*Esta reportagem foi realizada com o apoio do Pulitzer Center
Marisa Campos, especial para o Nonada Jornalismo
Pelotas (RS) — Era mais um dos muitos dias de chuva de maio quando Seu Pedro ouviu um barulho muito alto próximo da rua onde mora, em Pelotas, no Rio Grande do Sul. Ele achou que era a força da água invadindo as ruas para devastar as casas e barracos do local, já que a região litorânea da cidade já havia alagado devido às fortes chuvas que atingiram o estado.
Quando correu para uma figueira e mais perto de onde vinha o barulho, ele viu um cano em cima do muro que separa um condomínio de luxo do seu bairro. O cano drenava a água que estava entrando no condomínio com a cheia do Canal São Gonçalo e direcionava o fluxo para dentro do território do Passo dos Negros.
“Eu fui até o muro e tinha um cara, ele estava lá dando risada”, conta. Ele relembra que tentou falar com a pessoa para perguntar o motivo da bomba, mas foi repreendido pelo homem. Foi seu filho quem informou o que estava acontecendo para um vereador e logo a polícia compareceu no local.
Pedro Gonçalves, 76 anos, pai de três filhos, ex-funcionário do engenho que margeia a região, é atualmente o morador mais antigo do Passo dos Negros. Sua casa está localizada no Corredor das Tropas, caminho por onde passavam os tropeiros em direção às charqueadas.
Vizinho ao bairro Navegantes, às margens do canal São Gonçalo, a história do Passo dos Negros começa no século 19, devido à massiva passagem de pessoas escravizadas que eram encaminhadas para as fazendas de charque. Na dissertação de mestrado “Passo dos Negros: Entre Narrativas, Etnografias e Conflitos”, a antropóloga Simone Fernandes conta que “a inclusão dos saberes dos povos negro e indígenas nas narrativas sobre a cidade vem sendo buscada em ações culturais, por meio da luta de homens e mulheres considerados lideranças nessas populações”.
Comunidade histórica de pelotas, o Passo dos Negros sofre com falta de infraestrutura (Foto: Maria Rita Rolim/Nonada Jornalismo)
O trabalho do pesquisador Gutierrez, citado por Simone, registra que “a localidade do Passo dos Negros foi cogitada para ser a sede da cidade, mas devido a ser considerado como local perigoso e sujo, decorrente do alto número de pessoas escravizadas e a questão do mal cheiro constante, oriundo da matança dos animais e seus dejetos despejados no canal, a sede foi transferida para outro local”.
Muitos escravizados trabalharam também no engenho do Coronel Pedro Osório, construído em 1912, na época considerado um dos maiores engenhos de arroz da América do Sul, desativado nos anos 1990. Atualmente, alguns moradores do bairro foram funcionários do engenho e outros são descendentes desses trabalhadores.
O Passo dos Negros inclui locais que guardam ainda essa herança da população negra, como as centenárias figueiras, locais onde são feitas oferendas religiosas de matrizes africanas, o Corredor das Tropas e a Ponte dos Dois Arcos, estrutura construída por escravizados em 1854 e que até hoje segue servindo de suporte para quem caminha naquela rua de chão batido. O local também foi palco de um dos episódios da Guerra dos Farrapos, com pelo menos três lanceiros negros mortos na batalha.
“Apesar de termos leis que reconhecem a importância do Passo dos Negros como lugar histórico das comunidades negras, elas não garantem sua preservação”, avalia Simone. “A nossa ancestralidade tá aqui nessa cultura, na nossa comida, na nossa culinária, nos doces, nos patrimônios, nos saberes, no samba, no sopapo. É uma invisibilidade pra questão da história negra, parece que não nos enxergam”, diz.
Ao longo dos anos, o Passo dos Negros resiste para continuar vivo para manter a memória dos ancestrais escravizados. Hoje, o bairro abriga 350 famílias, principalmente de mulheres negras solos, de acordo com Simone e a irmã, Patricia Morales. Voluntárias há anos no bairro, elas afirmam que o Passo teve a sua linha de ônibus urbano retirada na pandemia e até o momento não foi retomada, dificultando a ida dos moradores ao centro da cidade.
Além do condomínio de luxo ao lado, o território também está próximo ao Parque Una, bairro planejado com diversos prédios para comércio e moradia, com parques modernos, cafeterias, lojas e toda uma arquitetura contemporânea voltada de costas para a comunidade. No Corredor das Tropas, onde fica o barraco de Pedro, não há postes de energia elétrica, nem água e esgoto encanados. “Aqui é triste. É triste por isso. A gente tá vivendo aqui na coragem.” Ele diz que seus filhos, netos e animais são as suas fontes de força para poder continuar tendo essa coragem para sobreviver.
