Ilustração: Ana Cabral Rodrigues e Flávia de Sousa Araújo

Sonário das cozinhas: plataforma traz mapas e biblioteca sonora de cozinhas solidárias em Porto Alegre

Um café sendo passado, o sopão sendo servido e muitas conversas ao redor do fogão: esses são alguns dos sons que compõem o Sonário de Cozinhas-Território, plataforma que apresenta um mapeamento cartográfico e narrativo de cozinhas solidárias ligadas a movimentos sociais em Porto Alegre. 

O projeto é uma iniciativa do Margem_Laboratório de Narrativas Urbanas, do Laboratório Encruzilhada (ambos integrantes do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional) e do Nonada Jornalismo, Organização da Sociedade Civil que atua na área do jornalismo e da cultura.

Alimentando milhares de pessoas só na capital gaúcha, as cozinhas solidárias vêm fazendo a diferença na emergência climática que vive o estado do Rio Grande do Sul. Além de somarem-se ao desafio de alimentar as pessoas desabrigadas, elas vêm atuando como espaços de convergência social, formando redes de sustentação e ações urgentes. 

As iniciativas emergem em territórios precarizados pelo Estado, áreas que foram mais afetadas pelas águas e com uma ancestralidade infinita de perdas em diversas dimensões. Mesmo após as águas baixarem, o trabalho segue, uma vez que muitas pessoas nos territórios perderam o emprego ou estão em situação de insegurança alimentar.

O Sonário de Cozinhas-Território busca dar passagens aos testemunhos recolhidos em seis cozinhas vinculadas a movimentos sociais: Cozinha Barracão, vinculada ao Levante da Juventude; Cozinha Azenha e do Lami, vinculadas ao Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST/RS); Cozinha Art&Mãe e Cozinha das Pretas, vinculadas ao Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM/RS); e Cozinha Vida Nova, vinculada ao movimento União Nacional por Moradia Popular (UNMP/RS).

Ilustração: Ana Cabral Rodrigues e Flávia de Sousa Araújo

O mapeamento foi realizado a partir de rodas de conversa nos territórios das cozinhas acionadas pela pergunta “como você chegou nessa cozinha?” A maioria dos relatos tramam memórias de vida que caracterizam a desassistência do Estado, e que foram ensinando táticas de sobrevivência e resistência em territórios historicamente marcados por desigualdades. Emergem também encontros, cotidianos e redes relacionadas ao saber/fazer da cozinha, que estruturam e garantem sua atuação como espaço de convergência social.

As cozinhas solidárias, mais do que produzir marmitas, suportam uma “pedagogicidade” pré, durante e após o “fogão”. O que vai na panela são produtos agroecológicos, em sua maioria, oriundos de assentamentos ou da agricultura familiar, ou seja, eles ensinam sobre modos solidários e ecológicos de produzir, sobre a necessária articulação entre cidade e campo, bem como questiona a relação com a comida e os hábitos de consumidores.

Entre uma etapa e outra, e especialmente nos almoços coletivos com todos que trabalharam, “prosas” ou diálogos são fomentados. Esses versam sobre vivências, alegrias e tristezas do desenrolar de vidas, construindo um saber sobre táticas cotidianas do (sobre)viver. Por outro lado, se ensina-aprende sobre saúde e nutrição e sobre conhecimentos tradicionais, como técnicas de plantio, receitas de família e efeitos medicinais de alimentos. Na trama dessa sociabilidade, narrativas do trabalho e não-trabalho, do passado e do presente, se entrecruzam, ensinando-aprendendo saberes sobre o ofício das “panelas” e sobre estratégias para lutas futuras do “viver”.

Cartografias

Além do sonário, o projeto apresenta ainda um mapeamento cartográfico de cozinhas sediadas na cidade de Porto Alegre, elaborado pelo Margem Lab e pelo Laboratório Encruzilhada. A pesquisa identificou informações como a maior incidência das cozinhas solidárias em bairros de baixa renda, que frequentemente ocupam áreas de borda ou topo de morro com pouco acesso a infraestruturas urbanas, serviços, equipamentos e moradia digna.

A sobreposição dos dados das cozinhas aos dados de raça coletados pelo IBGE evidencia que a concentração das cozinhas coincide com as áreas de maior concentração de pessoas negras, como à leste  e à oeste. À sul, destaca-se a Restinga resultado de uma das maiores remoções urbanas do centro para as margens da cidade durante os anos 1970, com forte recorte racial.

Fonte: Acervo Margem_lab e Encruzilhada, maio de 2024.

Nos territórios majoritariamente ocupados pela negritude, também se concentram a falta de infraestrutura urbana e o policiamento intensivo, o que revela um forte retrato das desigualdades sociais e do racismo estrutural das políticas urbanas e sugere a emergência das cozinhas como um movimento de resistência a isso.

O mapeamento cartográfico foi realizado a partir de informações de 2023 inscritas no Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, onde constam cozinhas solidárias, populares e comunitárias, e ao levantamento de cozinhas emergentes com a enchente de 2004, ainda em andamento. 

Em relação ao saneamento básico, a pesquisa observa que o sistema de tratamento de esgotos em Porto Alegre evidencia grandes áreas desassistidas, com destaque para o leste e sul da cidade. À leste é possível reconhecer nucleações de cozinhas situadas em áreas que vão de 5% a 20% com esgoto a céu aberto, grande parte em áreas de morro ou encosta, além de próximas aos pequenos arroios urbanos. Outros dados como mobilidade, existência de hortas urbanas e áreas de risco geológico também constam no mapeamento. 

Em uma segunda etapa do projeto, o coletivo Margem LAB realizou apoio técnico à consolidação das cozinhas como equipamentos urbanos de convergência social. O objetivo é compor um conjunto de diretrizes que possam subsidiar o reconhecimento e a efetivação das cozinhas como equipamentos urbanos de bairros, capazes de fortalecer redes de vizinhança, lutas pela moradia popular e relações urbano-rurais vinculadas à soberania alimentar.

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