Arte: Julia Beatriz de Freitas

Comunidades tradicionais entre o Cerrado e a Caatinga resistem à seca e ao desmatamento

Júlia Beatriz de Freitas, especial para o Nonada Jornalismo

Porteirinha (MG) – Maria de Lourdes achou certa graça quando descobriu que o povo mineiro entrava em certo desespero após oito meses sem chuva. De onde vinha, seca significava, em suas palavras, muito mais. Era três anos sem pingar no chão. Era terra rachada e céu sem sinal de água. Maria é agricultora familiar da comunidade Mucambo da Onça, localizada no município de Porteirinha, região do extremo norte de Minas Gerais, próximo ao estado de nascença, Bahia. Três anos sem pingo no chão foi o que fez Maria de Lourdes, ainda jovem, sair de onde veio. “Saí do Nordeste fugindo da fome. Sou uma retirante da seca”, diz pausadamente entre as falas. A fome e a sede a movimentaram.

Quase nem tomava banho ou mesmo bebia água. Era comum, no local onde morava, sair de madrugada para “roubar” água nos tanques do vizinho. Minas Gerais parecia, então, um sonho. Tinha Caatinga ainda, mas agora também Cerrado. Portelinha, nome do município pelo qual se apaixonou e onde constituiu família, área de transição de biomas que compartilham troncos tortuosos e raízes fortes adaptadas à seca.

“Abria um buraco e chegava na água. Achava água no chão, cavada com a mão. Assim, do nada”, relembra. Os dias e as noites passadas sem ver nada no céu do sertão baiano. ficavam para trás. Lourdes, como é conhecida, compartilha uma história vivenciada por milhares de nordestinos – como ela definiu, “novos” retirantes da seca. O poema dramático dos anos de 1950 de João Cabral Melo Neto retratava a chegada dos retirantes da seca ao litoral, seu local de destino. Onde a água era abundante.

Como ela é uma terra doce para os pés e para a vista. Os rios que correm aqui têm água vitalícia. Cacimbas por todo lado; cavando o chão, água mina. Vejo agora que é verdade o que pensei ser mentira. Quem sabe se nesta terra não plantarei minha sina? Não tenho medo de terra (cavei pedra toda a vida), e para quem lutou a braço contra a piçarra da Caatinga será fácil amansar esta aqui, tão feminina.

Maria não foi pro litoral. Desceu para Minas Gerais, onde a Caatinga começa a encontrar o Cerrado. Foi pra perto do São Francisco, o rio. Se a Amazônia é, mesmo que erroneamente, conhecida como pulmão do mundo, o Cerrado ganhou a alcunha de “berço das águas” ou então “caixa d’água” do Brasil – onde nascentes brotam vida e mantêm a população brasileira abastecida de água: oito das doze bacias hidrográficas brasileiras nascem ali.

A agricultora familiar Maria de Lourdes (Foto: Macaca Filmes)

O São Francisco partiu minha vida em dois, disse Riobaldo, protagonista do clássico Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, obra ambientada na fronteira entre Minas Gerais e Bahia e que inspirou a nomeação do Parque Grande Sertão Veredas na região.

“O sertão é do tamanho do mundo (…). Agora, por aqui, o senhor já viu: rio é só o São Francisco, o Rio do Chico. O resto pequeno é vereda. E algum ribeirão”. Diz Manuel, pescador do rio exuberante, em trajeto de balsa que cruza o rio todo dia: conheço esse rio todo como a palma de minha mão. Fala dos pescados maiores que ele, de estatura baixa. História de pescador que agora prova com fotos no celular.

Sua história mais aterrorizante com o rio que tanto ama é de uma vez quando procuravam um corpo. Conta, para contextualizar, que um areal “ilusório” suga nadadores desavisados em um redemoinho ao fundo do rio. “Coloquei uma água metade cheia e ela me apontou onde tava o corpo, que a polícia procurava. Nadei e dei de cara com os olhos do rapaz”, lembra.

São Francisco, esse tão retratado como importante para boa parte da população brasileira, é palco de história, crença, lenda, cultura. É uma das maiores bacias hidrográficas do Brasil e a maior parte fica no Cerrado. Também tem Caatinga e, em menor escala, Mata Atlântica. O rio abriga gente há tempos, muito antes de Maria de Lourdes. Às margens do Velho Chico, antes da chegada dos brancos e da alcunha desse nome cristão ao rio, viviam o povo de Pedro Xakriabá, filho de homem negro com mulher indígena e cujo povo foi expulso de lá. A palavra Xakriabá significa bonde e remo, conta. De lá foram expulsos com “violência e estupro”, diz o indígena.

