“Quem tem a liberdade de ser qualquer coisa no palco?”, questiona a atriz e diretora Renata Carvalho no primeiro dia do Seminário Internacional de Políticas para as Artes: Imaginando Margens, realizado pela Funarte nesta semana. A pergunta da diretora teatral aconteceu durante um debate no primeiro dia do evento (17), no Sesc 14Bis, São Paulo, em que o tema central era a Liberdade Artística e a Inventividade.
A mesa contou com a participação de Arissana Pataxó, Guilherme Varella e Renata Carvalho, e com a mediação de Marcio Braz, em um debate sobre os desafios da liberdade de expressão na cultura. Os convidados abordaram suas experiências artísticas e como a liberdade precisa ser pensada de forma ampla, pois significa uma série de direitos: de expressão, de território, de existência.
Artista e ativista pela representatividade trans no teatro, Renata iniciou sua fala relembrando episódios em que ela mesma foi censurada. Em 2017, a peça dirigida e protagonizada por ela, “O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu” foi impedida de acontecer duas vezes: em Jundiaí, São Paulo, e em Salvador, na Bahia. No espetáculo, a atriz, com mais de 20 anos de trajetória, interpretava Jesus.
Para ela, não há como falar em liberdade sem mencionar que nem todos os artistas usufruem naturalmente da liberdade artística: “Eu também quero ter a liberdade de, no palco, ser uma cadeira, uma chaleira, um animal, uma mulher cis gravida, uma travesti”, defende. “Eu fico preocupada com o silêncio nas artes. Qual é nosso papel enquanto artista quando uma peça de teatro é proibida de se apresentar?”
Como mostram dados do Observatório de Censura à Arte, iniciativa do Nonada Jornalismo, houve uma crescente de episódios de censura a produções artísticas nos últimos anos e há um aumento relacionado a períodos eleitorais. Na conversa, Renata contou que após o impedimento de realizar sua peça, não obteve apoio efetivo de outros agentes culturais do país. O silêncio do campo artístico que ela menciona seria uma falta de mobilização, resposta e políticas efetivas para os artistas afetados. “Qual seria a nossa resposta contra a censura? Poderia ser que esses espetáculos e artistas atacados rodassem em todos os festivais. Isso não aconteceu. Eu fui censurada, inclusive, por festivais de teatro.”
Márcio Braz, mestre em Ciências Humanas e membro do Conselho de Artes do boi Caprichoso, de Parintins (AM), destacou que, muitas vezes, há a impressão de que a censura estaria apenas nos órgãos públicos, mas que, muitas vezes, ela está mais perto do que se imagina. “Os agentes da censura estão em todas as partes, inclusive em pessoas que a gente conhece, produtores de festival. Como que a gente consegue lutar por essas liberdades de corpo em defesa de suas poéticas?”, questiona.
O gestor contou sua experiência no Festival de Parintins e como, antes de ser celebrado e entendido como parte da cultural nacional, houve um histórico de perseguições. “Ao longo da trajetória, houve diversos processos de apagamento da nossa prática”, disse ele, exemplificando que parte da memória do Boi Bumbá pode ser encontrada em arquivos de delegacias de polícia do Amazonas. “O boi bumbá era perseguido pelas elites e por um estado que não reconhecia essa dança de terreiro, de preto, como uma dança que faz parte da identidade amazonense e da cultura brasileira.” Segundo ele, é recente a percepção de que a Amazônia não pode ser vista apenas como o lugar do verde, da fauna e da flora, e que o boi é um movimento de luta pelo território.
A relação entre liberdade e território também foi abordada pela artista visual Arissana Pataxó. “Quando penso em uma Política Nacional das Artes, eu penso que precisamos salvaguardar esse patrimônio, os nossos territórios das artes. Não basta ter a pessoa que faz, é preciso ter o material. Muitos desses lugares estão sendo destruídos. Infelizmente, destroem-se essas matérias primas, e esses saberes que poderiam estar sendo passados para os jovens.” Ela exemplifica com o uso do licuri, uma palmeira da caatinga, utilizada para trançar o cocar, e que agora, torna-se de difícil acesso por conta de construções imobiliárias recentes que tem desmatado o bioma.
Doutoranda em artes visuais pela UFBA, Arissana explica que os territórios das artes, para o seu povo, são seus próprios territórios de viver. “Se a gente não tem um território, como teremos liberdade para produzir, criar nossas artes e ensinar nossos jovens?”, pergunta. “Falo de artes em contexto da comunidade. Não só a arte que está no circuito, que eu participo. Como registrar? Como guardar essa memória? Precisamos ter políticas para que isso aconteça”, defende a pesquisadora e também uma das curadoras do pavilhão brasileiro na Bienal de Veneza.
O papel do Estado brasileiro
A mesa debateu também o papel do Estado Brasileiro em promover liberdade para os corpos e identidades poéticas. Márcio menciona como os movimentos conservadores conseguem se infiltrar no próprio processo de criação artístico. “O avanço dos movimentos de ultra-direita no mundo e seus discursos conservadores têm agido por meio da repressão e censura dos corpos, movimentos, liberdades poéticas e artísticas”, diz.
“Muitas repressões não são só simbólicas, mas são violências físicas. Essas tentativas de invisibilização têm repercutido diretamente nos processos de criações artísticas, dos espetáculos e nas novas dinâmicas processuais da construção dos trabalhos. Isso tem exigido de nós artistas, gestores, trabalhadores da cultura uma nova relação diante do estado brasileiro e da sociedade brasileira diante da proliferação desses agentes da extrema-direita ligados a esses apagamentos.”
Guilherme Varella, doutor em Direito e gestor cultural, falou da necessidade de se discutir a liberdade artística sob a perspectiva da gestão e reforçou que o papel do Estado é assegurar essas liberdades. “Os direitos culturais são direitos humanos porque são pressupostos para os outros direitos. A gente só consegue reivindicar outros direitos se a gente sabe quem a gente é, de onde a gente vem, qual a nossa ancestralidade, o que eu me identifico”, diz.
O pesquisador é um dos integrantes do Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão Artística (MOBILE), organização criada para mapear e entender a censura à arte no Brasil. Entre 2018 e 2022, o grupo fez um levantamento de mais de 600 casos da violação da liberdade artística e criou uma metodologia para categorizar os tipos de censura. Os resultados mostraram que mais de 30% das obras censuradas estavam relacionadas a questões de raça, gênero e orientação sexual. Porém, diferente da censura no período da ditadura, ele explica que, muitas vezes, a censura atual está relacionada a desmontes, esvaziamento de fundos e enfraquecimento de instituições. “Com o verniz de legalidade, passou-se a ter uma série de medidas que são violadoras da liberdade artística no Brasil.”
Segundo ele, o Estado precisa criar balizas, diretrizes, para que a liberdade artística não possa ser atacada, independente da gestão. Ele cita, por exemplo, jurisprudências desenvolvidas para fins científicos. “Precisamos de um desenvolvimento jurídico da liberdade artística”, defende.
Por fim, ele acredita que agora o perigo está também na autocensura. “Nós vamos ter que aplicar uma vacina contra a autocensura, porque pior que a censura que vem do Estado, é a autocensura dos artistas com medo e receio de fazerem alguma coisa com medo serem censurados, de perder um contrato ou de uma obra ser retirada da exposição. A gente tem que proteger os artistas e os gestores para que eles tenham segurança.”
O Seminário Internacional de Políticas para as Artes segue até esta quinta-feira, em São Paulo, e pretende ser o ponto de partida para criação da Política Nacional das Artes, instrumento de políticas públicas para os artistas e trabalhadores das artes no Brasil.