Arte: Micaela Cyrino/reprodução)

Conheça 8 artistas visuais que quebram estigmas sobre viver com HIV 

Olhar para o HIV através da lente do tratamento, e não da morte. Endereçar a vida e não o diagnóstico. Complexificar os atravessamentos sociais e raciais que compõem a vivência pessoal do HIV. A artista multilinguagens paulistana Micaela Cyrino assume essas frentes ao produzir seu trabalho artístico com pinturas, performances e intervenções na rua. Uma de suas obras mais conhecidas reproduz, em lambe-lambe ou serigrafia, a palavra “soropositiva”, escrita em letras vermelhas e garrafais. Artistas como Micaela constroem uma outra narrativa para as vivências soropositivas em uma perspectiva de vida e de afirmação, diferente daquelas estabelecidas nos anos 80 e 90 ao redor do mundo.

No Brasil, a temática do HIV aparece de forma tímida na história da arte em comparação a outros países. Há pelo menos dez anos, o professor do Centro de Artes da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) Ricardo Ayres dedica-se à pesquisa sobre a presença das vivências HIV e da AIDS  (síndrome causada pelo vírus quando não tratado)  nas artes visuais, e constata que, mais do que uma invisibilidade histórica, as vivências soropositivas seguem sendo pouco elaboradas em exposições de arte pelo país. 

“Nos Estados Unidos, na Europa, em outros países da América Latina, é perceptível que a questão do HIV e da AIDS antecipou muitos debates sobre as questões identitárias na arte.” Segundo ele, a discussão abriu um caminho  importante para se discutir a história pessoal como parte de uma história coletiva. Segundo o professor, nos anos 80 e 90, o tema abriu debates sobre a relação entre arte e ativismo, pois a produção de artistas sobre a então pandemia de HIV/AIDS não era, muitas vezes, considerada como arte.

Ricardo explica que “a invisibilidade sempre constituiu o tema na história da arte no Brasil.” Segundo ele, o tema não é tratado, e uma das principais questões é que o HIV e a AIDS são vistos como uma expressão, um tema tratado individualmente por um artista, e não como um tema social. “O HIV é visto como uma particularidade, e não como uma temática, na arte contemporânea brasileira.”

Ricardo explica que as narrativas sociais e artísticas mudaram significativamente no pré e no pós-coquetel, quando o tratamento antirretroviral transformou também as perspectivas de vida de pessoas soropositivas. “Depois do tratamento, não é mais aquela narrativa sobre uma morte iminente. É uma narrativa sobre viver com o vírus. Esse momento busca também desmistificar o estereótipo, porém ele continua muito forte, mesmo com a doença sendo totalmente tratável.” 

Segundo o professor, há uma relação entre o aparecimento de questões LGBTQIA+ nas produções artísticas, inclusive relacionadas à identidade Queer. “Nos anos 80, temos um o aparecimento das identidades LGBTI no centro das narrativas, e também um processo de normatização. O Queer demarca uma posição de não ser assimilado, de defender a diferença e dissidência”. Porém, ele reforça que mesmo em exposições que poderiam trazer o debate sobre a vivência de HIV à tona, há uma ausência da abordagem, como foi o caso da exposição QueerMuseu, conhecida pela censura em 2019, que, segundo ele, ignorou o assunto. 

Outra forma de invisibilização são as escolhas curatoriais que, muitas vezes, suprimem a vivência do HIV, mesmo quando os artistas falam abertamente sobre o assunto. “Muitas vezes, críticos, curadores, vão dizer que não querem associar ou reduzir o artista àquele tema. Só que se o artista conscientemente trata, ou ele tendo sido uma pessoa que está com HIV ou com AIDS, não tem por que a gente ignorar, né?”

A proposta do professor vem já nos títulos de suas produções acadêmicas: ele intenciona que a história da síndrome seja vista junto à história da arte. “A própria definição do que a gente tem de arte contemporânea hoje tem uma relação com o debate do HIV e da AIDS no Brasil.” As produções artísticas ocupam um lugar importante em aproximar as pessoas da temática e também em mostrar que o HIV segue sendo um tema do presente, que demanda atenção e elaboração. 

Conheça 8 artistas brasileiros e estrangeiros que abordam a vivência em diferentes momentos históricos: 

Micaela Cyrino
Foto: OMA Galeria/reprodução)

    Paulistana, graduada em Artes Visuais, produtora cultural e ativista pelas pessoas negras vivendo com HIV. Micaela Cyrino é mulher negra soropositiva por transmissão vertical (que ocorre na gestação, no parto ou na amamentação). Desenvolve uma produção artística que reflete sobre os estigmas e preconceitos em relação a Aids e ao HIV. São pinturas, performance e intervenções na rua, em abordagens sobre corpo negro positivo e seus atravessamentos.

