A viola de cocho considerada patrimônio cultural, e a canoa de um pau só, são bem conhecidas por Lourenço Pereira. Pescador de terceira geração na região do Pantanal, fala do rio como se fosse um filho a quem destina todo o cuidado e agradece a ele pelas conquistas da vida. É a natureza que permite a vida de Lourenço e é com ela que ele aprende a trabalhar. Os últimos anos, no entanto, têm revelado uma série de complicações a essa relação.
“A pesca vem mudando muito, a cada dia que passa”, relata Lourenço, preocupado com o nível do rio cada vez mais baixo que leva o peixe até a fronteira do Mato Grosso com o Mato Grosso do Sul. É do município de Cáceres (MT) que o pescador sai para trabalhar, se deslocando agora em torno de 250 km para dar início ao ofício da pesca. Não foi só a distância que aumentou: “Aumentaram muito as horas de navegação. Onde eu fazia com 12h, hoje eu tô fazendo com 18h de barco”. A poluição do corpo de água também preocupa. Impulsionada pelos incêndios cada vez mais recorrentes no Pantanal, torna impróprio para consumo o recurso que mata a sede.
Com 54 anos de vida, Lourenço afirma que nem ele nem seu pai, que viveu até os 98 anos de idade, tinham visto algo como o incêndio de 2020 durante toda essa janela de tempo. “Depois de 2020, nunca mais o incêndio acabou no Pantanal”, lamenta. Além de afetar o modo de vida das comunidades tradicionais, as queimadas recorrentes têm diminuído muito o número de madeira necessário para a produção da viola de cocho e da canoa de um pau só. “Sou apaixonado pela canoa de um pau só, eu tenho isso no sangue, a cultura dos Guató. Meu pai era mestre em fazer canoa de um pau só e viola de cocho. O fogo matou muito as madeiras com as quais a gente faz as canoas. Futuramente a gente vê que vai ter alguma só de foto mesmo. Para dar uma canoa tem que ser uma madeira muito antiga e grossa”, relata.
Associado a outros pescadores, Lourenço faz parte de um projeto empenhado em reflorestar áreas do Pantanal com plantas nativas. Em torno de 1500 pescadores se organizam na forma de um “muxirum” – palavra de origem tupi que remete a algo como mutirão ou fazer junto – sem qualquer auxílio financeiro. Cada pescador planta mais ou menos cem mudas, e os que não plantam coletam sementes e cuidam dos canteiros.
O reflorestamento da região é importante tanto do ponto de vista ambiental como de preservação dos patrimônios nacionais originários das comunidades pantaneiras. O que essa associação de pescadores faz é um serviço para o bem estar e preservação da vida da comunidade, do país e do mundo.
Nas últimas décadas, outros bens e localidades históricas tombados pelo Iphan foram impactados por fenômenos extremos, como a cidade de São Luiz do Paraitinga (SP), que teve prédios bicentenários destruídos por um temporal em 2011. No Rio Grande do Sul, 41 museus, 52 centros culturais e 57 bibliotecas foram diretamente afetadas, segundo levantamento do governo do estado junto aos municípios gaúchos.
Na Amazônia, uma das consequências da seca agravada pela crise climática é o aparecimento de sítios arqueológicos antes submersos, o que acarreta na necessidade de salvaguarda dos locais. Segundo a arqueóloga Marjorie Lima, em encontro virtual realizado pelo Iphan no início do ano, a consequência vai além, já que “as pessoas estão mudando seus lugares de vivência, uma alteração elementar na vida das pessoas”, afetando também o patrimônio imaterial.
A superintendente do Iphan no Amazonas, Beatriz Calheiros, também exemplifica os impactos. “[Em 2023], as fumaças encobriram o centro histórico de Manaus (AM), que é um local histórico tombado pelo Iphan, inclusive apresentações artísticas no Theatro Amazonas tiveram seu agendamento impactado”. No Cerrado, a Chapada dos Veadeiros (GO), tombada pela Unesco como Patrimônio Mundial Natural, teve milhares de hectares destruídos em setembro deste ano.
