Foto: Marcele Oliveira/acervo pessoal

Alternativas para o futuro: jovens ativistas atuam na linha de frente da luta pela Justiça Climática

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*Esta reportagem foi realizada com apoio do Pulitzer Center

Mesmo com todas as adversidades, é preciso olhar para frente e aprender com os exemplos das pessoas e organizações que têm assumido a liderança na luta por justiça climática, mobilizando comunidades e propondo soluções. Nessa última reportagem da série “Comunidades sub representadas sofrem com racismo ambiental”, vamos mostrar iniciativas de grupos de diferentes áreas que enfrentam as desigualdades agravadas pela crise ambiental, conectando cultura, território, combatendo o racismo ambiental.

Como é o caso da carioca Marcele Oliveira. Durante o trajeto de ônibus de sua casa no bairro Realengo até a Universidade Federal Fluminense, em Niterói, onde cursava produção cultural em 2019, ela ficou intrigada ao notar uma manifestação a favor de um parque verde na região e foi se informar. “A partir de mutirões de limpeza e atividades de conscientização ambiental, a galera se movimentava”, conta.  

O projeto do Parque Verde é uma luta antiga, mobilizada por muitos moradores, lideranças e movimentos da sociedade civil. Segundo a Casa Fluminense, a ideia começou a ganhar força em 2004, com o movimento 100% Parque Realengo Verde, passando pela autorização do uso da área para manejo de resíduos pela FOZ 5 entre 2009 a 2016.  

Quando ela entrou no movimento, logo veio a pandemia e eles entenderam que deveriam fazer do espaço um ponto oficial para encontros das ações da comunidade para que também se seguisse fortalecendo a luta pela conquista do Parque. “O Parquinho Verde foi essa ocupação artístico-cultural que a gente construiu e virou também o lugar que recebia alimentos e materiais de limpeza. Ele cumpria esse papel, porque ele era aberto, controlado. E aí a gente ocupou uma calçada desse grande terreno do Parque Verde. E fazemos teto verde, monta churrasqueirinha, bota um chuveirão, começa a fazer umas hortas”, diz.

Em 2020, se concretizou uma proposta para o Fundo Bossa Nossa, da plataforma  Benfeitoria, e o projeto Festival Avante Parquinho Verde, que incluía reformas no terreno e um grande festival cultural, foi selecionado. “Então, começamos a contar essa história: além da luta pela construção do parque, também estamos falando de cultura, de mobilização social, de participação”, conta. 

Todo esse trabalho culminou no Curso de Políticas Públicas de Realengo e na Agenda Realengo 2030, lançada em 2022, um documento que traz essa história e que reivindicava a formação do Parque, alinhado com os objetivos do desenvolvimento sustentável (ODS). “Era uma luta de muito tempo e acabou andando mais rápido com toda essa mobilização, e foi quando eu me dei conta de que a cultura foi essencial para essa história deslanchar”, conta. Marcele, então escreveu seu trabalho de conclusão de curso sobre esse caso. “Como uma ocupação artístico-cultural em uma área abandonada se torna uma referência que impulsiona o engajamento da população, principalmente da população periférica, na pauta ambiental, que foi tirada da gente”, aponta. 

Foto: Marcele Oliveira/acervo pessoal

Marcele agora, além de pesquisar e se aprofundar na intersecção entre cultura e mudanças climáticas, também é diretora da Perifa Lab, uma rede de aceleração de lideranças periféricas, e co-fundadora da organização O Clima é de Mudança, uma coalizão que coloca a periferia protagonista do enfrentamento ao racismo ambiental. Ela explica melhor sobre a relação da pauta ambiental com as populações periféricas. “Na verdade sempre foi coisa nossa, do nosso povo, das comunidades originais, quilombolas, ribeirinhas. E então falar de memória, fazer resgate, é falar de cultura, de modo de vida, como enxergamos ao nosso redor, tudo isso é cultural. E acho que para enfrentar a crise climática que a gente tem hoje, a gente precisa fazer uma virada de consciência massiva das pessoas. Uma virada de consciência massiva dos governos”, avisa.