Uma parte foi pra Bahia, outra parte para outra região de Minas Gerais. Seus parentes ocuparam a área que hoje é Terra Indígena Xakriabá, onde vive na mata em que ele cata as ervas para produzir seu rapé, usado diariamente. Libera o nariz, conta. A semente do grandioso Angico, cujo tronco é cheio delas, é alucinógeno – ensina junto. Hoje, Pedro ensina isso como guia turístico no Parque Nacional do Peruaçu, que divide área com a Terra Indígena Xakriabá, para onde foram fugidos uma parte dos indígenas depois de muito “estupro e expulsão” de perto do rio, define. Vivem às margens do rio Itacarambi., onde tem uma casa de medicina, onde plantam. 

Agora, a água na região para onde foram também começou a escassear. “Viemos pra essa área expulso e viemos pra essa área porque tinha muita nascente e agora tá secando cada vez mais”, comenta Pedro. O parque de cavernas exuberantes é, pelas bordas, também atacado.

Parque Nacional do Peruaçu (Foto: Júlia Beatriz de Freitas)

Se o governo federal comemora as quedas nas taxas de desmatamento da Amazônia, pouco tem a comemorar na savana mais biodiversa do mundo. De acordo com dados do Mapbiomas, o Cerrado correspondeu a 61% da área desmatada em todo o país em 2023.  O desmatamento é acompanhado de incêndios, fogo usado na abertura de pastagens. Enquanto a fumaça se alastrava por todo o Brasil em setembro de 2024 e chamava atenção de moradores do Sul e Sudeste, Maria e tantas outras pessoas presenciam isso de outro jeito, há tempos. 

A agricultora conta que todo dia, colocava a panela no fogo para cozinhar o arroz. Então levava um punhado de farinha junto com uma peneira para o córrego no fundo de casa e pegava as “piabas”, os peixes miúdos comuns em córregos do tipo. O punhado de farinha atraia as piábas, como uma espécie de isca.  “Eu levava o punhadinho de farinha e uma peneira e só jogava lá, apanhava um punhado de piaba e voltava pra casa”, comenta Lourdes. Era o tempo que o arroz “terminava de secar” e, com as piabas fritas na sequência, o almoço ficava pronto. Hoje não dá mais tempo.

“Se você for no córrego, precisa de uma máquina pesada pra retirar a quantidade de areia que ficou lá dentro”, comenta. No mesmo mês em que Manuel relembra as histórias de vida e mortes no rio sustentado pelo bioma e Pedro fala do passado e presente da região do Parque Nacional, estudos descobriram que mais de 135 milhões de toneladas de carbono foram emitidos pelo Cerrado de janeiro de 2023 a julho de 2024. Carbono que agrava a crise climática, gera mais seca.

O volume corresponde a 1,5x vezes o total produzido pela indústria brasileira a cada ano, de acordo com dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam) obtidos por meio do Sistema de Alerta de Desmatamento do Cerrado (SAD Cerrado).  “Nós estamos vendo no Cerrado hoje, nas áreas de pequi, correntão derrubando pequizeiro, derrubando as matas de todo jeito”, comenta Maria. Para a derrubada das áreas e abertura de lavouras, usa-se uma corrente pesada entre dois tratores para derrubar a vegetação.

A perseguição da seca e a solta que virou fecho

A região norte de Minas Gerais foi refúgio de retirantes da seca da Bahia, como Maria. Agora a falta de água no paraíso encontrado começa a despontar como resultado de um processo já consolidado na região oeste da Bahia, também transição entre Caatinga e Cerrado, fronteira com Minas Gerais. O Matopiba, sigla formada para áreas que compreende os estados de Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia, é a área de maior pressão de desmatamento. Os chamados “empreendedores” cresceram os olhos e capacidade de maquinário na região diante da atenção concentrada na Amazônia, inclusive da lei.

Uma das cidades mais conhecidas da região como pólo agropecuário é Barreiras, conhecida como “Capital do Oeste”, na região oeste da Bahia, fronteira com Minas. Na época da seca, a cidade respira fumaça. “A gente se acostuma”, diz um guarda de uma padaria. “Mas olha que bonito aquele sol”, aponta para o gigante alaranjado escondido por alguns prédios à volta no fim da tarde.

