Arte: Arte: Lucca Anapuru Muypurá e Lilith @peri.fah

Anapuru, nome-memória em retomada: indígena maranhense celebra o direito ao nome étnico no registro civil

Por Lucca Anapuru Muypurá

O nome é parte da identidade de um indivíduo; é o que o distingue dos outros e como ele se apresenta à sociedade, situando-o na comunidade à qual pertence e indicando suas origens. Para nós, indígenas Anapuru Muypurá em processo de retomada/levante no Maranhão, o direito ao nome étnico no registro civil é fundamental para o reconhecimento da nossa identidade e pertencimento, além de ser símbolo de resistência cultural de nossas raízes originárias e de transmissão de nossas memórias ancestrais.

Meu nome  é Gleydson de Castro Oliveira Anapuru e sou mais conhecido como Lucca Anapuru Muypurá. Pertenço ao povo indígena Anapuru Muypurá, do Maranhão. Nasci em 30 de janeiro de 1996, no município de Chapadinha (MA). Em abril de 2024, conquistei o direito de ter o nome do meu povo nos meus documentos pessoais.

No período de aldeamento Brejo dos Anapurus, no século 18, ao terem a língua e seus nomes originários proibidos por intermédio da catequização e, sobretudo, da imposição das leis coloniais do Diretório Pombalino; a cultura dos nossos ancestrais Anapuru foi sendo reprimida ao longo dos séculos, resultando na adoção forçada de nomes não-indígenas. Exemplo disso são os líderes Anapuru citados em documentos históricos, todos possuem nomes e sobrenomes portugueses: Francisco Xavier (1741); Ventura (1751); Pedro Alexandrino Pereira (1812) e José da Cunha Brandão (século 19). 

Os etnônimos Anapuru e Muypurá são muito presentes nas memórias locais e historicamente usados para nomear municípios, lugares, estabelecimentos, eventos e grupos culturais (Boi Estrela dos Muypurás e Boi Encanto dos Muypurás) no Leste Maranhense. 

Arte: Lucca Anapuru Muypurá

A cidade de Brejo (MA) é sempre lembrada pelos mais velhos como “Brejo dos Anapurus”. Tem uma placa colocada pela prefeitura na entrada do município com a descrição “Bem vindo a Brejo, Aldeia dos Muypurás, Paraíso dos Anapurus”, além de um monumento com duas estátuas grandes representando um casal de indígenas Muypurá e abaixo a descrição “Brejo, Terra dos Muypurás”. 

O município Anapurus (MA) também recebeu este topônimo e, outrora, era conhecido como “Estrela dos Anapurus”. Ademais, nos mapas geográficos mais antigos, o nome Anapurus é o que aparece para localizar a região que compreende atualmente Brejo (MA) e os demais municípios vizinhos. A memória viva do povo Anapuru Muypurá e os topônimos que demarcam esta presença indígena na região Leste Maranhense evidenciam formas de resistência que contrapõem o memoricídio e o apagamento histórico.

Um dos aspectos centrais da identidade Anapuru Muypurá é a memória de uma origem comum que nos liga ao tempo do aldeamento Brejo dos Anapurus. A minha família, por exemplo, reconhece a nossa genealogia indígena na história contada de geração em geração sobre uma indígena Anapuru que foi “pega no laço” na região dos “chapadões” onde hoje é o povoado Prata, no município de Chapadinha. Minha bisavó, Deuzuila Silva Machado, nascida no dia 27 de setembro de 1939 no povoado Bom Jesus, conta que Chapadinha era habitada por muitos indígenas Anapuru e tinha muitas aldeias na região. 

Chapadinha surgiu por volta do século 18, com fixação em 1783.O município originou do lugarejo Aldeia, atual bairro Aldeia, localizado aproximadamente a 500 metros do centro da cidade. A localidade recebeu esse nome devido à tradição oral de que lá existia uma maloca de indígenas Anapuru. Os mais velhos contam que entre as pedras das nascentes da Aldeia, os Anapuru cultuavam a imagem de uma encantada que possuía uma cobra enrolada no corpo e que protegia os nossos ancestrais de todos os males da humanidade.

Minha bisavó, Deuzuila, mora no povoado Carnaúba Amarela, onde constituiu família (filhos, netos, bisnetos e tataranetos). Lembro-me que ela sempre contava histórias sobre a nossa origem indígena. “Somos caboclos índios”. “Temos sangue dos índios Anapurus, os primeiros habitantes de Chapadinha”. São narrativas cotidianamente acionadas por ela e meus parentes em conversas familiares, e que reafirmam, de certa forma, o nosso pertencimento étnico. 

Encontro do Povo Anapuru Muypurá “Cavacar Memórias, Retomar a Terra” (Foto: acervo pessoal)

Segundo minhas avós, a ancestral Anapuru que deu origem à nossa família foi levada para uma fazenda na região, onde cresceu e depois de um tempo deu à luz a uma menina. A narrativa contada pelos troncos velhos da minha família, relata que, certo dia, ouviram os choros de criança vindo da caxixola (casa de palha) onde a mãe e a filha viviam. A indígena havia fugido do lugar e deixado a criança deitada numa rede com um doce feito de pó de farinha de mandioca e mel, o único alimento possível naquele contexto. Açúcar não existia na época, era usado mel de abelha ou rapadura para adoçar os alimentos. Memórias que cresci escutando dos meus troncos velhos e que fortalecem meu sentimento de pertencimento e a retomada da identidade indígena. 

