apenas isso.

Segundo a FUMBEL, os organizadores da Roda podem procurar o órgão para o acordo de um lugar provisório. “Precisamos esperar que a reforma finalize para este retorno, mas se os coordenadores quiserem ocupar um espaço provisório, como o Ver-o-Rio, o Boulevard da Gastronomia, temos opções e ele sabem disso, só precisamos sentar e conversar, entender como se pretende organizar e fazer os trâmites para expedir a licença.”

Compartilhe
Ler mais sobre
memória e patrimônio
Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
Clima e cultura Direitos humanos Reportagem

Criador do Gueto HUB, Jean Ferreira alia cultura à Justiça Climática no Pará