O desmatamento do Cerrado arrasta a seca adiante. A região do oeste baiano já tem, há tempos, estradas de asfalto povoadas por caminhões e tratores que convivem com paisagens monotemáticas de soja, algodão e milho. São milhares e milhares de hectares cortados por estruturas de irrigação, os chamados ‘pivôs’, que mantêm a produção das commodities a serem posteriormente exportadas. Cenas interrompidas, por vezes, por uma ou outra árvore solitária. Às vezes uma bonita barriguda, árvore cujo tronco se salienta e é característica da Caatinga.  

“Isso aqui começou na década de 1970”, comenta Aliene Barbosa, moradora de uma comunidade chamada fecho e fundo de pasto. Nome surgido junto com a chegada das pessoas de fora. Antes desse nome, as pessoas das comunidades que ali moravam se constituíram na região quando os “sesmeiros” no local, incapazes de ocupar a extensão de terra concedida pela coroa portuguesa na região, tiveram a terra ocupada por indígenas, negros escravizados e pequenos agricultores familiares. 

A sesmaria era uma concessão de terras realizada pelo governo português durante o período colonial para “promover o desenvolvimento agrícola e a ocupação territorial”. À época, a criação de gado era a atividade mais incentivada na região, propiciada pela vegetação e clima do Cerrado. As populações sem acesso formal à terra, situação que por vezes persiste até hoje pela falta de regularização fundiária, começaram a se estabelecer nesses espaços de maneira comunitária, utilizando as terras de maneira compartilhada para criar gado solto, uma prática de pastoreio tradicional.

Quando o pai de Aliene era criança, só se chamava de “solta”, conta ela. Isso porque o gado solto naquela região da Bahia ia até o nordeste goiano.  “Quando você não tem um limite estabelecido, você vai conforme seus interesses e necessidades e o gado fazia isso também”, diz Eldo, sobre o gado.  Nas barrancas de rio das comunidades não tinha cerca, conta ele. “As pessoas plantavam suas rocinhas pequenas, “desbrocava” a roça, derrubava as árvores 20, 40 ou 50 metros. No máximo 1 hectare”, lembra Eldo. O mato derrubado virava cerca viva para os animais não acabarem com a roça.

A partir da década de 1970, o cultivo de grãos e a expansão da fronteira agrícola cresciam na região, incentivado por programa de créditos subsidiados pelo governo, como o Prodecer, Programa de Desenvolvimento dos Cerrados.

 “As terras da região Oeste da Bahia foram sendo adquiridas pela grilagem, pela compra por preços insignificantes, ou por meio de doação pelo governo aos imigrantes sulistas, principalmente dos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, que foram atraídos pelas condições oferecidas pelo Estado. Os camponeses que ocupa vam esse território, que se formaram da miscigenação de brancos, negros e índios, e que mantinham uma relação de posse da terra se nenhuma comprovação documental, foram sendo expulsos de suas terras”, discorre a publicação “Comunidades tradicionais de Fechos de Pasto e seu modo próprio de convivência com o Cerrado”, publicação de autoria da Associação dos Pequenos Criadores do Fecho de Pasto de Clemente, do qual Eldo é presidente.

A chegada do agronegócio “espremeu” essas comunidades e, como solução encontrada pelas pessoas que sobreviviam daquele gado, foi feito o fechamento das áreas coletivas, daí os “fecho de pasto”. Enquanto isso, proliferaram o que ficou conhecido como “ninhos gaúchos”, onde ficam as casas nas grandes fazendas e de grandes extensões.

Pelas estradas de terra que cercam os pequenos lotes das comunidades é comum ver homens de chapéu de vaqueiro montados em cavalos. São seu meio de transporte para chegar até os fechos, afastados das comunidades – um caminho que pode durar até dois dias. O gado é solto nessas áreas duas vezes durante o ano. “Quando cai a primeira chuva, é hora de tirar o gado para o capim brotar”, explica ela. “Quando a chuva bate na terra, o gado quer subir. Abriu a cancela? O gado sabe que é pra ir pros gerais.”

Os “gerais” são caracterizados por terrenos relativamente planos ou suavemente ondulados, cobertos por vegetação de campo sujo, que é composta por gramíneas, ervas, pequenos arbustos e árvores dispersas. Normalmente, o gado fica nos fechos de 30 a 45 dias, período que, diante das secas cada ano mais severas, têm começado a se estender. “Teve gente que já levou o gado por quatro meses por causa da seca”, comenta.

