Mâe Beth de Oxum (Foto: Juana Carvalho)

De brincante a patrimônio vivo, Mãe Beth de Oxum segue atuando à frente de seu tempo

Yuri Euzébio, especial para o Nonada Jornalismo

Olinda (PE) — Em uma tarde comum, quem chega na casa de Mãe Beth de Oxum encontra um ambiente movimentado, com jovens, crianças e adultos participando das mais variadas atividades do espaço. Beth chega em cada ambiente do local, escuta, conversa e dá orientações a todos. Seus filhos se misturam com os frequentadores e participantes das atividades do centro e ela trata todos da mesma forma, como uma verdadeira mãe. 

Inquieta, inventiva e acolhedora. Esses três adjetivos resumem bem o comportamento e a atuação de Maria Elizabeth Santiago, 60 anos, ou como ela é conhecida nos quatro cantos de Pernambuco:  Mãe Beth de Oxum. Comunicadora popular, cantora, percussionista, ativista, educadora e mestra da cultura popular, Mãe Beth é uma mulher inteligente, articulada e sem muitas cerimônias. Trata a todos como a seus filhos, com a mesma franqueza, doçura e carinho.

No bairro do Guadalupe, que fica a 15 minutos de caminhada do centro histórico e turístico de Olinda, não existe sequer um só morador que não a conheça. Sua casa é uma espécie de farol do bairro, iluminado todos os vizinhos, diretamente do beco da Macaíba, onde funciona também o Terreiro Ilê Axé Oxum Karê e o Centro Cultural Coco de Umbigada, é lá onde a Ialorixá e comunicadora realiza seu coco de umbigada há 25 anos. “Minha trajetória se inicia aqui mesmo na periferia do Sítio Histórico de Olinda, na Barreira do Rosário, sou nascida e criada aqui e desde muito jovem estive inserida nas expressões artísticas, nos movimentos culturais”, contou a Ialorixá no sofá de sua casa.

Mãe Beth cresceu na Barreira do Rosário, comunidade vizinha ao bairro de Guadalupe. Coincidentemente, o nome do lugar se refere ao entorno da igreja do Rosário dos Pretos, criada para abrigar a religiosidade católica ou sincrética do povo negro. 

Patrimônio Vivo de Pernambuco

Beth foi uma das primeiras mulheres a tocar alfaia nos maracatus de baque virado em 1983, também foi uma das primeiras a tocar a zabumba no samba de coco. “A minha relação com o samba de coco de roda vem através do Mestre Quinho, que é o meu companheiro e mestre desse coco”. Beth explica que o coco vem do século passado com os avós e bisavós de Quinho e que, com a morte desses mestres, a tradição ficou silenciada.

“No advento da construção da nossa família, ele me falou que queria resgatar essa brincadeira. Então, resgatamos os instrumentos e a gente voltou a fazer o coco aqui nessa casa onde moramos já há 30 anos”, contou a mestra. Em 1998, quando eles retomaram a tradição, a brincadeira acontecia dentro da casa, com o passar do tempo foram para o quintal, mais um tempo, o quintal ficou pequeno e foram para a rua.

Beth de Oxum, coordenadora do Ponto de Cultura Coco de Umbigada (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

O Coco de Roda tem origem no século XVI, onde acredita-se que tenha surgido dentro dos engenhos e depois levado para o litoral. Foi criado a partir dos batuques e umbigadas de origem africana, além das trocas de experiências com indígenas. Outra crença é de que que o ritmo tenha surgido através do canto dos tiradores de coco no ambiente de trabalho e depois, com a popularização, passou a ser dançado.  O coco pode ser dançado em pares, filas ou rodas e suas características mais marcantes são as batidas dos pés – descalços ou com calçados de madeira – que imitam o barulho do coco sendo quebrado, as expressões corporais e palmas. 

A dança faz dos pés o complemento da percussão e está diretamente relacionada à música dos terreiros de religião afro-indígena. O coco de umbigada é o encontro, é o lazer, a festa religiosa que dá espaço para festa celebrativa do encontro das comunidades.