Me revolta o fato de que o nome dessa ancestral, vítima de tanta violência, tenha sido silenciado ao longo dos tempos, a ponto de nem mesmo meus mais velhos saberem. Talvez, tenha sido proibido por se tratar de um nome na língua materna, pois a proibição da língua e da cultura indígena era legitimada pelo Estado. No entanto, a memória do seu pertencimento étnico à “Nação dos Anapurus” resistiu e não foi possível silenciá-la. A retomada do nome-memória Anapuru nos registros civis é um movimento de reparação histórica, de resistência e de reconhecimento da nossa identidade e ancestralidade que tanto tentaram (e tentam) nos negar.

Moro na comunidade Santa Rosa dos Pretos, município de Itapecuru Mirim (MA), onde constituí família com Raimunda Nonata Belfort Pereira. Nosso primeiro filho, Tauã Pereira Anapuru, nasceu em 16 de março de 2022, no município de Itapecuru Mirim (MA) e foi o primeiro indígena do povo Anapuru Muypurá a conquistar o direito ao nome étnico. “Pereira” é sobrenome herdado da mãe dele e o “Anapuru” que além de indicar o pertencimento étnico também é um patronímico, pois substitui um dos meus sobrenomes de origem portuguesa (Castro Oliveira).

Para mim, a adoção do nome-memória Anapuru nos nossos registros civis representa um signo de emancipação que torna possível a transmissão da memória ancestral da origem étnica da minha família, o que nos leva a atribuir significados de identidade pessoal, social e cultural.

O meu filho, Tauã Anapuru, teve que enfrentar uma batalha judicial de mais de um mês contra o racismo institucional para ser registrado civilmente como indígena. No entanto, uma decisão deferida no dia 19 de abril de 2022, no Dia dos Povos Indígenas, garantiu que ele fosse registrado com o nome do nosso povo como sobrenome e o pertencimento étnico constando nas observações do assento do nascimento no registro civil. 

No dia 25 de novembro de 2023, nasceu o meu segundo filho, Kayan Victor Pereira Anapuru, que também foi registrado como indígena Anapuru Muypurá.  Os nomes dos meus dois filhos, Tauã e Kayan, são variações de palavras do Tupi e significam respectivamente “barro vermelho” e “gavião”. Foram escolhidos cuidadosamente e só foram revelados aos demais familiares e comunidade após seus nascimentos.

Em junho de 2023, me baseando pela Resolução Conjunta do CMNP/CNJ nº 03/2012, que estabelece a padronização sobre o registro de nome indígena, eu recorri à Defensoria Pública de Itapecuru Mirim para reivindicar a retificação do meu registro civil e inclusão do nome-memória Anapuru.

Após quase 10 meses de espera, no dia 24 de abril de 2024, também consegui incluir o nome étnico nos meus documentos. Duas gerações da minha família podendo ter a identidade indígena reconhecida nos registros civis é uma conquista que entra para a história de mais de 500 anos de luta pelo direito à identidade e ao território do povo Anapuru Muypurá e dos demais povos indígenas do Brasil. 

Arte: Lucca Anapuru Muypurá

Entretanto, em julho de 2024, meu irmão, Jonas de Castro Oliveira, teve o pedido de inclusão do nome-memória Anapuru no seu registro civil negado pelo mesmo cartório que retificou meu registro civil. Após ser vítima do racismo institucional, Jonas também pretende recorrer na justiça. Há casos de outros indígenas Anapuru Muypurá, em Chapadinha (MA), como a indígena Camila Leres Correa e sua família, que recorreram à Defensoria Pública do município e aguardam há meses pela retificação de seus registros civis.

No município de Buriti do Tocantins (TO), a família extensa do casal Maria do Carmo Silva Pereira e Vicente Alves Pereira constitui o povo Anapuru Muypurá de Tocantins. O casal é originário de Brejo (MA) e, desde 1984, vive no município tocantinense. Desde maio de 2023, estão lutando pelo direito ao nome étnico Anapuru nos seus documentos. O objetivo é que mais indígenas possam acessar este direito. 

Temos um compromisso com o futuro ancestral das sementes que estamos plantando, assim como nossos ancestrais tiveram o compromisso de nos deixar as memórias e saberes, mesmo com tantas lacunas e não-ditos. Temos uma missão com nossas continuidades, contar o que não cabe dentro da boca e escrever o que não cabe no papel.

Por fim, reafirmo que a importância do nome étnico para nós, indígenas Anapuru Muypurá, não só é de retomar ou manter a história dos nossos povos, como entender através deste todas as dinâmicas de pertencimento social, cultural, histórica, política etc. Através do nome étnico externamos nossas origens e tradições. O direito ao nome indígena é um direito de memória, pertencimento, expressão cultural, autodeterminação e, sobretudo, de liberdade.

Ventura Anapuru livre!

Lucca Anapuru Muypurá

Gleydson de Castro Oliveira Anapuru, popularmente conhecido como Lucca Anapuru Muypurá, é liderança do povo Anapuru Muypurá. Natural de Chapadinha (MA). Arte-educador e artivista. Licenciado em Teatro (UFMA). Membro do Coletivo Kumbuka e do Laboratório de Criação Artística LAB Tukun.

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