Na cerimônia de posse do atual presidente da Fundação Cultural Palmares (FCP), João Jorge Rodrigues, um servidor de carreira do Ministério da Cultura o entregou um tapete estampado com um machado do orixá Xangô. “Me mandaram jogar fora, mas eu escondi porque eu sabia que eles passariam”, ele disse na ocasião. O momento ficou marcado na memória de Deryk Santana, diretor de Políticas Para os Trabalhadores da Cultura, e simboliza, na visão do gestor, a importância dos servidores que evitaram o desmonte completo dos órgãos de cultura durante a extinção da pasta entre 2019 e 2022.
Em entrevista exclusiva ao Nonada Jornalismo, o diretor anunciou que um de seus objetivos na Diretoria, criada no atual governo, é trabalhar em um grande pacto nacional pelo concurso público para a estruturação dos órgãos de gestão da cultura. “A gente precisa fazer um grande pacto pela estruturação desses órgãos de gestão e, principalmente, não contratar as pessoas apenas como auxiliares administrativos. Os municípios têm que ter biblioteca, mas também ter bibliotecário. Tem que ter museus com museólogos, e com profissionais específicos dentro dos espaços culturais.”
Em janeiro deste ano, a Diretoria organizou a 1ª Conferência dos Trabalhadores da Cultura, realizada em São Paulo, e o tema mais debatido pelos profissionais presentes foi o direito à aposentadoria para artistas. Durante a 4ª Conferência Nacional de Cultural (CNC), realizada em Brasília, a previdência também foi tema de discussão nos Grupos de Trabalho. Segundo Deryk, o setor cultural tem 40% de trabalhadores que atuam como MEI, o que significa uma dificuldade para a aposentadoria. As características do trabalho cultural, como a intermitência e o alto grau de trabalho informal, também colaboram para isso.
Um dos caminhos para estruturar a questão trabalhista no setor é a regulamentação de profissões. Sem ser atualizada desde 1978, a legislação em vigor mantém categorias já em desuso no Brasil e não contempla outras, surgidas desde então. Para contribuir na atualização dos trabalhos na cultura, uma consulta pública está aberta até 31 de julho para todo país. A consulta considera apenas as profissões já existentes na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), do Ministério do Trabalho e Emprego.
O diretor Deryk Santana, que é também Turismólogo, Educador e Gestor Cultural, percebe a dificuldade de trabalhadores encontrarem Cnaes adequados na emissão de Notas Fiscais. “Nós estamos propondo e lutando aqui para conseguir uma cadeira da cultura no Comitê Gestor do Simples Nacional”, adianta.
Além disso, a pasta está desenvolvendo uma pesquisa com o IPEA, para atualizar o CBO. “Essa atualização vai ser importante para que a gente minimamente conseguir gerar dados e que as pessoas não precisem recorrer ao MEI no nome do companheiro, do pai, do filho, em razão de não conseguir se desenquadrar e precisar fazer essa movimentação.” Há também o plano de elaborar um Estatuto do Trabalhador da Cultura.
Confira a entrevista completa:
Nonada Jornalismo – Como surge a Diretoria dos Trabalhadores da Cultura?
Deryk Santana – Vou começar um pouco antes. A diretoria de Políticas para os Trabalhadores da Cultura é nova. Foi criada no novo arranjo do Ministério da Cultura, a partir de uma premissa, presente desde a transição e do desenho do Ministério para o presidente Lula, que não daria pra a gente ter uma secretaria específica, mas que seria fundamental debater a questão dos trabalhadores da cultura.
Durante a pandemia, o presidente ficou muito sensibilizado com o nosso setor, pois foi evidente aquilo que sempre falamos: é o primeiro a parar e o último a voltar. Isso explicitou as condições precárias que nós temos, pois vivemos relações de trabalho muito frágeis, baixa remuneração, ausência de garantias e direitos. Nós nos assemelhamos muito mais aos trabalhadores de aplicativo.
O setor entende que, quando tem temporada, todo mundo trabalha, e quando não tem projeto, as pessoas ficam sem [remuneração]. Então, essas demandas começaram a ser mais proeminentes, porque não é apenas sobre quando vão se aposentar, mas é sobre o dia a dia das pessoas. As mulheres, por exemplo, têm filhos sem auxílio, sem crédito, sem possibilidade de licença-maternidade. As pessoas que trabalham nas áreas técnicas, não vão conseguir subir para montar um teatro aos 70 anos de idade.