“E hoje tem praticamente 3 décadas que fazemos em todo o primeiro sábado do mês a sambada de coco do Guadalupe, que é uma celebração da brincadeira do coco. Onde a gente articula os mestres, as mestras, professores, turistas e em essência a comunidade e as diversas periferias de Olinda”, explica Beth. Hoje a sambada do coco de Guadalupe agrega pessoas do Brasil inteiro e é um evento aguardado da agenda cultural da cidade, movimentando toda uma cadeia de comerciantes, seja de bebidas ou alimentos, ao redor da festa.

“No início foi muito difícil, as pessoas não entendiam a dimensão de uma brincadeira na rua, então colocar essa brincadeira aqui foi muito importante, mas foi muito custoso também”, disse. Filha de Oxum, a dona das águas doces, mas também filha de Ogum, o ferreiro dos orixás, Beth é uma mulher de fibra que não teme os desafios e as dificuldades que aparecem, por isso lidou com as adversidades sem nunca titubear. “Um general mora na minha cabeça, e não tem tempo ruim não, parto pra cima e vou buscar solução”, garante. 

A Ialorixá lembra que durante esse começo e com o rápido crescimento do coco de umbigada, houve forte repressão em Olinda. “Nós tivemos muito a polícia batendo na nossa porta para poder calar os nossos tambores, para tentar calar essa brincadeira. Foram muitas vezes que a polícia veio. Sofremos violência policial, levei tiro a queima roupa por fazer a brincadeira e assumir essa liderança cultural”, recorda sem saudades. Mas, água mole em pedra dura tanto bate até que fura, e hoje a sambada já é um evento consolidado na cidade.

Mãe Beth de Oxum é a primeira mãe de santo Patrimônio Vivo em Pernambuco, eleita em 2022. O reconhecimento é dado a pessoas e instituições que mantêm vivas e pulsantes as manifestações culturais do país. “Eu acho importante porque a gente sabe que você ser um artista, um mestre da cultura popular é muito difícil do ponto de vista de você se manter com isso. Os cachês demoram muito a sair, não tem um mercado consolidado, são ciclos: natal, são joão e carnaval”, explicou. 

Foto: acervo pessoal

“Esse título de Patrimônio Vivo foi importante nessa perspectiva do reconhecimento. Para eu dizer aos meus filhos: ‘Valeu a pena’. E vale porque a arte joga luz na diversidade, joga luz no mundo”, disse. O título de Patrimônio Vivo de Pernambuco não tem um semelhante no âmbito nacional. Em nível estadual, há outras ialorixás que receberam esse reconhecimento, como Mãe Neide, em Alagoas. No estado de Pernambuco, a titulação de Mãe Beth também foi concedida a outros nomes da cultura popular como a cirandeira Lia de Itamaracá e a parteira Mãe Dôra Pankararu. 

No ano de 2005, o Programa Cultura Viva, do primeiro governo Lula (PT), foi o responsável pela transformação da sede do coco de umbigada de Mãe Beth em um Ponto de Cultura em reconhecimento a toda a potência artística e mobilizadora do espaço. “Nós recebíamos oficinas, oficinas de tecnologia, de cidadania, de comunicação. Lembro que um coletivo chamado Nordeste Livre nos deu essa oficina de comunicação, era um coletivo de jornalistas livres, então mudou todo o nosso entendimento de rádio”.

Mãe Beth de Oxum (Foto: Juana Carvalho)
Em um país sem memória, a Rádio é Amnésia

Em 2007, a partir dessa oficina, Beth entendeu que rádio é poder, é comunicação, é formação de opinião. E assim surgiu a Rádio Amnésia. “Porque no país sem memória, a rádio é amnésia. Então, fomos tocando essa rádio e ela se consolidou”, disse a ialorixá. Para estruturar a rádio, Mãe Beth desenvolveu um projeto para captar recursos e investir no projeto. “Conseguimos fazer através da Funarte e compramos transmissor, computador, antena, os microfones e assim foi”, lembra a comunicadora.