Quando o capim vai “soltar semente”, como define ela, o gado é novamente levado para fora do fecho. “Enquanto o gado tá aqui”, aponta para a área da comunidade, “lá tá sendo preservado. É um conhecimento secular nosso”, comenta.

Já as comunidades de “fundo” são as localizadas perto da área coletiva de criação de gado. Daí o nome: comunidades de fundo e fecho de pasto.  Para irrigação dos plantios, as pessoas locais “tiravam no braço, na força”, como diz Aliene, os “regos”, canais de água advindos dos rios. “É o que molha as plantações por inundação”, afirma. Depois, a água desce novamente para o rio – movimento circular.

Divisa entre monocultura e Cerrado na Bahia (Foto: Macaca Filmes)

A agricultura sustenta os pratos. Aliene mesmo é conhecida na região por sua comida. A galinhada caipira, o feijão tropeiro, gosto de pequi forte no arroz feito com maestria vai bem acompanhado de um gelado suco de tamarindo. Sempre faz bastante comida, pra sobrar. Os regos na região começaram, nos últimos anos, a secar, o que dificulta a vida das comunidades. O rego chamado de Grande, conhecido por Eldo, já não existe mais.

“Aqui todo mundo sabia nadar, hoje eu não consigo ensinar meus filhos a nadar”, comenta. Nós era igual peixe, diz Eldo. Com medo de encarar o rio que dava origem aos canais, o rego dava a possibilidade do nado e tirava o risco de afogamento. Agora está seco. Apenas na sub-bacia do rio Arrojado, onde Aliene cresceu, hoje tem ao menos oito regos secos.

A cada ano, a escassa água também começou a inundar contaminação. Na época de chuva, com a primeira cheia, já se sabe o que vem a seguir: diarreia de crianças e idosos, sempre diagnosticada genericamente como virose. “Mas a gente sabe que vem da água”, comenta. A água de beber da sua família vem do rio. Quem pode, tem bomba; quem não, busca no latão. “Toma banho, o corpo envermelha, fica cheio de caroço, coça”, relata sobre os agrotóxicos contaminados das lavouras.

É difícil encontrar uma comunidade ou casa sem ninguém que tenha dois destinos: ou já morreu ou ainda tem câncer. Jovens dali saíram para trabalhar em Mato Grosso, estado próximo, em plantios que os levavam à morte  de câncer, diz ela. “Você não encontra aqui nenhuma família que não teve morte ou tem gente em tratamento de câncer”, afirma.

O Brasil é o maior consumidor mundial de agrotóxicos, e o Cerrado é a região com o maior consumo de agrotóxicos por hectare devido por causa das monoculturas de soja, milho e algodão, altamente dependentes dos defensivos agrícolas. Glifosato, um herbicida amplamente usado, é o agrotóxico mais aplicado na região, especialmente nas culturas de soja e milho. São inúmeros os estudos que demonstram os impactos irreversíveis à saúde humana pela substância. Fauna também é severamente afetada. Pesquisadores da Iniciativa Nacional para a Conservação da Anta Brasileira (Ancab) demonstraram em um estudo que as antas do bioma estão severamente infectadas por resíduos de produtos tóxicos.

Balas alojadas no corpo, invasão e roubo de água

O que Aliene viu na infância, seus filhos não vêm, diz ela. Todos com idade abaixo de 30 anos, moram com ela, o que ela define como uma conquista. No campo, são muitos, define ela, que optam por sair em busca de uma vida “melhor”. Ensina a labuta, como define, do fecho. “Pra não distanciar da nossa realidade”, comenta. Um, com problemas na coluna, trabalha como garçom na cidade; outro é agente de saúde e o outro faz tudo: roça, cerca, opera trator na terra, vai pro fecho.

Quando a chuva bate na terra, relembra, o gado quer subir. Era um trabalho de um homem só na época do seu pai. Agora, seu filho, precisa de gente acompanhando. “Por causa da segurança”, comenta. Sem sinal de celular, os dias passados pelo filho no fecho, uma atividade tradicionalmente voltada para os homens das comunidades, são minutos de aflição para a mãe que fica em casa.  “A gente sabe que os filhos, irmãos, maridos vão, mas não tem certeza de que voltam. O filho foi anteontem, já queria mandar mensagem. Mas lá não tem sinal”, relata.

