Aprender a memorizar figuras e palavras, desenvolver o raciocínio lógico e entrar no mundo fantástico da leitura são algumas das ações com as quais o brincar e as brincadeiras podem contribuir na infância. No coletivo Xirê de Quintal, as brincadeiras africanas é que facilitam o contato das crianças com múltiplos e diversos saberes. Ao realizar atividades com crianças e também oficinas de formação para professores, a iniciativa contribui também com o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira, obrigatório nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio no Brasil desde 2003.
O Xirê de Quintal, enquanto projeto, nasceu na pandemia de covid-19, a partir de uma página de Instagram, onde começou a reunir reflexões e escritos que tinha com os aprendizados e vivências na comunidade. Em diálogo com a comunidade, Tamis Ferreira sentia a necessidade de criar algo a fim de romper com a inércia e angústia pandêmicas. Era também uma necessidade da pedagoga de trilhar um caminho que a ela não era apresentado em sua formação.
“Fui entendendo que as brincadeiras africanas eram o primeiro lugar que eu precisava acessar pra buscar essa minha ancestralidade, primeiro partiu de mim”. Dessa forma, Tamis foi aprendendo e compartilhando as brincadeiras no quintal da casa onde morava, com as crianças da rua. “A ancestralidade estava muito próxima ali, eu só precisava mergulhar na minha história, na história do meu povo, a partir das brincadeiras”, diz a pedagoga formada pela USP.
A iniciativa cresceu e o Xirê de Quintal, hoje com quatro integrantes, realiza atividades em eventos e espaços culturais, como o Museu Afro Brasil Emanoel Araujo e também em escolas. Uma das atividades desenvolvidas é a oficina de confecção de Jogo da Memória Adinkras, composto por um conjunto de símbolos ancestrais do povo Ashanti, onde atualmente ficam países como Gana, Burkina Faso e Togo.
Outra brincadeira é o tabuleiro de Mancala, espécie de xadrez que estimula o raciocínio lógico. A pedagoga, no entanto, chama a atenção para as nomenclaturas dispostas sobre os elementos culturais: “ninguém fala que o xadrez é uma mancala europeia. A mancala é um jogo africano de tabuleiro, mas, ao mesmo tempo, a mancala chamam de xadrez africano”.
Tamis é a Matrigestora do projeto, retomando a matrilinearidade de muitas culturas no continente africano, onde a descendência é contada a partir da mãe: “eu gesto pensando esse terreiro como algo que saiu de mim, eu criei. A ideia é que a gente traga as denominações africanas para o que a gente faz aqui, mesmo estando geograficamente fora da África, a gente entende que é importante trazer essas denominações também”.
Além de Matrigestora do Xirê de Quintal, ela também é autora dos livros Ayo e as Formiguinhas e Manual de Brincadeiras Africanas. A origem do primeiro se deu quando, na universidade, uma professora da educação infantil provocou Tamis a criar uma história. “Escrevi essa história muito despretensiosamente. Quando mostrei pra vários conhecidos meus, eles falaram que dava um livro”, a esses conhecidos, Tamis respondia, com desilusão: “Imagina! Uma mulher preta, mãe solo, não tem condição de criar um livro”.
A publicação de Ayo e as Formiguinhas junto às novas audiências que o Xirê de Quintal conquistava atraiu os olhares do Sesc e rendeu a Tamis o primeiro trabalho no Sesc Guarulhos, com a contação de história do livro e brincadeiras africanas. “Chamei uma equipe, pessoas pretas que de alguma maneira se identificavam com o meu trabalho. A gente foi compondo esse núcleo e estamos agora com quatro pessoas.”
A educadora também ressalta que há um histórico racista relacionado ao brincar que não pode ser esquecido: “Crianças negras eram feitas de brinquedo por crianças brancas em contexto de escravização. Mas, em contexto de terreiro, essas crianças negras eram livres. Elas podiam exercer a liberdade delas”, destaca.