Ela lembra que no início, o processo foi tortuoso. “Era muito criminalizado, era até complicado pra comprar um transmissor. Porque o rádio é muito associado ao poder. Quem é que tem rádio aqui no país? Meia dúzia de famílias são donas da comunicação no país. A quem interessa um país onde a comunicação não seja democratizada?”, questiona. A ialorixá ainda milita pelo direito dos indígenas, povos pretos e de terreiros de terem acesso a um meio de comunicação.

Com a Rádio Amnésia, Mãe Beth conquistou um novo território para o coco, o frevo, o afoxé e outros gêneros musicais pernambucanos pelos quais milita: uma frequência na rádio FM.  Hoje, a rádio 89,5 FM realiza oficinas de comunicação, introduz novos artistas da região e conversas sobre temas da comunidade, com uma programação que não consegue acesso nas grades das rádios comerciais.  

“Na rádio, colocamos programas de frevo, de maracatu de baque virado, de baque solto, programas de reggae, do próprio coco de roda. Começamos a colocar a cultura popular no dial”, afirma Beth. Inspirada nessas reflexões, Mãe Beth compôs a canção “Cabeça de rádio”, um protesto /denúncia contra a falta de representatividade na comunicação.

Por que nossa música não toca na rádio?
É cabeça de rádio
Cadê a rádio do povo preto?
É cabeça de rádio?
Cadê a rádio dos indígenas?
É cabeça de rádio
Cadê a rádio das mulheres?
É cabeça de rádio

Recentemente, Mãe Beth de Oxum sentiu a necessidade de aprofundar seus conhecimentos na área de comunicação e se matriculou em um curso técnico de Rádio e Tv para ampliar suas possibilidades e continuar desenvolvendo projetos e atividades como comunicadora. Depois de toda uma trajetória e do reconhecimento unânime na área, esse é um passo que por si só diz muito sobre a ialorixá e sua sede de conhecimento.

Tecnologia e inovação ancestral

Em 2008, o então governador de Pernambuco, Eduardo Campos adotou como política pública de inclusão digital a entrega de tablets para cada aluno do 2º e 3º ano do ensino médio da rede pública de ensino. Durante esse período, Mãe Beth observou vários jovens do Guadalupe sem recursos para utilizar aquelas ferramentas. 

“Eles receberam os tablets, mas não tinham como usar, as escolas não estavam preparadas para isso, não tinha internet, ou quando tinha era apenas para a direção. Então, criou-se um problema: não tinha uso para esses tablets”, recordou. Assim, ela trouxe a solução: mudar o software dos tablets e trabalhar o jogo Contos de Ifá.

Mãe Beth de Oxum (Foto: Juana Carvalho)

O projeto Contos de Ifá foi idealizada pela ialorixá, juntamente com Ricardo Brasileiro e Ricardo Ruiz, membros do Centro Cultural Coco de Umbigada e consultores de tecnologia para ampliar as práticas de educação digital do coco de umbigada à época. É um game roteirizado com a mitologia afro-brasileira.

“Trouxemos os jovens pra cá, pra sala da minha casa e começamos a desenvolver o jogo e passamos em várias escolas daqui de Olinda, de São Paulo também, comunidades indígenas”. Com o jogo, Beth visitou várias partes do mundo: Berlim, Paris, Frankfurt e Viena foram alguns dos lugares onde ministrou palestras e oficinas falando sobre tecnologia a partir da sua realidade.

Um dos mais importantes projetos do Centro Cultural é na área de formação e tecnologia. Chama-se Lab Coco, e promove capacitação em tecnologia nas periferias, reunindo tecnologia, arte, cultura, representatividade e ancestralidade por meio de plataformas de games educativos, laboratórios com metodologias para a construção de jogos e soluções em software e formação cultural para combater a desigualdade social, o preconceito, o racismo e a intolerância religiosa

“O povo de terreiro tem um orixá chamado Ogum e ele é o pai da tecnologia, então nós temos essa propriedade. Quando a humanidade caçava com gravetos, Ogum desenvolveu a forja. A partir dessa realidade, do meu território negro, de terreiro, começamos a desenvolver tecnologia”, explica a percussionista.