A pesquisadora Simone Fernandes registra que a população da comunidade não foi ouvida no censo de 2010. “Essa invisibilidade proporcionou a especulação imobiliária que vem se instalando sobre a região com a construção dos ‘empreendimentos’ voltados à implantação de condomínios de luxo”, aponta. A antropóloga conta que o IBGE esteve na comunidade no último censo, realizado em 2022.
Comunidade está localizada ao lado de condomínios e novas construções imobiliárias (Foto: Maria Rita Rolim/Nonada Jornalismo)
A enchente não chegou a atingir a comunidade, chegando apenas na porta de algumas casas, mas houve um pedido de evacuação preventiva. Seu Pedro foi um dos muitos moradores que não saiu da sua casa. “Eu vou ficar aqui. Só se a água tomar a minha casa, que eu vejo que não tem mais recurso aí, sim. Aí eu saio, mas se ela não tomar, eu não vou sair.”
Ele ressalta que nunca viu uma enchente de tamanhas proporções como essa em todos esses anos que mora no bairro. Dessa vez, a água chegou na porta de sua casa, mas faltou pouco para ser muito pior. “Faltou uns dois dedos só para estourar os dique aqui na porteira do Engenho”, diz.
Ana Cristina Gomes, 26 anos, mora desde os dois anos no bairro. Agora mãe de 4 filhos, ela sofreu perdas com o ciclone extratropical que atingiu o estado em julho de 2023, cerca de um ano antes das chuvas históricas que causaram a enchente. “Desta vez, o Exército foi lá e mandou a gente sair. Eu saí, foi um susto, aí eu fui lá para casa da minha irmã. No ciclone do ano passado, a água passou a altura da minha cama, por isso que eu saí, essa vez eu não esperei.”
Mesmo com a água chegando apenas na altura da porta de sua casa desta vez, Ana foi uma das muitas moradoras da região impactadas economicamente com a tragédia. Como não conseguia trabalhar após o pedido de evacuação, foi dispensada do trabalho informal como cuidadora de idosos. Atualmente, ela faz bicos em uma lancheria aos finais de semana, mas segue em busca de emprego.
Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), 333 mil trabalhadores gaúchos de 22 mil empresas tiveram que paralisar as atividades temporariamente. Os dados são do início de julho. Já o Banco Central revelou, em junho, que 8% dos empregos formais do estado estão localizados em áreas atingidas pela enchente. Em Pelotas, as empresas localizadas no raio de 1 km da enchente representam 35% das ocupações formais da cidade. No caso de Ana, seu trabalho era informal e não foi contabilizado na pesquisa. Ela não teve acesso, portanto, a direitos previdenciários.
Dados do Datafolha revelam que a população preta e parda teve mais perdas com a enchente que atingiu o estado. Segundo a pesquisa publicada no final de junho, 52% dos pretos e 40% dos pardos nos municípios afetados relataram ter sofrido perda. Entre os brancos dos mesmos municípios, a proporção de pessoas que relata alguma perda material ou de renda é de 26%.
Na zona rural do município, comunidades quilombolas também tiveram perdas econômicas com a enchente. A água passou longe do Quilombo Alto do Caixão, uma das sete comunidades de Pelotas. Ainda assim, o quilombola Charles Dias conta que as famílias que trabalham nas lavouras da região tiveram que parar o trabalho por um mês e ficaram sem renda. “A gente não sofreu diretamente com as enchentes, mas indiretamente a gente foi muito atingido pela carga de chuvas que caiu. A maioria das famílias trabalha nas lavouras”. O Nonada identificou situação semelhante em outros quilombos da região sul, como o Boqueirão e o Coxilha Negra, localizados no município de São Lourenço do Sul.
Charles diz que a comunidade recebeu ajuda quase no final do período da enchente com cestas básicas, roupas, fraldas e cobertores. Agora, com o período mais seco, as famílias conseguiram voltar ao trabalho normalmente para tentar recuperar o que foi perdido.
Ordem de evacuação levou moradores aos abrigos
O Passo dos Negros está localizado no Navegantes, um dos 13 bairros de Pelotas que tiveram ordem de evacuação pela prefeitura no dia 13 de maio. O canal São Gonçalo, próximo à região, atingiu o nível recorde de 2,88m. Jiceli Rodrigues, 44 anos, casada com Ramon, doméstica e moradora do Passo dos Negros há mais de 20 anos, resolveu sair de casa com seu marido. “Aqui no Passo dos Negros não aconteceu porque Deus colocou a mão. Tenho certeza que foi a mão de Deus ali. Porque senão, também não sei se aqui a desgraça também não ia ser parelho como em Porto Alegre.” Por 22 dias, eles ficaram em um abrigo, onde receberam alimentação, roupas, atividades especiais e atendimento psicológico. Jiceli conta que todos os voluntários eram extremamente atenciosos.
