Emilene Lopes, especial para Nonada Jornalismo*
Recife e Olinda (PE) —“Essa é a escola que só brinca”, era o que Letícia Rameh escutava de alguns vizinhos que passavam na frente do Colégio Curso Paulo Freire, do qual era diretora e idealizadora. Nos anos 90, a doutora em Educação Popular e apaixonada pela pedagogia freireana, criou uma escola “laboratório”, como ela diz. Localizada na vila de Ouro Preto, em Olinda (PE), a escola atendia crianças do primeiro ao quinto ano do Ensino Fundamental e também recebia estágio de alunas do curso de magistério.
O nome do educador pernambucano não estava só na fachada, também fazia parte da proposta pedagógica da instituição. Patrono da Educação Brasileira, Paulo Freire defendia que os aspectos culturais de educadores e educandos devem ser levados em consideração para um aprendizado mais rico e libertador. Por exemplo: aprender a ler a partir de palavras que você usa no dia a dia, conhecer um autor ou autora que teve uma vivência parecida com a sua e entender o contexto daquela típica festa regional.
Alinhada com a visão de Paulo Freire, Letícia proporcionava um ambiente escolar pouco comum para a época, com aprendizado interdisciplinar por meio de aula-passeio, brincadeiras, desenhos e exercícios de escrita. Também não tinha “prova” e sim um exercício de verificação para testar o conhecimento dos alunos. A cultura era um ponto fundamental do trabalho com os alunos, e no seu sentido mais amplo: desde visitas a museus até o contato com diferentes modos de vida.
Para Letícia, trabalhar cultura na sala de aula significa oportunizar encontros e experiências. Por isso, com frequência organizava aula-passeio em diferentes lugares: fábrica de sorvete, oficina de reciclagem, creche, comunidades indígenas, lar de idosos e feira do livro. As crianças eram estimuladas a criar textos e a realizar atividades práticas após as visitas.
Educação com espaço para diálogo
A educadora lembra que um dia, em uma visita escolar ao atelier do artista plástico Francisco Brennand, uma menina de cinco anos levantou a mão e fez a seguinte pergunta:
– Por que o senhor faz as mulheres com esse ‘peitão’?
Intrigado, ele questionou a criança:
– Você já viu sua mãe nua?
Ela respondeu:
– Já! Mas ela não tem esses ‘peitão’.
A pergunta representa mais que a curiosidade infantil com as obras que acabara de conhecer. Ela mostra uma criança que se sente livre para questionar adultos, professores, artistas… o mundo. Mesmo surpresa com a pergunta, Letícia Rameh, que acompanhava os estudantes no passeio, não interrompeu ou pediu que a aluna se calasse. Ela sabia que aquele comportamento curioso e questionador era o resultado do trabalho do Colégio Curso Paulo Freire.
A prática freireana pressupõe aulas com muito diálogo e espaço para desenvolver uma visão crítica de si mesmo e do seu entorno. E isso começa pelo professor, como destaca Targélia de Souza Albuquerque, sócia e fundadora do Centro Paulo Freire, Estudos e Pesquisas. “Ele precisa se situar no mundo, entender quem é e se abrir para conhecer o outro. Quem é esse ser que está em relação de aprendizagem comigo?”, explica Targélia. Depois, buscar conhecer o seu aluno e o contexto cultural no qual está inserido. O que ele traz da classe dominante ou do opressor? O que fazer para ele reconhecer as opressões e não reproduzi-las? São alguns questionamentos desafiadores que o educador pode fazer sobre si e seu trabalho com os educandos.
“É um diálogo constante, não é um monólogo. Na educação tradicional só quem fala é o professor, o aluno é o sujeito passivo e o professor o ativo”, explica Letícia. “A pedagogia de Paulo Freire deixa as crianças curiosas. Agora, se preparem, pois elas vão fazer perguntas.” Em média, 70 estudantes eram matriculados por ano no Colégio Curso Paulo Freire. A maioria era filho de artistas, psicólogos e pedagogos que queriam uma nova forma de educação. A instituição de ensino ficou aberta de 1994 a 1997, ano em que o educador faleceu. Letícia guarda os trabalhos dos alunos até hoje e exibe com orgulho para exemplificar sua prática pedagógica.