O parque foi inaugurado no dia 15 de junho deste ano pela  prefeitura do Rio de Janeiro que foi intitulado de “Susana Naspolini”. A área até o momento só está com 50% do seu espaço disponível para uso, mas já está sendo  ocupado pelos moradores de todas as idades do bairro de Realengo. A luta agora é para tornar a outra metade do espaço também parque. 

Racismo ambiental e periferias

Marcele é uma das muitas vozes jovens que têm mobilizado comunidades diante das mudanças climáticas. O movimento tende a crescer e se tornar mais necessário em momento de fenômenos extremos como a enchente que atingiu o Rio Grande do Sul em maio, cujas consequências para as comunidades negras e periféricas são pauta desta série de reportagens.  

Segundo Tatiane Matheus, pesquisadora de justiça climática, o racismo ambiental se configura nas catástrofes climáticas justamente quando afeta essas comunidades. “A estrutura da nossa sociedade é racista e de exploração da natureza. Inclusive, a forma não sustentável de desenvolvimento nos trouxe à crise climática. Para entender quais os principais fatores que contribuem para as comunidades negras, indígenas e periféricas serem as mais impactadas não há como deixar de lado fatos históricos do Brasil após a abolição e a formação das cidades. Somando isso, a gentrificação que vai cada vez levando essas pessoas vulnerabilizadas para áreas de risco ou sem infraestrutura”, explica a pesquisadora, integrante do Climate Justice Hub e também do GT de Gênero e Justiça Climática do Observatório do Clima. 

Rita Passos, pesquisadora do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, concorda que sempre existiu uma negligência a esses corpos. “Essas populações sempre foram sacrificadas em nome de desenvolvimento, em nome de expropriação de poder e de lucro, de riqueza. Nós temos uma necropolítica muito evidente,  onde as pessoas pouco se sensibilizam também com a morte de pessoas pretas, então um preto a menos sempre é melhor do que um preto a mais. O racismo ambiental nessas catástrofes é um pouco do resumo histórico do que tem sido a negligência das políticas públicas e das políticas empresariais no contexto atual nessa situação”, acredita.

Enchente no Rio Grande do Sul (Foto: Marinha do Brasil/divulgação)

Mas como essas comunidades podem exigir ações efetivas contra o racismo ambiental? A resposta é complexa. Para Tatiane, elas precisam se organizar e mobilizar para exigir ações efetivas dos governos, buscando uma maior conscientização sobre os direitos ambientais. “Há um movimento que envolve várias organizações, a Adaptação Antirracista, que está promovendo o debate e buscando ações à crise do clima que sejam não-racistas”, diz. 

A luta contra o racismo ambiental deve ser travada também no campo jurídico, afirma Rita. Ela cita medidas como a diretriz criada nos Estados Unidos em 1994, durante o governo Clinton, nos Estados Unidos, que proibia a alocação de rejeitos próximos a comunidades negras. “Precisamos lutar por políticas públicas e empresariais que adotem um comportamento ético-racial”, destaca.  

No Brasil, ainda falta jurisprudência que responsabilize diretamente empresas e o Estado pelo racismo ambiental. A urgência dessa demanda se assemelha à evolução legislativa que equiparou injúria racial ao crime de racismo, e agora é necessário aplicar esse tipo de responsabilização a questões ambientais. “Se quisermos avançar nesse campo, é primordial que criemos mecanismos legais que protejam essas comunidades”, pontua Rita, destacando a importância de iniciativas que garantam reparações concretas. 

“É muito importante que as políticas também sejam afirmativas nas políticas ambientais, vimos agora na catástrofe do RS, quando você observa a reparação dos danos, vê que se abriu linhas de crédito para grandes empresas, se reparou logo o centro, retirada de lixo, enquanto as populações mais periféricas, mais retintas, mais pobres, ficaram fora desse processo. Ou seja, elas vão ser as últimas a serem cuidadas, apesar de serem, em geral, a maioria”, diz. 

A exclusão dessas populações no processo de criação de políticas públicas, como, por exemplo, na participação de planos de adaptação climática, é um dos problemas a serem enfrentados. “Um ponto relevante é que há uma tecnologia ancestral e social que deve ser somada aos esforços técnicos de especialistas, essas comunidades deveriam fazer parte, serem ouvidas. Os aliados, sobretudo, do terceiro setor e de universidades, podem investir na capacitação de lideranças na parte de articulação nas esferas de poder”, acredita Tatiane.