É a partir desse contexto que o Iphan, junto ao Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos-BR), vem promovendo o Ciclo de Diálogos sobre Patrimônio Cultural e Ações Climáticas. O Ciclo é realizado a partir da concepção de que os detentores do patrimônio cultural são aliados fundamentais no enfrentamento às consequências das mudanças climáticas.
As ações estão sendo pensadas para contemplar os principais biomas do Brasil, levando em conta as necessidades do patrimônio cultural de cada região e a forma como as mudanças climáticas se apresentam em cada uma delas. As primeiras reuniões presenciais acerca do programa ocorreram em Brasília e a previsão é que os encontros ocorram em cada bioma brasileiro.
O Iphan também está recolhendo informações a partir de um formulário, a fim de abranger e estar a par da situação de patrimônios culturais que não poderá, pois quaisquer motivos, ser comunicada nos eventos presenciais. “O questionário veio para chegar onde nós não estamos chegando. Os fóruns exigem você se deslocar, você ficar dois, três dias em determinado local. Desde o profissional em gestão do patrimônio até o detentor do conhecimento tradicional que está lá na comunidade”, esclarece Luana Campos, Secretária do Icomos-BR.
Entre os objetivos do programa, estão a produção de dados e estudos com a perspectiva de fortalecer políticas públicas e ações de enfrentamento e a análise dos principais riscos que afetam e poderão afetar distintos tipos de bens do patrimônio cultural.
A perspectiva é que o programa colete dados suficientes até a COP30, que vai acontecer em Belém, no Pará, em novembro de 2025. “A gente pede ajuda para que a gente tenha e consiga lançar na COP a Carta do Patrimônio e Mudanças Climáticas. As recomendações, indicadores, todos esses elementos que compõem uma carta do patrimônio como resultado desse trabalho e como um panorama, indicativos do cenário atual e projeções futuras para o patrimônio cultural frente às mudanças climáticas.”
Para ações como a realizada pelos pescadores, junto a Lourenço, no Pantanal, a formulação de políticas públicas que incentivem e reconheçam essas movimentações é fundamental, uma vez que os impactos da crise climática já estão sendo sentidos. Luana entende a pressa de muitos detentores, mas reitera que políticas públicas levam tempo e programas como o Ciclo de Diálogos são importantes para dar início a essas elaborações.
“Esse evento é um primeiro passo de uma jornada para a construção de uma política pública. Até o momento nós não temos tido condições de pensar o patrimônio e as mudanças climáticas; esse evento é pra isso. Primeiro a gente ouve, escreve, sistematiza e vai moldando até ter resultado. Ao longo desse processo, podemos ter algumas soluções mais rápidas? Sim. Mas nosso objetivo é o longo prazo. Tentamos trabalhar com o curto, médio e longo prazo.”
O exemplo de resultado a curto prazo dado por Luana é do diálogo estabelecido com a Defesa Civil em um dos eventos presenciais em Brasília. “A Defesa Civil está neste momento revendo o plano nacional de diretrizes da defesa civil. A partir desse evento que nós promovemos em Brasília, nós incentivamos o grupo a introduzir a cultura, o patrimônio. Se não tivesse tido o evento, talvez isso não teria acontecido de forma mais lógica.”
Esta é uma das ações que o Ministério da Cultura tem realizado para integrar o setor cultural nas discussões sobre a crise climática. Na Cop28, em Dubai, o Brasil e o país sede coordenaram juntos o lançamento do Grupo de Amigos da Ação Climática Baseada na Cultura, uma coalizão de ministros da Cultura. O debate, contudo, não teve avanços significativos e ainda não há informação sobre uma nova reunião na Cop29, que será realizada no Azerbaijão em dezembro. Outras reuniões sobre o tema têm sido realizadas na programação paralela do G20, já que o Brasil sedia os encontros do grupo em 2024. A expectativa é que a questão do clima e da cultura seja mencionada no documento final do G20, que será apresentado em novembro, em Salvador.
Os maiores debates sobre a relação entre clima e cultura têm sido realizados por organizações da sociedade civil e ativistas da área. Um exemplo é a Rede Clima & Cultura em Foco, uma iniciativa do People’s Palace Projects do Brasil, em parceria com o Perifalab, que promove uma série de encontros sobre o tema. Para Marcele Oliveira, Diretora da PerifaLab, uma mudança na legislação que inclua a sustentabilidade no âmbito da política cultural pode fazer a diferença. “Através da cultura, a gente pode conscientizar massivamente as pessoas”.