Movimento de Cultura Popular
Letícia Rameh e Paulo Freire cresceram no mesmo bairro, o Casa Amarela, em Recife. Mas ela só foi conhecer as ideias do educador quando ele foi preso durante a ditadura militar. Desde então, a pedagogia freireana norteou o trabalho de Letícia, que trocava correspondências com Paulo e teve a sua “benção” para homenageá-lo no nome da escola. Infelizmente, ele não chegou a visitar o Colégio Curso Paulo Freire.
Depois da morte de Paulo Freire, Letícia decidiu se dedicar aos estudos de Cultura e Educação Popular, que resultaram na sua tese de doutorado e no livro “Movimento de Cultura Popular: impactos na sociedade” (2008). O Movimento de Cultura Popular (MCP) foi criado em Recife, em 1960, por intelectuais, artistas, políticos e educadores, Paulo Freire estava entre eles. A ideia era oferecer educação e cultura para a população pobre da cidade, mas rapidamente se espalhou para o interior do Estado. As atividades auxiliavam na alfabetização de adultos e incentivavam a postura crítica e participativa das pessoas por aulas transmitidas pela Rádio Clube de Pernambuco e pela Rádio Continental.
O MCP teve as atividades interrompidas pelo regime militar, em 1964, mas quatro anos foi tempo suficiente para deixar um legado para a educação e a cultura brasileira. A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire, nasceu no MCP. Assim como novas linguagens do teatro e do cinema, como o Teatro do Oprimido, de Augusto Boal, e a documentação da realidade social, como “Cabra Marcado para Morrer”, filme de Eduardo Coutinho. Todos os trabalhos têm em comum o desejo de liberdade das classes oprimidas por meio da independência intelectual e consciência social.
Educação e Cultura para a libertação
“Se a gente não tiver Paulo Freire, a gente não faz nada, não trabalha”, afirma Carlos Tomaz, um dos professores do Centro de Atendimento Socioeducativo (Case), em Recife. A instituição recebe jovens em conflito com a lei, de 13 a 21 anos. A fala do professor é confirmada por Lourdes Paz, coordenadora pedagógica da escola anexa ao Case. Segundo ela, o professor tem que estar aberto para conhecer a aluna e todo o seu contexto sociocultural, dando espaço para que ela se expresse, participe das atividades e progrida na escolarização.
As jovens internadas no Case seguem o mesmo currículo escolar da rede estadual de Pernambuco e estão vinculadas à uma escola regular. O trabalho desenvolvido pelos professores sempre tenta incluir atividades culturais, que permitam a identificação, reflexão e, claro, o aprendizado.
Lourdes afirma que as aulas são desenvolvidas levando em conta a cultura local e que buscam cumprir a Lei 10.639, que exige o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas. Este ano, por exemplo, os professores trabalharam a história de Lia de Itamaracá, artista, cirandeira e patrimônio cultural vivo de Pernambuco. Fizeram cartazes, dançaram a ciranda e conheceram as músicas de Lia. “Também já aproveitamos para fazer a identificação das alunas, mostrando que, assim como Lia, elas também podem conseguir ter seu talento reconhecido”, explica Lourdes.
Cada conquista e mudança de vida após a passagem pelo Case é comemorado pelos educadores, ainda que fora da internação, muitos não deem seguimento aos estudos ou não consigam um trabalho formal. “A gente planta pequenas sementes dentro delas. Não sabemos exatamente como vão florescer, mas fazemos um trabalho com muita atenção e planejamento”, afirma Lourdes.
A educadora lembra com satisfação o relato de uma aluna que, mesmo privada de liberdade, dizia sentir mais liberdade na escola do Case do que na escola “do mundão”. Nada parece cumprir mais o objetivo da pedagogia de Paulo Freire.
Emilene Lopes
Emilene Lopes é uma jornalista gaúcha com experiência em reportagens, produção de conteúdo para redes sociais, edição de vídeos e assessoria de imprensa. Atualmente, vive como repórter freelancer e é responsável pelo projeto de jornalismo local Retratos de Guaíba. A plataforma resgata as memórias e conta as histórias do presente, promovendo um diálogo sobre a identidade e cultura dos guaibenses. Vencedora do Prêmio Paulo Freire de Jornalismo 2022, na categoria Mídias Digitais. Em 2019, produziu o documentário “Histórias do Cine Gomes Jardim”.