Expansão urbana e risco

É cada vez mais essencial para as cidades colocar a questão climática no cerne do seu planejamento. Entretanto, há vários outros desafios que acabam transversais a essa questão, como o caso da especulação imobiliária cada vez mais agressiva nos centros urbanos.  

Segundo o professor do Departamento de Urbanismo da Faculdade de Arquitetura e do Programa de Pós Graduação em Planejamento Urbano e Regional da UFRGS, Eber Marzulo, isso vem de um processo mais contemporâneo da ocupação formal da cidade. “Nessa área mais urbanizada do país a novidade é uma ação do mercado fundiário imobiliário em áreas que não estavam ocupadas, exatamente porque elas eram de risco. Historicamente o mercado imobiliário sempre se defendeu do risco, o que acontece, e talvez haja um certo paradoxo aí, é que parece que que o risco saiu do cálculo dos investimentos, talvez pela velocidade maior deles”, explica.  

Com isso, a expansão das grandes cidades, impulsionada por capital financeiro global, tem levado as grandes incorporadoras a buscarem terrenos em regiões com potencial de valorização. O impacto dessa especulação imobiliária é sentido principalmente pelas populações periféricas, que são as mais afetadas por enchentes, deslizamentos e alagamentos.

Esse modelo de crescimento urbano, impulsionado por capital estrangeiro e a especulação imobiliária, levanta uma questão: quem realmente se beneficia desses investimentos? A resposta parece ser clara: imóveis de luxo são construídos, mas muitas vezes não são ocupados, servindo apenas como um ativo financeiro para investidores. 

Enchente no Rio Grande do Sul (Bruno Peres/Agência Brasil)

Para Eber, Porto Alegre é um exemplo disso. “Inclusive na área interna da cidade, os novos investimentos dessas incorporadoras que atuam  uma articulação muito próxima com o poder político municipal e também estadual, se tu prestares atenção, vai ver que todas estão fazendo agregamento de lotes. Por que essas áreas passam a ter interesse? Exatamente porque elas são grandes parcelas urbanas e aí muitas delas são de domínio público e o processo de privatização do solo público passa a ser fundamental na articulação desse capital. O que é feito, em geral, são imóveis de luxo para uma alta renda que vai matando a cidade porque são imóveis que as pessoas não vão morar, não entram nem no circuito do aluguel porque eles funcionam como investimentos”, explica.

Uma das formas de resolver essa crise, para Eber, é incentivar o processo participativo, principalmente nas situações com as comunidades periféricas. “Em algumas, vai ter o saber ancestral de como lidar com essas condições, porque tem uma memória, e essa memória não é a do tempo da modernidade pós-industrial, do capital financeiro global, que é uma temporalidade muito rápida. Ela é uma temporalidade maior que passa no interior das famílias, que passa no interior das comunidades que, de alguma maneira, mantiveram capacidades cognitivas de enfrentar essas situações”, diz. 

Para Rita Passos, o conceito de justiça climática ainda não se aplica efetivamente à adaptação urbana das cidades brasileiras. “Nós temos uma injustiça climática histórica promovida pelo racismo ambiental e por uma negligência histórica da natureza e de corpos não brancos. E quando a gente pensa nas cidades urbanas, as cidades urbanas historicamente também foram construídas para benefício de alguns corpos, sempre negligenciando, empurrando cada vez mais para a periferia, para áreas sem infraestrutura básica, então a concepção, os modelos de cidade no Brasil, e eles muito se repetem, eles estão sempre em benefício de um grupo, o que está no poder, em detrimento de outro”, completa. 

Adaptação Climática e desigualdade

Diosmar Filho é doutor em geografia e um dos coordenadores da Associação de Pesquisa Iyaleta, que desenvolve pesquisas, formação e comunicação técnica e científica no campo das ciências humanas, naturais, aplicadas, exatas e tecnológicas. No momento, eles também estão trabalhando com o fomento de pesquisas e estudos sobre políticas de enfrentamento aos impactos e efeitos das mudanças climáticas no espaço brasileiro e internacional. 