Além disso, muitas profissões não são reconhecidas, então a gente precisa reconhecer que essas profissões existem, regulamentar elas para formalizar a cadeia produtiva. As pessoas têm que ter algum tipo de formalização para que a gente consiga garantir direitos para elas. Uma das nossas diretrizes é o que chamamos de garantia de direitos. Ela parte tanto do princípio que o trabalhador da cultura é um sujeito de direitos sociais, trabalhistas e previdenciários, que muitas vezes são negados para essas pessoas, quanto que esses trabalhadores são agentes fundamentais na garantia de direitos da população como um todo.
Nonada Jornalismo – No momento, a consulta pública sobre a regulamentação das profissões está aberta até 31 de julho. Sabemos que muitas profissões dos trabalhadores da cultura não são regulamentadas. Do que se trata a consulta? Quais desdobramentos vocês esperam?
Deryk Santana – Tanto na Conferência Temática de Trabalhadores da Cultura, quanto na Quarta Conferência Nacional de Cultura, dois pontos muito citados foram a formação e a questão dos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários. As profissões da cultura são reguladas por três legislações, que é a Lei no 3.857, do ano de 1960, que cria a profissão de músico profissional. Temos a Lei nº 633, que é de 1978, sobre a qual nós falamos na consulta, e que regulamenta artistas e técnicos de espetáculos. A terceira é a Lei nº 6533, chamada de Lei do Artesão. Então, a grande maioria dos trabalhadores, estão inseridos na 6533. Não só a legislação, como o decreto que regulamenta e traz quais as profissões que são marcadas, ou seja, que podem ser regulamentadas, e também emitir nota contratual, a partir da relação dos sindicatos, como os SATEDs, que emitem DRTs.
Essas profissões são apenas aquelas que existiam em 1978. Esse decreto nunca foi atualizado. A nossa ideia é, a partir disso, colocar profissões que já são reconhecidas, que já têm pelo menos o CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), para que a gente consiga ampliar a gama de proteção que nós temos hoje dentro do nosso ordenamento jurídico. A ideia é revisar a legislação da década de 70, da época da ditadura, e conseguir atualizá-la para trazer profissões que surgiram nesses mais de 30 anos que se passaram de lá até aqui. É ampliar a capilaridade para que mais trabalhadores consigam ser inseridos.
Nós conseguimos fazer um debate muito interessante com a Sociedade Civil Organizada, os sindicatos, as cooperativas, as associações, pois eles têm mais facilidade de chegar até a gente. Nós temos, inclusive, relação com a maior parte dos sindicatos do país, os de música, dança, teatro. Com a consulta pública, nós vamos chegar em quem não é organizado, quem não faz parte dos sindicatos, quem não faz parte de uma cooperativa, quem não consegue ser delegado na Conferência Nacional de Cultura. A ideia é conseguir alcançar esses trabalhadores que não se veem representados hoje dentro dessas instituições.
Nonada Jornalismo – Como está o debate sobre os Cnaes do MEI? Muitas vezes, profissionais da cultura precisam recorrer a certos malabarismos na hora de emitir nota, por não encontrarem atribuições equivalentes às suas funções.
Deryk Santana – Dentro do setor cultural, temos em torno de 36 a 40% de MEIs mapeados. São muitas as pessoas que usam outros Cnaes para conseguirem se formalizar, mas que não têm necessariamente a ver com a cultura. Primeiro, temos o debate da ampliação do teto do MEI, que já é o mesmo há quase dez anos. Aqui já fizemos um parecer dos ativos e estamos pautando o reajuste. Isso é um ponto fundamental, pois significa aumentar a capacidade de movimentação dentro do MEI.
A gente vê que se tem dificuldade de encontrar os Cnaes da cultura dentro do país. Então, a partir disso, nós estamos propondo e lutando aqui para conseguir uma cadeira da cultura no Comitê Gestor do Simples Nacional, que modera os os Cnaes podem ou não entrar no MEI. Nós estamos tratando isso no setor público. Além disso, em parceria com a Sociedade Civil, nós estamos desenvolvendo uma pesquisa com o IPEA, para atualizar o CBO (Classificação Brasileira de Ocupações), que entra no quadro anexo da Lei nº.6533.
Essa atualização vai ser importante para que a gente minimamente conseguir gerar dados e que as pessoas não precisem recorrer ao MEI no nome do companheiro, do pai, do filho, em razão de não conseguir se desenquadrar e precisar fazer essa movimentação. Nós estamos fazendo um estudo para entender quais são os Cnaes que a gente precisaria criar, mas a Receita é mais reticente quanto a criação de novos Cnaes. Há um debate maior sobre ampliar as descrições já existentes.