Aliene Barbosa, moradora de uma comunidade de fecho e fundo de pasto (Foto: Macaca Filmes)

Uma mensagem no grupo de WhatsApp gera tensão, diz ela. É pela rede social que as comunidades se organizam para proteger o território. Avisam movimentos suspeitos. “Hoje pode não ter nada, amanhã pode ser cercado de pistoleiro”, relata. Já aconteceu com o filho, que chorava no imploro pela vida quando a mãe teve que negociar com os homens armados no diálogo.

É corpo a corpo, define Eldo sobre a estratégia dos fecheiros, como são chamados. Uma vez, foram os corpos de 150 pessoas contra pistoleiros. Cada um com, no mínimo, uma foice, um machado e um facão. Mas sem arma de fogo. Renderam os homens armados, que jogaram no fundo das caminhonetes para levar para delegacia.

“No corpo a corpo eles nunca conseguiram tirar a gente. Eles não têm medo da justiça, de processo. Eles têm medo do corpo a corpo porque eles sempre perderam”, comenta.  Ao mesmo tempo, convive com o choro da filha criança quando sabe de algum jovem que foi pro “fecho” porque talvez não volte. Homens fecheiros carregam balas alojadas no corpo quando ela não tira a vida.  Em 2023, ao menos seis pessoas foram alvejadas em quatro vilarejos diferentes, de acordo com relatos colhidos pela Repórter Brasil. Na delegacia, entretanto, já ouviram recusa de delegado de registro de boletim de ocorrência sem a presença de advogados.

Para Aliene, a resistência do fecho resulta na preservação das águas. É uma forma de combater a seca que assola cada vez mais. Muitas famílias já foram para Goiânia. “Por vezes com jovens voltando no caixão – porque entraram pro mundo pro crime”, comenta. Em 2017, no mesmo município, mais de 12 mil pessoas se revoltaram com a escassez de água e ocuparam uma fazenda. O evento ganhou a alcunha que ainda é realidade do local: guerra das águas. É assim que Aliene se sente. “Nunca me sinto em paz”, comenta.

As soluções propostas foram de “tapar os olhos”, diz ela. “Depois disso [guerra das águas], querem cobrar outorga da água pra gente usar”, diz.  Outorgas são as autorizações concedidas pelo Estado para uso dos recursos hídricos. “Pra gente é uma demora, mas pro agro parece bem rápido. Ainda implementam programas que nada tem a ver com nossa cultura. Querem acabar com a cultura e modo de vida do nosso povo”, diz novamente.

O estudo “Desmatamento e Apropriação de Água no Oeste da Bahia” analisou mais de 800 outorgas de uso de recursos hídricos emitidas pelo órgão estadual responsável de 2007 a 2022 e que resultaram na autorizaram a captação de uma vazão total de 17 bilhões de litros de água por dia nas bacias hidrográficas dos rios Grande, Corrente e Carinhanha, todas localizadas na região Oeste.

A vazão total concedida, a fins de comparação, daria para abastecer, diariamente, 7 vezes a população de todo o estado da Bahia. O estudo mostrou que 50% das outorgas são em áreas com prioridade extremamente alta para conservação e uso sustentável da biodiversidade, 24% estão em áreas prioritárias para uso por povos e comunidades tradicionais e 58% estão em áreas prioritárias para proteção dos recursos hídricos.

A análise ainda concluiu que “existem fragilidades no processo de concessão e fiscalização de outorgas de domínio estadual, e a maioria dos instrumentos da Política Estadual de Recursos Hídricos (Lei nº 11.612/2009) ainda não foi implementada”, discorre o documento. O trabalho também realizou um mapeamento e análise de áreas irrigadas, em propriedades com sistema de agricultura irrigada por pivô central nessas bacias que demonstrou que, além do alto volume outorgado, existe uma quantidade significativa de propriedades que possuem áreas irrigadas por pivôs, mas não possuem outorgas. “O que indica a possibilidade de captações irregulares”, aponta o estudo.

Em uma das ações após o conflito, como forma de “amenizar”, o governo deu kits de irrigação com placas solares. “Pra gente esquecer o rego”, comenta Aliene. Esquecer cultura.

A invasão é para desmatar, mas mais recentemente também para preservar.

É a chamada “grilagem verde”. “Fazem todo tipo de cadastro em cima das nossas áreas, estão todas sobrepostas. Instalam guaritas, colocam pistoleiro, proíbem de entrar na área. Se não for a nossa resistência, não entra”, comenta. “colocam as reservas legais aqui em cima da nossa área”, define o problema.

