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Ainda Estou Aqui costura a memória de uma família e de um país que nunca deveria ser esquecida

Se há algo que Ainda Estou Aqui faz tão bem é nos lembrar como os registros são importantes para escrever a nossa história, seja a de uma família, ou a de um país. É possível ler toda a construção do filme dirigido por Walter Salles como a composição de uma colcha formada por retalhos que vão sendo costurados – de modo bem didático, até – para nos apresentar um vislumbre de esperança, uma resposta à crueldade.

No caso, estamos ambientados no período da ditadura militar no Brasil, nos anos 1970, pós AI-5, que entre outras resoluções permitia fechar o Congresso por tempo indeterminado. O ato resultou na perda de mandatos de parlamentares contrários aos militares, intervenções ordenadas pelo presidente nos municípios e estados e na suspensão de quaisquer garantias constitucionais. Tudo isso acabou originando uma institucionalização da tortura, usada como instrumento pelo Estado. O medo ressoava por todo o país.

A metáfora da costura não é nenhuma novidade quando se fala em conectar diferentes traços de memória, mas ainda é válida. O próprio filme em algumas de suas mais belas passagens nos apresenta essa chave de leitura, como na cena em que a filha mais velha está em Londres e envia uma gravação em vídeo contando o seu dia a dia junto com uma carta. Para sacudir e saborear aquela memória, a família assiste em conjunto ao improvisado curta-metragem ao mesmo tempo em que lê o texto da correspondência. O ato chega a ser repetido, porque cada interpretação de um membro da família dará uma camada diferente de sensação.

Em sua primeira meia hora, Ainda estou aqui apresenta muito bem o cotidiano dessa família rica da zona sul carioca que vive em uma casa enorme no Rio de Janeiro, à beira da praia. Um casarão que é quase um membro da família também graças ao brilhante trabalho de direção de arte. O dia a dia feliz da família Paiva, composta pelo casal Rubens e Eunice e seus cinco filhos, é principalmente representado pelas suas relações entre eles e entre os amigos, cenas de festa, de dança, de mergulho no mar e a captura desses momentos a partir das fotos – mais um tipo de registro. Destaque para a amizade entre os próprios irmãos, o olhar que eles têm sobre os acontecimentos daria um outro texto.

Por tudo isso, há indícios de que algo ruim está acontecendo. Situações que estão fora da cena, ou citações de personagens sobre notícias envolvendo a ditadura, surgem aos poucos. E é em um desses momentos do cotidiano que o patriarca, Rubens Paiva, é levado por militares à paisana. 

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Nessa cena, muito interessante do ponto de vista cinematográfico, podemos ver a casa se transformando com a chegada desses intrusos. O ambiente escurece, a pressão contida e feroz dos agentes da ditadura e a sensação de impotência quase transforma Ainda estou aqui em um filme de terror claustrofóbico – que prepara para os dias de prisão e de tortura que a personagem vai vivenciar em seguida. É a partir disso que Eunice, a mãe, interpretada de forma definitiva por Fernanda Torres, começa a tomar a frente se tornando essa guardiã da memória da família Paiva e consequentemente da memória de uma parte importante da história do Brasil.

Fernanda Torres nos apresenta a partir do olhar e das expressões faciais toda a seriedade e leveza, quando necessário, para abordar assunto tão complexo. Em uma das melhores cenas do filme, vemos a família na sorveteria depois do desaparecimento do pai, a câmera transita mostrando as outras mesas: famílias, pessoas rindo. A montagem faz um claro e emocionante diálogo com uma cena na primeira parte do filme em que a família estava acompanhada no mesmo local, com o pai. Mas agora só Eunice sabe que ele realmente nunca mais vai voltar.

Se o livro de Marcelo Rubens Paiva no qual o filme baseado é contado entremeando diferentes tempos narrativos, lembranças e fragmentos históricos, por sua vez, o filme acerta em traçar uma linha narrativa coesa, focada na figura de Eunice e na sua reconstrução depois desse trauma. Dá uma ordem direta ao caos que é nossa memória coletiva e pessoal e com isso tenta transmitir uma resposta a indiferença da ditadura.

Eunice se torna uma advogada de sucesso e luta pelo direito do reconhecimento da morte do marido. No fim, consegue receber a certidão de óbito. É o modo possível encontrado na sociedade brasileira para se ter uma espécie de retaliação, ainda que contida e mínima a tudo que a ditadura nos deixou como legado, mas também é um modo de fechar a história para a família.

“Quando foi que você enterrou o papai?”, já no final surge como uma indagação em uma conversa entre dois dos irmãos no filme. A resposta de um é quando eles vão embora da casa, no Rio de Janeiro; a resposta do outro é quando ele viu a mãe doando as roupas.

Quando enterraremos a dor dos mortos que continuam ressoando no Brasil? É preciso dar justiça para a perpétua memória da violência. Mas esse é um quebra-cabeça que precisa ser sempre montado, remontado e redescoberto de formas diferentes a cada nova geração. 

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Jornalista, Especialista em Jornalismo Digital pela Pucrs, Mestre em Comunicação na Ufrgs e Editor-Fundador do Nonada - Jornalismo Travessia. Acredita nas palavras.
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