Nonada Jornalismo – O direito à aposentadoria para artistas foi destaque na 1ª Conferência dos Trabalhadores da Cultura, realizada em São Paulo, em janeiro deste ano. Quais desdobramentos já podem ser notados dessa reunião? Já é possível mensurar impactos da Conferência?
Deryk Santana – Para entendermos quem se aposenta enquanto trabalhador da cultura, precisamos entender quem é o trabalhador da cultura. Mapear o setor é fundamental. Nós estamos desenvolvendo um acordo de cooperação técnica, tanto com o Ministério do Trabalho e Emprego, quanto com o Ministério da Previdência, para a gente estruturar um tipo de um tipo de legislação.
São duas frentes, uma junto ao senador Paulo Paim, que está construindo o Estatuto dos Trabalhadores, onde escreveremos um capítulo específico sobre os trabalhadores da cultura. Outra frente é junto à deputada Erika Kokay, em que temos a ideia de construir um Estatuto do Trabalhador da Cultura. Já fizemos pesquisas internacionais sobre isso em 11 países para mandar — nós já temos 5, e faltam 6 que ainda estão a enviar. Estamos analisando como é que eles regulamentam essas profissões da cultura fora do país. Em Portugal, por exemplo, a legislação deles é muito recente. A lei de 2020 foi regulamentada no ano passado, em 2023.
Outro ponto que foi muito citado na 4ª CNC e na Conferência Temática, que já estamos dando segmento, é a formação. Nós estamos aí com a nossa plataforma Escult funcionando. O primeiro curso disponibilizado é sobre acessibilidade cultural. A gente não tinha um curso melhor para a gente começar, porque todos os editais exigem acessibilidade, mas que lugares a gente ensina a fazer acessibilidade cultural? Há mais de 1.200 estudantes inscritos para o curso. Nós temos mais de 26 cursos contratados, sem contar os que nós vamos desenvolver pela equipe do MinC no ano que vem .
A Consulta Pública também é uma resposta a essas demandas. Os sindicatos, principalmente, nos cobravam a atualização desse quadro das profissões, porque são eles que lidam diariamente com isso — quem pode ter ou não o DRT, quem pode ou não se encaixar na 6533.
Nonada Jornalismo – Nos últimos meses, nós recebemos diversos relatos de pareceristas que atuam em Editais de Fomento à Cultura, como a Lei Paulo Gustavo, PNAB, e a própria Lei Rouanet. Esses profissionais, de diversas regiões do país, estão notando uma falta de preparo das secretarias municipais e estaduais para execução da lei, assim como uma precarização do trabalho (carga horária extensa; atraso nos pagamentos). Vocês estão cientes dessas demandas da categoria? O que pode ser feito?
Deryk Santana – A questão do parecerista, pra gente, é bem ampla. Antes a maioria dos pareceristas trabalhavam em nível federal, nos estados e nas capitais. Hoje, nós temos demanda de pareceristas em quase todos os municípios. E em quase todos os municípios tem recurso chegando, sendo o edital o instrumento preferencial.
Então, como formar uma rede maior de pareceristas? Dentro desses 26 cursos que nós vamos lançar na Escult, terá o de parecerista de projetos. Precisamos debater também se parecerista é ocupação ou atividade econômica. Discutir se seria a questão de criarmos um CBO específico, pois um CBO existe.
Existe, inclusive, ocupação, mas ela é ampla. Ela não é parecerista de projetos culturais, apenas parecerista de forma geral. Existe uma demanda para gente criar um CBO no final específico dos pareceristas. A partir disso, se a gente consegue formar eles, reconhecer a profissão, a gente já consegue avançar bastante. Mas, realmente, o caminho concreto para que a gente consiga ter carga horária, pagar pisos, atender todas essas demandas é através da regulamentação. Não é nem o reconhecimento. Para a regulamentação, tecnicamente, precisamos elaborar um projeto de lei.
Agora a demanda por pareceristas é muito grande, então a gente precisa avançar. Eu recebi, inclusive, cartas. Os pareceristas começaram a fazer as movimentações, mandando carta pra gente, organizando uma reunião pra eles, pra que a gente consiga debater também com esse segmento.
Nonada Jornalismo – Os trabalhadores da cultura têm muitas especificidades dependendo da área de atuação, inclusive na luta por uma aposentadoria digna. Poderia comentar sobre isso e a necessidade de seguridade social?
