Um café sendo passado, o sopão sendo servido e muitas conversas ao redor do fogão: esses são alguns dos sons que compõem o Sonário de Cozinhas-Território, plataforma que apresenta um mapeamento cartográfico e narrativo de cozinhas solidárias ligadas a movimentos sociais em Porto Alegre.
O projeto é uma iniciativa do Margem_Laboratório de Narrativas Urbanas, do Laboratório Encruzilhada (ambos integrantes do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional) e do Nonada Jornalismo, Organização da Sociedade Civil que atua na área do jornalismo e da cultura.
Alimentando milhares de pessoas só na capital gaúcha, as cozinhas solidárias vêm fazendo a diferença na emergência climática que vive o estado do Rio Grande do Sul. Além de somarem-se ao desafio de alimentar as pessoas desabrigadas, elas vêm atuando como espaços de convergência social, formando redes de sustentação e ações urgentes.
As iniciativas emergem em territórios precarizados pelo Estado, áreas que foram mais afetadas pelas águas e com uma ancestralidade infinita de perdas em diversas dimensões. Mesmo após as águas baixarem, o trabalho segue, uma vez que muitas pessoas nos territórios perderam o emprego ou estão em situação de insegurança alimentar.
O Sonário de Cozinhas-Território busca dar passagens aos testemunhos recolhidos em seis cozinhas vinculadas a movimentos sociais: Cozinha Barracão, vinculada ao Levante da Juventude; Cozinha Azenha e do Lami, vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST/RS); Cozinha Art&Mãe e Cozinha das Pretas, vinculadas ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM/RS); e Cozinha Vida Nova, vinculada ao movimento União Nacional por Moradia Popular (UNMP/RS).
O mapeamento foi realizado a partir de rodas de conversa nos territórios das cozinhas acionadas pela pergunta “como você chegou nessa cozinha?” A maioria dos relatos tramam memórias de vida que caracterizam a desassistência do Estado, e que foram ensinando táticas de sobrevivência e resistência em territórios historicamente marcados por desigualdades. Emergem também encontros, cotidianos e redes relacionadas ao saber/fazer da cozinha, que estruturam e garantem sua atuação como espaço de convergência social.
As cozinhas solidárias, mais do que produzir marmitas, suportam uma “pedagogicidade” pré, durante e após o “fogão”. O que vai na panela são produtos agroecológicos, em sua maioria, oriundos de assentamentos ou da agricultura familiar, ou seja, eles ensinam sobre modos solidários e ecológicos de produzir, sobre a necessária articulação entre cidade e campo, bem como questiona a relação com a comida e os hábitos de consumidores.
Entre uma etapa e outra, e especialmente nos almoços coletivos com todos que trabalharam, “prosas” ou diálogos são fomentados. Esses versam sobre vivências, alegrias e tristezas do desenrolar de vidas, construindo um saber sobre táticas cotidianas do (sobre)viver. Por outro lado, se ensina-aprende sobre saúde e nutrição e sobre conhecimentos tradicionais, como técnicas de plantio, receitas de família e efeitos medicinais de alimentos. Na trama dessa sociabilidade, narrativas do trabalho e não-trabalho, do passado e do presente, se entrecruzam, ensinando-aprendendo saberes sobre o ofício das “panelas” e sobre estratégias para lutas futuras do “viver”.
Cartografias
Além do sonário, o projeto apresenta ainda um mapeamento cartográfico de cozinhas sediadas na cidade de Porto Alegre, elaborado pelo Margem Lab e pelo Laboratório Encruzilhada. A pesquisa identificou informações como a maior incidência das cozinhas solidárias em bairros de baixa renda, que frequentemente ocupam áreas de borda ou topo de morro com pouco acesso a infraestruturas urbanas, serviços, equipamentos e moradia digna.
A sobreposição dos dados das cozinhas aos dados de raça coletados pelo IBGE evidencia que a concentração das cozinhas coincide com as áreas de maior concentração de pessoas negras, como à leste e à oeste. À sul, destaca-se a Restinga resultado de uma das maiores remoções urbanas do centro para as margens da cidade durante os anos 1970, com forte recorte racial.
Nos territórios majoritariamente ocupados pela negritude, também se concentram a falta de infraestrutura urbana e o policiamento intensivo, o que revela um forte retrato das desigualdades sociais e do racismo estrutural das políticas urbanas e sugere a emergência das cozinhas como um movimento de resistência a isso.
O mapeamento cartográfico foi realizado a partir de informações de 2023 inscritas no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, onde constam cozinhas solidárias, populares e comunitárias, e ao levantamento de cozinhas emergentes com a enchente de 2004, ainda em andamento.
Em relação ao saneamento básico, a pesquisa observa que o sistema de tratamento de esgotos em Porto Alegre evidencia grandes áreas desassistidas, com destaque para o leste e sul da cidade. À leste é possível reconhecer nucleações de cozinhas situadas em áreas que vão de 5% a 20% com esgoto a céu aberto, grande parte em áreas de morro ou encosta, além de próximas aos pequenos arroios urbanos. Outros dados como mobilidade, existência de hortas urbanas e áreas de risco geológico também constam no mapeamento.
Em uma segunda etapa do projeto, o coletivo Margem LAB realizou apoio técnico à consolidação das cozinhas como equipamentos urbanos de convergência social. O objetivo é compor um conjunto de diretrizes que possam subsidiar o reconhecimento e a efetivação das cozinhas como equipamentos urbanos de bairros, capazes de fortalecer redes de vizinhança, lutas pela moradia popular e relações urbano-rurais vinculadas à soberania alimentar.