A violência autorizada pelo Estado

Imóveis rurais privados são responsáveis pela maior parte do desmatamento nos biomas brasileiros. E a retirada de vegetação nativa neles é regulada pelo chamado Código Florestal (Lei nº 12.651/2012), a lei de proteção da vegetação nativa e que também determina a categoria de reserva legal, área protegida pela lei.

A primeira etapa da lei, o Cadastro Ambiental Rural (CAR) é autodeclaratório e pouco analisado: pouco mais de de 2% dos CARs do país tiveram análises concluídas pelos Estados até novembro de 2023, de acordo com um estudo da Climate Policy Initiative. É nele que os proprietários mostram onde estão suas áreas de reserva legal e áreas de preservação permanente (APPs). É um dos registros citados por Aliene. 

Em edição conhecida por “não agradar nem ambientalistas nem ruralistas” e sob protestos, a lei aprovada em 2012  sob protestos  previu a proteção de 80% de reserva legal na Amazônia. Para o Cerrado, o número é inversamente proporcional: proprietários rurais podem desmatar até 80% da área do imóvel.

Rio São Francisco (Foto: Júlia beatriz de Freitas)

Os números dos cadastros, mesmo não analisados, também já apresentam um cenário preocupante. De acordo com dados do Termômetro do Código Florestal, uma ferramenta do Observatório do Código Florestal (OCF), rede de organizações brasileiras que monitora a implementação da lei, o Cerrado concentra 4,6 milhões de hectares de passivo ambiental em imóveis rurais privados divididos entre reserva legal e APPs. Ou seja, mais de 4 milhões de hectares que precisam ser recuperados ou restaurados.

Para o desmatamento autorizado nesses 80%, é necessário ter licença, ainda.. Mas as concessões das autorizações de supressão vegetal, as chamadas ASVs, são alvo constante de críticas das organizações ambientais da região. A análise do Imaterra na região apresentou falhas graves como a concessão de ASVs em APPs não declaradas ou declaradas incorretamente. Na revisão das chamadas “cartas hidrográficas”, constatou-se que muitas dessas áreas não foram reportadas adequadamente e acabaram incluídas na ASV.

Também houve sobreposição entre áreas de ASV e reserva legal e foram identificadas supressões de vegetação fora das áreas autorizadas, além de divergências entre as informações fornecidas pelo produtor, os pareceres técnicos do órgão ambiental e os dados reais da propriedade. “E esses 20% de reserva legal ainda não são respeitados, então a lei não está funcionando”, avalia Maria de Lourdes. Enquanto isso, as invasões seguem ocorrendo. 

Em Formoso do Rio Preto, município da região próximo a Barreiras, Silvano é um dos que teme pela vida por proteger sua comunidade. “Nossa comunidade foi invadida por grileiros. A gente não sabe como eles, mas eles fizeram uma grande desmatada na área da comunidade e dizendo que tem uma liberação legal. A gente não consegue entender como funcionam as leis ambientais sendo que a área nem pertence àquele grileiro”, comenta Silvano.

A comunidade recebeu viaturas da polícia à meia-noite invadindo a casa de homens que estavam tentando impedir a invasão, a queimada de currais e pela proteção dos currais. “Eles iam fechar os pontos de água, as nascentes”, diz. A comunidade se mobilizou, mas à noite mais visita: dessa vez de pistoleiros e ameaças. Um mistério a ser decifrado, diz Silvano. “A gente não entende porque a Justiça não decifra esse mistério todo”, comenta. “Essa é a realidade de um sistema de leis que favorecem só os grandes latifundiários. Quem invade propriedade é criminoso”, desabafa.

Assim como pela lei de proteção, muitos inclusive ainda usam da Justiça para a invasão, a qual chamam de reintegração de posse.  Em abril de 2024, uma delas em cima de uma comunidade de fundo e fecho de pasto foi suspensa pelo Supremo Tribunal Federal após decisão do ministro Flávio Dino.  Mas foi algo inédito, avalia Eldo. “O despejo na comunidade ia tirar famílias, ranchos, casa, e tudo”, comenta. “Um processo vir dos cafundós da Bahia e no outro dia o Supremo derrubar é algo que nunca ocorreu aqui”, comenta.

Antes o gado, agora o grão

Da Bahia vinha o gado, solto. Agora, vem o grão. E pra ele vir, diferente do gado, tira tudo o que tem na frente. A centenas de quilômetros dali, na região onde antes o gado do oeste baiano chegava, José, um senhor com idade com cerca de 70 anos, anda mancando com uma ferida na perna apertada por um pedaço de pano um pouco ensanguentado. Feriu na moto e nem água passou.