⅙ dos bens culturais mundiais estão ameaçadas pela crise climática, diz Unesco
A crise climática impacta o patrimônio cultural em todos os continentes. Segundo Marlova Jovchelovitch, diretora da Unesco no Brasil, pelo menos ⅙ dos patrimônios culturais estão ameaçados pelas mudanças climáticas. O levantamento, divulgado pelo órgão durante o lançamento da missão emergencial da Unesco no Rio Grande do Sul, em julho deste ano, também revelou que ⅓ dos sítios arqueológicos estão em áreas de potencial risco.
Para a gestora, não há mais como separar a cultura das discussões sobre o clima. Nos últimos anos, as demandas por fundos emergenciais após desastres, como as enchentes no Rio Grande do Sul, têm aumentado com o passar do anos. No sul do Brasil, a missão foi formada por especialistas em gestão de crise, resgate e recuperação de acervos, que coletaram dados e informações para embasar um diagnóstico das necessidades pós-enchente e recomendações técnicas para os mais de 50 museus afetados na tragédia. Ações semelhantes foram realizadas após desastres no Haiti, no Nepal, na Namíbia e no Paquistão nos últimos anos.
O socorrista cultural guatemalense Samuel Franco Arce foi um dos profissionais que visitaram o Rio Grande do Sul em julho. Especializado em emergências, ele explica que a velocidade das mudanças climáticas exige novos protocolos de museus e instituições culturais, de modo geral. “É importante considerar o que as mudanças climáticas estão fazendo com o Patrimônio Cultural. Nós estamos começando a ver o impacto em sítios arqueológicos que estão sofrendo erosão, por exemplo. Alguns patrimônios são mais vulneráveis que outros, mas precisamos nos preocupar, porque nossos bens culturais serão afetados de forma mais rápida do que vimos nos passado”, explica o especialista que já atuou em um terremoto no Nepal, em 2015, e enchentes na Índia, em 2022.
Entre as mudanças práticas que serão necessárias para emergências futuras, Samuel explica que os museus vão precisar repensar a localização de seus acervos, pois, assim como no Brasil, em diferentes partes do mundo constrói-se acervos no subsolo das instituições culturais. Um prédio anexo, em lugar diferente do museu, pode ser uma saída possível para a preservação.
Outra solução é o deslocamento das soluções para andares superiores. “Um procedimento que recomendamos é que arquivos como fotografias e documentos estejam salvos na nuvem e também em mais de um prédio, pois às vezes as pessoas guardam três backups em um mesmo lugar e, se um incêndio acontece, tudo será perdido”, exemplifica.
Para atuar como socorrista cultural, Samuel explica que são necessários treinamentos de diversos tipos: com bombeiros, com as forças armadas, com os primeiros socorros. “Você precisa enxergar de forma global, não apenas com olhar de um restaurador de acervos e obras de arte”, explica. “Em caso de enchentes, nós fazemos uma espécie de triagem e diagnóstico, percebendo o que pode ser restaurado e o que foi perdido.”
Andrea Richards, arqueóloga caribenha, ressalta que a diversidade cultural precisa ser considerada em situações de tragédias climáticas. A especialista atua, em especial, na preservação de patrimônios culturais pós-enchentes e pós-ciclones nas regiões do Caribe, onde há ocorrência periódica de furacões, e no Sudeste do continente africano. “Quando trabalhamos na reconstrução do patrimônio cultural, é importante pensar na diversidade cultural”, explica. “Para mim, vindo do Caribe, a diversidade é essencial, porque somos uma mistura de diferentes raças, e vejo o mesmo no Brasil.”
“Quando o trabalho de restauro é feito, é importante se assegurar de que não é apenas um tipo de patrimônio que está sendo recuperado. Precisamos considerar as diversas vozes que se expressam através do patrimônio”, explica Andrea sobre sua experiência atuando em diferentes países, como Malawi, Dominica e Antigua. A visita ao Rio Grande do Sul foi sua primeira experiência de missão emergencial no Brasil. No Brasil, além dos museus do RS, apenas o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi contemplado com esse programa da Unesco nas últimas décadas.