“Demos início há dois anos à pesquisa Adaptação Climática: uma intersecção Brasil 2030, e em julho começou a segunda fase da pesquisa que se encerra em 2026, que tem como objetivo aprofundar os estudos e pesquisas com a produção e  análise de dados sobre as dimensões das políticas de adaptação climáticas nas cidades e regiões metropolitanas das regiões Norte e Nordeste do país”, comenta. 

Para Diosmar, um dos maiores desafios das instituições de pesquisa é o entendimento de que a adaptação climática deve ser abordada como uma política pública voltada para a redução das desigualdades. “No entanto, grande parte das pesquisas publicadas por centros acadêmicos e organizações da sociedade civil ainda não contempla plenamente essa perspectiva. A desigualdade, especialmente no contexto brasileiro, é profundamente marcada por questões de raça, classe e gênero, e reconhecer essa realidade é fundamental para propor soluções eficazes”, acredita.

Rua lotada de entulho após enchente em Canoas, região metropolitana de Porto Alegre (Foto: Desirée Ferreira/Nonada Jornalismo)

Ao olhar para as pesquisas que o Instituto realizou sobre desigualdades e mudanças climáticas, principalmente no território urbano das cidades da Amazônia Legal e da Região Nordeste, Diosmar entende que o cenário não é sobre justiça climática.  “Precisamos assumir que estamos diante de um ciclo de elaboração e efetivação de políticas públicas de adaptação, que sim, poderá reduzir desigualdades e elevar populações urbanas da situação de vulnerabilidade para a de resiliência, e isso não é justiça climática. É garantir condições de existência diante da profunda vulnerabilidade que se encontra mais que 95% de todas as cidades no país. Nenhum município ou estado hoje tem um plano de adaptação climática em condições de dizer que está preparado para grandes volumes de chuvas, grandes ondas de calor e/ou períodos longos de estiagem que elevem a níveis insuportáveis para humanos o aquecimento dos solos urbanos, por exemplo . O que estou dizendo é que os dados científicos sobre eventos e fenômenos climáticos são de conhecimento público, contudo, estamos diante de profundas desigualdades urbanas e as infra-estruturais de hoje não garantem redução das perdas. Sair desse processo exige falar de desigualdades e daqui a três décadas de efetividade de políticas públicas analisarmos o que é justiça climática. Até lá sugiro que nosso foco seja porquê e o que não se realiza na adaptação climática”, diz. 

Lara Caccia, Coordenadora de Adaptação Urbana do Programa de Cidades do WRI Brasil, conta que nos últimos anos, a sua organização atuou em Recife (PE) e Teresina (PI) em projetos de criação de alianças para transformação urbana a partir de processos participativos promovendo encontros comunitários com representantes de diferentes setores da sociedade. “O objetivo era criar e testar soluções sustentáveis para os problemas vividos nos territórios que também contribuam para enfrentar as mudanças climáticas. As ações vão desde criação e qualificação de espaços públicos acessíveis e a criação de espaços comunitários, a geração de renda com foco em mulheres chefes de família. Também foram desenvolvidas práticas sustentáveis como reciclagem, compostagem, criação de jardins e produção de alimentos orgânicos”, explica.

A experiência acabou servindo como referência para o Guia do Plano de Ação do Periferia Viva, programa do governo federal promovido pela Secretaria Nacional de Periferias. “O guia é um instrumento para auxiliar na construção de políticas participativas e cocriação de ações prioritárias e intervenções urbanísticas e ambientais a serem implementadas em cada localidade contemplada pelo programa federal”, diz Lara.

Outro exemplo citado por Lara como ação integrada entre a sociedade civil e órgãos de governo são os Núcleos Comunitários de Proteção e Defesa Civil (Nupdecs). Eles são grupos de moradores voluntários que atuam na prevenção e redução de desastres e suas consequências, formados em bairros considerados vulneráveis e promovem mobilização comunitária. “A resiliência é fortalecida através de mapeamentos e diagnósticos participativos, de treinamentos e capacitações sobre mudanças climáticas, percepção de riscos, medidas e cultura de prevenção, práticas seguras. A sociedade é envolvida através das associações e comunidade escolar, visando organizar e potencializar o conhecimento local e tradicional, ao mesmo tempo que forma agentes multiplicadores do conhecimento e possíveis soluções”, diz.   

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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