Deryk Santana – A seguridade social é um amplo debate que nós estamos fazendo, que é o estatuto, que é o reconhecimento dos mestres. Temos uma dívida de conseguir abarcar essas pessoas que contribuíram a vida inteira com a cultura nacional e que, no final da vida, não tem condições.
Outra frente que nós estamos lidando é com as casas de artistas, que hoje nós temos só duas no país, a do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Nós estamos estudando como que a gente consegue estruturar essas casas também em outros espaços, se é um caminho mais viável. Se a gente pensar que existe uma geração que vai entrar agora na rede de proteção social, o INSS, nós temos um tanto de gente que já passou, que já está na hora de aposentar e não se aposentou. Nós estamos pensando em como criar instrumentos que de financiamento da política de aposentador de seguridade, para além da contribuição própria dos trabalhadores da cultura.
Há a possibilidade de utilizar os direitos autorais ou a possibilidade de criação de uma regulamentação parecida com a Condecine, taxa que todas as empresas de audiovisual pagam. Quando você compra um ingresso, há uma taxa de Condecine. Comerciais de TV também. Talvez possamos criar uma taxa para que todos os ingressos vendidos no país, possam ter uma contribuição pequena para aposentadoria desses trabalhadores que não vão conseguir aposentar só com contribuição própria.
Estamos pensando em outras fontes também de recursos para que seja possível bancar isso. O MEI é deficitário por si só. Como a taxa é reduzida, exige uma contrapartida do governo para a conta fechar. Então, como 40% do nosso setor é MEI, uma grande parcela de trabalhadores terá dificuldade para se aposentar, gerando déficit na Previdência.
A ideia é que a gente consiga diminuir o déficit para aumentar a capacidade de seguridade social. Muitas das nossas profissões tem intermitência. Quem trabalha com artesanato, com elementos naturais, com escama de peixe, ou determinado tipo de frutos, não é toda época do ano que se pode colher.
Nonada Jornalismo – Quais são as prioridades da Diretoria de Políticas para os Trabalhadores da Cultura para o segundo semestre?
Deryk Santana – A edição do Decreto, a finalização da consulta para a atualização da Lei nº 6533. Nós estamos também fazendo uma estruturação da política voltada para cooperativas, associações, redes e outras formas de trabalho não precarizadas. Temos debatido aqui, cooperativismo de plataforma, associação, até feito um debate com o PNDES sobre a infração dessas cooperativas também. Então, nós estamos investindo bastante nesse movimento, em parceria, inclusive, com o Ministério do Trabalho e Emprego, na estruturação de redes produtivas.
Também teremos o lançamento de novos cursos dentro do Escult, inclusive o de Pareceristas. A outra questão que nós estamos fazendo também é o desenvolvimento da política de crédito e microcrédito para trabalhadores da cultura. Vamos lançar no segundo semestre um programa de incubadoras e aceleradoras.
Outra estratégia de regulamentação e aumento da renda é a aprovação do novo Vale Cultura. Queremos retomar o incentivo fiscal que está parado desde 2017 e aumentar o valor do vale que é o mesmo desde 2012, quando o programa foi criado.
Nonada Jornalismo – E mais a longo prazo?
Deryk Santana – Após as eleições municipais, trabalharemos em um grande pacto nacional pelo concurso público e pela estruturação dos órgãos de gestão da cultura. Duas coisas importantes fizeram com que a política cultural não se desmanchasse no último governo. A primeira foi a sociedade civil organizada, mobilizada, politizada, através das conferências, conselhos, e processos como a LPG e LAB. O segundo ponto é o servidor de carreira, porque aqui quando nós entramos no Ministério, muita gente que contava que tinha escondido coisas, que o antigo governo quis apagar.
A posse da Palmares foi muito marcante. Um servidor entregou para João Jorge o tapete com o símbolo do machado de Xangô e falou assim: “me mandaram jogar fora, mas eu escondi porque eu sabia que eles passariam”. Então, ter servidores de carreira é fundamental para que não se desmanche a política. A gente precisa fazer um grande pacto pela estruturação desses órgãos de gestão e, principalmente, não contratar todo mundo como auxiliar administrativo, não.
Os municípios têm que ter biblioteca, mas também tem que ter bibliotecário. Tem que ter museus com museólogos, e com profissionais específicos dentro dos espaços culturais. Ter uma expertise instalada dentro das secretarias de cultura é fundamental para a gente.