Água ali não tem passado há mais de 20 dias – é início de setembro e plena seca no bioma.  José mora em um assentamento rural no município de Mambaí, no nordeste de Goiás. A região, cuja cobertura de vegetação nativa ainda é significativa, passa a presenciar o avanço do agronegócio do oeste baiano cada vez mais imponente.

“Minha preocupação são os piscinões, esses os pivôs”, diz ele. Trazem a ideia de que a água escassa será ainda mais. Considerados pelo setor como essenciais para enfrentamento da seca no bioma, tratores cavam e constroem os chamados “piscinões”, estruturas de armazenamento de água para irrigação de monocultura, principalmente soja. 215 milhões de litros de água é o que um piscinão pode comportar.

Andrelino Lopes, morador do assentamento em Mambaí (GO) (Foto: Júlia Beatriz)

“O problema que nóis tem aqui é a falta de água”, comenta Andrelino Lopes, assentado vizinho de seu José. “O grande exporta, o pequeno que mantém aqui”, comenta sobre a ocupação territorial da região. Seu lote, em um assentamento rural do município, é um dos nove sem acesso à água – mal tem para tomar. Sua vaquinha o olha, berrando. “Vinte e poucos dias sem água. Minha vaquinha está todo morrendo de sede ali. Minha vaquinha olhando para mim e berrando”, diz o homem.

Seu Zé, nascido no município de Goianésia, trabalhou por 45 anos como peão de lavoura nos arredores. “Já destruí tanto a natureza, hoje não consigo derrubar nem um galho”, conta. “Mas isso aí é a vida”, ri. Seu Andrelino, seu amigo, tem uma felicidade na vida: seu pedaço de terra, sua casa de tijolo. Fruto da reforma agrária.

Enquanto resiste pela vida no local, entretanto, muitos dos assentados começam a arrendar as terras conquistadas para a monocultura ao redor. Um dinheiro que vem fácil. Jovens, como seu Zé quando mais novo, começam a trabalhar nas grandes lavouras e o desejo do crescimento brota.

“Nós não tem assistência aqui”, lamentam os dois assentados, alternadamente. Andrelino, que reclama da água, ainda se preocupa com o fogo. “Deixo tudo arrumadinho pro fogo não entrar”, comenta sobre o lote conquistado no assentamento rural, seu maior sonho realizado.

Antes fogo, agora incêndio

O Cerrado é um bioma que tem fogo naturalmente. Espécies de plantas no Cerrado são conhecidas por suas adaptações ao fogo com cascas grossas, raízes profundas e troncos tortuosos.  Mas o fogo, durante a seca, vira incêndio que se alastra, difícil de conter. Em uma fazenda de soja perto do assentamento, uma fumaça escura aponta o caminho das chamas no período proibitivo das queimadas no país.  

Comunidades tradicionais, há centenas de anos, sabem, entretanto, manejar o fogo, seja para os cultivos ou para a caça. Mas a mentalidade “fogo zero” de políticas ambientais instauradas para impedir os incêndios florestais imperaram nos biomas de forma infrutífera, visto que o uso do fogo na agricultura para abertura de pastagens continua. Agora, cada vez mais, pesquisas científicas mostram o que comunidades tradicionais e indígenas já alertavam.

Sem queima controlada, a vegetação seca pode atuar como uma espécie de combustível. Além disso, a queima ajuda na rebrota das árvores, conhecimento já das populações do bioma que ateavam fogo para o cultivo de plantas alimentícias. O bioma mostra isso, por si só: uma flor chamada de cabelo-de-índio, comum no bioma, só floresce depois do fogo. Alunos da Unesp fizeram experimentos com queima controlada na Reserva Natural Serra do Tombador (GO) e descobriram que, após 24 horas do uso do foco, vinha a floração.

Diante deste conhecimento, recentemente o governo federal aprovou o Plano Nacional de Manejo Integrado de Fogo (MIF), política que prevê a regulamentação dessa estratégia de combate aos incêndios florestais. Se pega fogo em excesso no Cerrado, principalmente na época mais crítica do ano, de agosto a outubro, espécies como pequi, caju, mangaba, buriti, bacuri, bacaba, oiti, ipê e outros são colocadas sob risco. Espécies que gestam nessa época também: caititu, paca, cutia, quati, tamanduá, raposa, onça, anta e outros mamíferos, e muitas aves, como a ema, estão chocando seus ovos ou alimentando seus filhotes pequenos no período. 