    Barton Lidice Benes 
    Barton Lidice Benes, AIDS Museum (Reliquarium, 1999), Internacional Collage Center Collection

    O artista nova-iorquino Barton Lidice Benes é amplamente conhecido por  sua obra que aborda a pandemia da AIDS nos Estados Unidos. Seu trabalho artístico se dá a partir de esculturas feitas com objetos relacionados à epidemia, como comprimidos e cápsulas e tubos intravenosos. As produções de Benes foram marcadas por uma visão crua da doença e da, até então, falta de tratamento, o que, inclusive, dificultou sua inserção no sistema artístico da época.

    Leonilson 

    Trabalhos de Leonilson (Foto: reprodução)

    Considerado um dos principais artistas da arte contemporânea brasileira, o cearense Leonilson foi responsável por uma produção de mais de 4.000 obras em seus 36 anos de vida. A vivência soropositiva foi um dos atravessamentos de sua trajetória, marcada por uma poética que trata de questões existenciais, da subjetividade humana e da sua identidade queer. Neste ano, o artista ganha uma mostra individual e retrospectiva no Masp, em cartaz até novembro, curada por Adriano Pedrosa, que celebra sua obra produzida nos seus cinco últimos anos de vida. Na década de 1980, fez parte do grupo de artistas que retomou a prática da pintura, conhecido como ‘Geração 80’, participando de Bienais e Panoramas da Arte Brasileira. 

    Órion Lalli 
    Trabalho de Orion Lalli (Foto: reprodução)

    Órion Lalli é um ativista político, performer, artista visual e ator profissional com formação teatral e experiência na área de pesquisa em artes cênicas. Desde 2005, sua pesquisa tem como foco a intersecção e influências entre Dança-Teatro e Arte Performance. Desde 2018 desenvolve o projeto EM.COITROS, encontros de um corpo vivendo com HIV, onde mergulha no seu corpo e nos desvendamentos sobre o HIV/AIDS e as possíveis relações com performances e instalações artísticas, um diálogo sobre políticas públicas no campo das artes. 

    Kako Arancibia
    Trabalho de Kako Arancibia (Foto: Luana Torres/ divulgação)

    O ator e performer Kako Arancibia encontrou na arte participativa uma forma de quebrar tabus e estigmas em relação à vivência sobre do HIV/AIDS. Com um cartaz em mãos, Kako levanta a pergunta: “Vamos conversar sobre hiv e aids?.” A proposta, assim como outros trabalhos dos artistas, é desconstruir os estereótipos de sofrimento do público sobre pessoas soropositivas. Em relatos sobre o trabalho, Kako diz que a quebra do silenciamento, tanto dele, enquanto artista, como das pessoas que se sentam na cadeira, já é um gesto artístico. No diálogo, há espaços para dúvidas, informações, histórias e experiências pessoais. 

    Félix González-Torres 
    Obra de Felix Gonzalez Candy Works (Foto: divulgação)

    Félix González-Torres foi um artista visual estadunidense nascido em Cuba, conhecido na história da arte contemporânea por seus trabalhos de arte conceitual que utilizam objetos cotidianos. Em uma de suas obras mais conhecidas, “Sem título” (Retrato de Ross em Los Angeles”, o artista posiciona 80 kg de balas coloridas na quina de uma sala expositiva dos museus. Os visitantes podem pegar balas durante a visita e, conforme o tempo passa, a pilha vai diminuindo. O trabalho é uma homenagem ao companheiro de Torres, uma das pessoas que morreram na pandemia da Aids. A repetição dessa obra foi intitulada pelo artista como “Candy Works” (trabalhos com doces). 

    Jessica Lynn Whitbread 

    Jessica Lynn Whitbread é uma artista, ativista e organizadora comunitária cujo trabalho se concentra na criação de espaços para facilitar o diálogo sobre justiça social e mudança. O trabalho que ela cria está frequentemente relacionado com a sua experiência como mulher que vive com HIV, bem como com elaboração de sua identidade Queer numa sociedade heteronormativa. No projeto Tea Time, iniciado em sua tese de mestrado na Universidade de York, Toronto, Jessica cria uma instalação em que convida mulheres soropositivas para escreverem sobre suas vivências e tomarem chás juntos. Em um livro com mesmo nome, ela documenta todas essas performances. Em outros trabalhos, a artista espalha cartazes com a frase “ame mulheres soropositivas”. 

    Joyce Mcdonald
    Obra de Joyce McDonald (Foto: rerodução)

    Artista, ativista e membro do Visual AIDS, Joyce Mcdonald utiliza diversas linguagens para abordar suas vivências como uma mulher negra estadunidense. Após o diagnóstico de HIV em 1985, ela decidiu utilizar de diversas técnicas, como escultura, pintura, poesia e música para expressar seu processo de cura e também ajudar outras pessoas. Como ativista, ela criou uma fundação voltada para conscientização sobre HIV, para meninas e adolescentes. 

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    Repórter do Nonada, é também artista visual. Tem especial interesse na escuta e escrita de processos artísticos, da cultura popular e da defesa dos diretos humanos.
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