Para Moema Martins, 38 anos, auxiliar de limpeza, moradora do bairro há 5 anos, a notícia de ter que sair de casa foi um grande susto para ela, sua esposa e a filha de 14 anos. “Tivemos que tirar tudo de dentro de casa, ficou um pouco em cada lugar.” Ao contrário de outras trabalhadoras da comunidade, seu chefe a liberou para não ir ao trabalho no período de enchente. Mas Moema seguiu trabalhando. “A vida não pode parar, temos conta para pagar, compromissos a cumprir”, diz.
Ela se arriscava indo até a sua casa para ver como estava os seus pertences e o avanço das águas. “É o pouco que a gente tem, se entrar água, estraga, é uma coisa assim que tem que correr atrás para conquistar de novo.” A água acabou entrando apenas no pátio e não houve estragos materiais, mas os danos mentais afetaram a sua família, principalmente a sua esposa, que já realiza tratamento para a depressão.
À reportagem, os moradores do Passo dos Negros contam que as mudanças climáticas não são tema de conversas no seu cotidiano. Todos sabem do básico como não jogar lixo no chão, reciclar, economizar água e luz, mas pautas como o aquecimento do planeta e os desastres naturais recorrentes no mundo não se tornam parte do dia a dia dos moradores.
Ainda assim, é notável nas falas o medo de a água subir com mais força na próxima época de chuvas e a consciência crítica a respeito do governo municipal e estadual em relação à atuação na tragédia. Mesmo obedecendo o pedido de evacuação, Ana, Moema e Jiceli ainda não receberam o auxílio do governo federal e estadual.
Sobre a bomba instalada pelo condomínio ao lado, o Ministério Público do RS informou ao Nonada que instaurou um Procedimento de Investigação Criminal e aguarda o laudo pericial para continuar o trabalho.
Mulheres negras na linha de frente
Eliane Barcellos é professora, presidente e fundadora do Centro de Educação, Esporte, Cultura e Lazer Cuidando de Nós, uma ONG que está presente há 7 anos no Passo dos Negros. Ela conta que no momento de desespero muitos moradores a procuraram. “Eles precisavam de alimento, de roupa, de agasalho, de cobertor, roupas de cama, e o que a gente podia repassar, nós repassamos. A gente foi em várias instituições e conseguimos arrecadar algumas coisinhas”.
Mesmo que o foco da ONG não seja voltada ao assistencialismo, e sim na qualificação educacional dos moradores do Passo dos Negros, ela fez o que pôde para ajudar. “Foi uma situação bem trágica. É nós por nós, é o pobre ajudando o pobre da melhor maneira possível”, diz.
A historiadora e profissional na área de direitos humanos Francisca Jesus também atuou como voluntária na enchente. Moradora do Porto, outro bairro às margens do canal São Gonçalo, ela relembra que em diversos lugares, muitas pessoas não queriam sair por medo de suas casas serem saqueadas. “Eles iam buscar roupa no nosso ponto de coleta e a gente viu que tinha muita carência de crianças, recém-nascidos, que não tinham roupa, que tinham perdido tudo. Todos os dias, tinha ali uma demanda alta de coleta.”
Mesmo possuindo um histórico com diversos trabalhos na área social, Francisca se surpreendeu com o que viu. “As pessoas diziam assim: tudo que eu consegui trabalhando esse tempo todo, eu estou perdendo. Elas não tinham perspectiva e ficavam naquela instabilidade, o que gerava mais desespero”, se emociona ao lembrar.
Agora no pós-enchente, ela alerta para que as pessoas que foram afetadas não voltem para a invisibilidade. “Tinha pessoas que não tinham documentação. E aí, conseguiram documentação, conseguiram se inscrever, por exemplo, num cadastro único do governo. E daqui a pouco, elas voltam para aquela realidade onde o acesso é nenhum, onde o atendimento psicológico que não existe, o acesso à justiça que também é demorado, e a gente sabe que tem uma fila de espera enorme”.
Francisca aponta que a desigualdade social se destacou também nos cadastros para os auxílios oferecidos pelo governo, uma vez que muitas pessoas procuravam ajuda porque não sabiam ler e não sabiam como preencher o cadastro no celular. “O poder público te dá a ferramenta, mas ele não sabe como lidar depois com as pessoas que não sabem ter esse acesso. E não é porque elas não querem, é porque realmente é difícil”, avalia.
Marisa Campos
Natural de Camaquã–RS, estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Pelotas, com diversas experiências na área da comunicação, sempre com foco em abordar pautas relacionadas a questões raciais, direitos humanos e cidadania, com objetivo de dar voz e o protagonismo àqueles invisibilizados pela sociedade.
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