E o fogo tem pegado. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que 54.298 incêndios atingiram o bioma desde o início deste ano até a metade da segunda semana de setembro. O número ultrapassa o total de focos computados ao longo dos doze meses de 2023, quando foram registrados 50.713 incêndios.

De acordo com dados do Mapbiomas, entre janeiro e agosto de 2024, o fogo consumiu 4 milhões de hectares de mata no cerrado brasileiro, sendo 79% de vegetação nativa. O valor representa um aumento de 85% em relação ao mesmo período do ano passado, quando 2,2 milhões de hectares foram queimados.

Se o fogo traz rebrota, dá pra acreditar nisso pras pessoas também.

A persistência apesar do medo

Justiça social e sustentabilidade ambiental andam juntos. Essa é a premissa da missão da Rede Cerrado, criada na Eco-92, um dos primeiros grandes encontros para debater a crise climática no país.  “Foi ali que a gente começou a trabalhar a história de fazer debate sobre os povos e populações tradicionais e a proteção dos biomas, em especial o Cerrado, que sempre foi muito visado na agressão dos grandes projetos, da invasão dos grandes projetos nesse bioma, que a gente criou, nós criamos”, comenta Maria.

Mais de 30 anos depois, os projetos cresceram. E a necessidade de fortalecimento da rede também. “A gente nem planta muita coisa, mas tem essas sementes, que a gente também repassa para os outros agricultores, são sementes crioulas”, comenta. 

Comunidade de fecho e fundo de pasto em Correntina, no Cerrado (Foto: Macaca Filmes)

Feijão, milho e corgo são algumas delas.“ O medo é o avanço do transgênico”, diz. “E suas falsas promessas”. Promete produzir mais e melhor.  No nordeste goiano, é comum relatos de tentativas de plantação de sementes de milho transgênicas nos pequenos lotes da comunidade. “Como se fosse possível transformar aquilo numa monocultura”, comentou um morador.

Óleo de coco de babaçu feito pelas quebradeiras de coco, bom para pele, cabelo e culinária; produtos advindos do baru, semente cheia de proteína, geleia do azedo umbu. É variada a biodiversidade dos biomas atacados cada ano mais por um modelo econômico baseado na devastação. Apesar da diversidade, são poucos os incentivos e instrumentos que garantem uma geração de renda para as populações do bioma. “Ficamos na mão de atravessadores”, comenta um assentado em Mambaí. 

A solução se mostra pelo coletivo. Uma das 50 iniciativas da sociedade civil que compõem a rede é a Central do Cerrado, que reúne cooperativas que promovem e comercializam produtos de diversas organizações comunitárias agroextrativistas do Cerrado e da Caatinga. Maria de Lourdes puxa um coro num evento de encontro de comunidades tradicionais, em Minas Gerais: eu sozinho ando bem, mas com você ando melhor. “É difícil, mas não tem o que fazer, temos que continuar”, diz. 

A inundação dos regos com cada vez menos na água nas pequenas lavouras das comunidades de fecho e fundo de pasto obedecem a um sistema de compartilhamento. Cada dia da semana, uma das propriedades inunda a sua parte. E assim vamos indo.  Dona Sinhá, moradora de uma comunidade de Formosa do Rio Preto, na Bahia, diz: o mundo tá acabando, diz ela, porque tiraram todas as árvores. Mas a vida, diz ela, é boa. Se não, não acontecia.

A vida persiste. Como bem mostrava Morte e Vida Severina:

E não há melhor resposta que o espetáculo da vida: vê-la desfiar seu fio, que também se chama vida, ver a fábrica que ela mesma, teimosamente, se fabrica, vê-la brotar como há pouco em nova vida explodida; mesmo quando é assim pequena a explosão, como a ocorrida; como a de há pouco, franzina; mesmo quando é a explosão de uma vida Severina

Júlia Beatriz de Freitas

Júlia Beatriz é jornalista socioambiental. Formada pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), trabalha com comunicação socioambiental em organizações não governamentais com foco na Amazônia desde 2019. É autora dos livro-reportagens “Doce Sobrevida: a apicultura como alternativa no assentamento Taquaral” e ‘Norte de Mato Grosso, sul da Amazônia: sonhos e resistências da agricultura familiar no arco do desmatamento’. Busca, em seu trabalho, fortalecer palavras e histórias pela desconstrução da falsa dicotomia entre humanidade e natureza, tarefa urgente em tempos de crise climática.

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