Tamis lembra de brincadeiras como a Escravos de Jó: “é uma brincadeira que eu brincava muito na infância, com meus amigos em roda. E eu achava muito estranho todas aquelas palavras. E, depois que eu cresci, eu entendi que é uma brincadeira super problemática.” Hoje, ela ensina a Obwisana, jogo de gana que ensina ritmo, também focado em passar a pedra de mão em mão. “É uma cantiga que conta a história de uma menininha, que está brincando com pedras e machucou seu dedo”.
Formação pedagógica afrocentrada
Trabalhando com a formação de docentes, a pedagoga faz uma análise sobre a aplicação da lei 10.639/2003 e conta que ainda encontra resistência em algumas escolas que visita: “Geralmente são corpos docentes que estão há mais de 20 anos trabalhando no mesmo lugar, da mesma maneira, tiveram ali uma formação muito muito quadrada, e tem muitas dificuldades de se atualizar. A gente percebe que em muitas escolas ainda estão engatinhando muito esse processo”.
Ela destaca que a grande maioria dos convites que o Xirê de Quintal recebe é de escolas públicas. “Enquanto não for algo de fato orgânico e do comprometimento de todo o corpo docente, a gente vai continuar tendo alguma dificuldade de acessar esse lugar. Mas ao mesmo tempo eu percebo que tem muitas escolas que chamam a gente com muita vontade de mudar.”
Tamis relata que busca sempre criar relações com as escolas para continuar avaliando o trabalho de formação: “É pra ser uma formação continuada, não só fazer um processo de vivência, de mostrar o quanto é importante e depois elas não se apropriarem disso como algo a ser seguido adiante. A ideia é que a gente retome a escola de outras formas, fazendo outras oficinas, vivências, pra gente de fato ter um compromisso com aquilo.”
“Se não for a partir da brincadeira, se não for a partir da ludicidade, não acerta. Tanto o corpo adulto quanto o corpo da criança. A brincadeira tem um lugar muito íntimo com a infância, e a infância é um lugar de liberdade, de leveza. A partir da brincadeira, eu estou ensinando sobre filosofia, geografia, território, história, práticas ancestrais, música, ritmo, movimento e várias outras coisas com as quais fisicamente o corpo precisa se relacionar que só pela brincadeira é possível de ser acessado,” argumenta a pedagoga, justificando que se transmitidos na sala de aula, com todos os alunos enfileirados e sentados, esses conhecimentos não serão compreendidos com a mesma eficácia apresentada pela brincadeira.
“A história da criança branca sempre foi contada como narrativa única”, discorre Tamis, defendendo a importância de brincadeiras com origem no continente africano para crianças não-brancas também. “Essa criança não negra vai entender que ela não é o centro do universo e a criança negra vai saber que ela também tem um lugar muito importante na história.”
Conheça algumas brincadeiras africanas:
Mamba Negra (África do Sul): Prima do pega-pega corrente. “Mamba Negra é uma cobra africana, toda preta, tem a língua preta, e é uma das cobras mais venenosas em toda a África, seu veneno é letal” – explica Tamis. Uma pessoa começa sendo a cabeça da cobra, que vai tocando outras pessoas. Ao serem tocadas, se juntam à cabeça da cobra e começam a formar um longo corpo, com as mãos na cintura de quem estiver à frente.
Pegue o Bastão (Kemet – Antigo Egito): Brincadeira em roda, cada um segura um bastão. Uma canção embala a troca de bastões, que cada pessoa vai passando para a que está do lado, até atingir uma unicidade. Tamis complementa: “Eu canto uma cantiga que a gente escolheu, cada pessoa faz de um jeito, a gente vai trazendo nossa identidade. Eu escolhi uma capoeira”. A filosofia da brincadeira é que todos precisam estar no mesmo ritmo para atingir um mesmo objetivo.
Obwisana (Gana): Brincadeira em roda em que os participantes passam de mão em mão uma pedra que batem no chão conforme o ritmo da música. O número de pedras pode variar. Letra de Obwisana: “Obwisana sa nana / Obwisana sa / Obwisana sa nana / Obwisana sa”