Outro projeto de Beth com tecnologia foi o game de Iemanjá, que traz a cidade de Olinda e seus mares como protagonistas. “O jogo traz uma sereia Iemanjá que pula nos mares para catar os dejetos da praia e a pontuação vem de acordo com o que é coletado nas águas”, explicou. O jogo traz ludicidade e educação ambiental para um problema crônico da cidade.

Legado 

Para o Doutor em Sociologia e professor de Comunicação da Universidade Católica de Pernambuco Luiz Carlos Costa Pinto, a grande obra de Mãe Beth de Oxum é a capacidade de aglutinar e mover pessoas. “Mãe Beth é identificada geralmente como artista, percussionista, produtora cultural, comunicadora e uma série de outras coisas. Eu acho que todas essas qualidades e atividades convergem na capacidade de articular pessoas, articular tempos e forças variadas que permitem a emergência de ações culturais muito potentes”, disse.

“Ela tem sido responsável direta pela interconexão de pessoas do Brasil inteiro em torno da liberdade de comunicação, em torno da valorização da cultura popular, em torno das múltiplas possibilidades da apropriação tecnológica e das narrativas afrocentradas possíveis a partir desses elementos”, completou o pesquisador. 

Já para Marcelo Renan, Coordenador de Patrimônio Imaterial na Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco (Fundarpe), a importância dela está na liderança dentro das culturas populares. “O papel dela utrapassa o lugar de brincante, de detentor de um saber, de um bem cultural, ela é de fato uma grande liderança que inspira. Muitas vezes colocada nesse lugar de afetar o cenário que está ao seu redor, as pessoas, os governos, para abrir os caminhos e garantir oportunidades para a cultura popular”, afirmou.

“Então, ela tem para gente que estuda esse universo da cultura e do patrimônio uma força na própria representação de ser quem é. O nome de Mãe Beth de Oxum já virou um sinônimo mesmo de uma militância dentro do universo da cultura popular, militando por engajamento dos brincantes nas políticas públicas, acesso, orçamento público, comunicação, a garantia mesmo da sobrevivência e do lugar do brincante de cultura popular”, finalizou o Historiador.

Em uma de nossas conversas, pergunto de sopetão: qual é o legado que Beth gostaria de deixar no futuro e como ela gostaria de ser lembrada? Ela reflete, surpresa, em um primeiro momento reflete e respira com calma, já elaborando uma resposta e emenda de forma sincera, sem muito filtro. “Uma mulher negra, uma filha de Oxum e Ogum que não teme a luta, que acolhe porque na minha casa aqui tem muitos filhos, e sempre frequentam mais”, começou.

“Da minha cabaça aqui eu pari cinco, mas com as mãos pari vários. E eu acho que esse é o meu maior legado: acolher. Acho que a empatia de se colocar no lugar do outro, da outra, principalmente quem está fora das caixas, como os LGBTQIAP+, os não-binários, pessoas que são muitas vezes vilipendiadas pela sociedade e eu abraço mesmo”, continou. 

“Queria deixar um legado de resistência, de acolhimento, e um legado de lutar por uma sociedade antirracista. Precisamos de uma sociedade que seja igual na diferença, com oportunidades iguais para todos”, concluiu como uma verdadeira mãe que acolhe, luta e orienta seus muitos filhos. 

Yuri Euzébio

Yuri Euzébio é Jornalista e Historiador. Gosta de quadrinhos, cinema, música,  cultura popular, de escrever sobre as coisas. Vencedor do 2º Prêmio de Jornalismo Cultural e do 1º Prêmio AMPE de Jornalismo em Saúde e do 2º Prêmio InfoVacina Trainee. Já contribuiu para veículos como Nexo Jornal, Projeto #Colabora, Marco Zero Conteúdo e Revista Continente. E se sente pouco à vontade falando de si na terceira pessoa.

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